segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Passo leve em Passo Fundo

A felicidade de pertencer.
O pânico de ser encontrado.

Não consigo estar aqui em Passo Fundo sem experimentar essas duas sensações, alternadamente. Nessa cidade que é minha, ando com o olhar perdido nos plátanos, sabendo que tudo aqui me pertence. Sou mais leve caminhando nessas ruas cheias, esbarrando em pessoas com sacolas grandes, sentando no banco de uma das praças e pegando um papel para simplesmente escrever. Aqui nada me é estranho. Porque aqui eu pertenço. Finalmente.

Desde criança é assim. Entrar em Passo Fundo, ver os prédios, as construções, as sinaleiras e a agitação me é sempre reconfortante e familiar. Não importa que eu nunca tenha morado aqui. É minha casa.

Na escola eu compreendia o porquê de ser diferente. Enquanto todos os outros tinham nascido ali mesmo, nas profundesas vermelhas da Cratera, eu tinha vindo. Vindo de Passo Fundo. Não era em vão que eu jamais me encaixaria.

De pequeno, tão logo cruzássemos o trevo eu perguntava: Pai, foi aqui que eu nasci, né? Foi. A mesma resposta que me soava doce. Soava como um motivo, como uma explicação, como um atestado de que eu pertencia a algum lugar. De que eu brotara ali e de que, portanto, alguma raíz decerto havia ficado.

Aqui, em Passo Fundo, nunca me invadiu a insanidade de dizer "quero ir pra casa". Insanidade porque digo isso em Cratera, até mesmo no meu quarto. De repente penso assim e rio de mim. Que bobo. Pois se estou no meu quarto. A alma, que sussurrou isso, no entanto, sabe... Em Cratera eu jamais estarei em casa.

Acompanhando sempre essa leveza de ar, essa graça boba e descomplicada de ser parte do chão em que se pisa me vem, de súbito, o pânico.

Em Passo Fundo eu tenho medo do encontro.

Ou não do encontro, mas do reconhecimento. O medo vem quando alguém me olha por tempo demais. Ou quando franze os olhos, estreita o rosto e faz cara de "mas de algum lugar eu te conheço". Fujo. Desenfreado fujo.

Eu nasci aqui e fui adotado ainda pequeno. Não sei nada de minha família biológica. Por isso o medo. De pequeno, me fascinava pensar que em qualquer esquina podia estar uma irmã minha, um irmão, um primo, um pai. Divertia-me o enigma.

Hoje me apavora. Apavora que num desses olhares eu possa ler na cara do outro escrito assim: "Mas esse homem... ele é a cara do fulano. Como pode?" Ou então: "Mas é tão parecido com beltrano... Podia até ser filho."

Então estremeço quando me olham por tempo demais. E disparo feito gato arisco. Esqueço plátanos, bancos e praças. Fujo até a próxima esquina, que é quando consigo voltar a respirar, ainda que ofegante.

Não sei qual o meu medo. Nem sequer o justifico. Só tremo todo, como treme quem não quer mais ser encontrado. Quem se satisfez em estar perdido. Como deveria fazer um cãozinho jogado do carro. Mas o cãozinho não faz, o orgulho é contra sua natureza canina.

Mas a minha é felina. E meu orgulho é ferrenho. E hoje mesmo me dei conta de que meu gato tatuado também nasceu aqui. Um dia antes do meu aniversário - ou no dia do meu aniversário [?]. Pertencemos os dois a esse lugar. E aos mistérios do meu pertencimento obscuro. Sim, porque pertenço de graça, como se decifrar minha esfinge a matasse. Como se descobrir de onde eu realmente vim me quebrasse inteiro.

Por isso o medo?


Não. Não sei. 

Sei que uma senhora já me olha há tempo demais. Hora de escapar de novo, e bem rápido, antes que ela seja minha mãe.



sábado, 22 de outubro de 2011

Silenciosa inveja

Desde o primeiro momento eu lhe invejei aquelas palavras. As palavras. Elas pra mim eram só som cuspido no ar. Ou, se desse sorte, tinta preta na página em branco. Pra ele não. Pra ele as palavras, essas putas, dançavam no ar. Ele podia pegá-las, domá-las, masturbar-se com as palavras aquelas. Putas, elas preferiam a ele.

Compensação. Quando lhe tiraram uma coisa, deram-lhe outra. Mas eu é que não adimitia. Minhas palavras eram tão pobres perto das dele. Eu queria aquelas pra mim, não essas. Eu queria domá-las e fazer-lhes qualquer coisa menos do que comê-las.

Elas ali, dançando no ar, pousando e partido feito pombas ou bailarinas brancas. As palavras se materializando naqueles dedos compridos de pianista, as palavras que ele comia com aquela boca bem grossa. Palavras que ele enfiava pelo nariz comprido. Overdose de palavras, meu Deus!

E eu ali, expulsando uma bile silenciosa entre as cadeiras do espetáculo, já alheio ao que me diziam, às palavras pobres que me mandavam. Eu queria aquelas, eu cobiçava eram as palavras do menino mudo.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Para mim.

Para Ághata.

Concordo com Clarice. Pertencer é a mais premente necessidade humana. Mas como você pode pertencer a alguém sem se entregar, sem se doar inteiro ao outro? Não pode.

Você não pode pertencer a alguém e continuar seguro, continuar imune, continuar por sua própria conta. É como na matemática: ou pertence, ou não pertence. Há a vontade imensa de se sentir amado, isso é natural. Mas enquanto você não aprender que, para isso, é preciso se deixar amar, não vai funcionar.

E se deixar amar tem preço. O preço é expor sua fragilidade, sua bondade, sua fraqueza imensa. O preço é arriscar machucar-se pelo incerto, pelo sonho, pelo pulo de trapezista sem rede. O preço, meu bem, é se deixar inteiro na mão de alguém. E disso poucos tem coragem.

Por isso o vazio da vida, por isso as festas, as bebedeiras, a futilidade cotidiana a que nos expomos. Por vontade e medo. Vontade de pertencer e medo de se doar. Enquanto tudo for assim, ainda haverá lágrima no escuro da noite. Ainda haverá solidão no fundo da alma. Ainda haverá angústia assombrando no peito.


segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Literatura NaLomba


Só de uma canção

Anoitecia e a brisa de chuva nos lambia os corpos nus. Despertamos lentos, na tua cama de borboletas azuis. A música tocava ao lado, embora parecesse vir de longe. Lembro de ti, teus olhos nos meus, teus braços envolta de mim, tua boca dedicando a mim aquela canção.

Adoro essa sua cara de sono

Nunca durmo antes de ti. Sempre espero; meu corpo encaixado no teu, minhas mãos alisando teus cabelos. Se acaso tens insônia, minha voz te canta bem baixinho "Dust in the wind, all we are is dust in the wind...". E teu corpo todo se relaxa, tua respiração se acalma, teu sono vem.

E é sempre do teu lado que eu acordo. E só tu podes ver meus olhos pequenos de mandarim, minha boca que amanhece sempre inchada, meu cabelo bagunçado e meu sorriso meio tonto.

E se durmo depois, é depois também que acordo. Acordo e, às vezes, eu te flagro olhando pra mim. Tu ali, quietinha, sabe-se lá há quanto tempo, só me admirando, com os olhos cheios de estrelas.

E o timbre da sua voz

É só no teu ouvido que ouso ronronar, usar minhas vozes roucas e baixas. Sim, eu conheço a intensidade exata que faz teu pescoço arrepiar. É só do teu lado que eu me arrisco a cantar.

que fica me dizendo coisas tão malucas

É só tu que podes ouvir minhas melhores loucuras. E rir delas. Ou compenetrar-se nas minhas besteiras sobre deuses gregos, dissecações de Dodecaedros e dissertações de Clarice Lispector. Eu posso te dizer o que eu quiser. E tu ouves, plena de atenção e fascinação. Posso te falar do sentido da vida de uma mosca que passa. Das minhas cicatrizes e crises e regras de case. Dos filmes poloneses do século passado ou dos franceses e italianos desencavados.

Pra ti eu posso declamar poemas à meia-noite. Expor minhas teorias sobre minha insônia, que depende de domingos, coca-cola e luas cheias. Posso falar de Eros e Psiquê. Pra ti eu posso contar as piadas mais sujas ou os trechos piores dos meus livros mais densos. Pra ti eu posso apontar os desenhos nas nuvens. Explicar conceitos de abertura, exposição, diafragma, foco e zoom. Só contigo eu posso dizer besteira e, ao mesmo tempo, filosofar. Só para ti eu posso perguntar o que me angustia, como a utilidade do céu, por exemplo. É só do teu lado que eu me arrisco a falar tudo.

e que quase me mata de rir

Só tu viste minhas caretas recheadas de lábios virados e piscadas bem tortas, que no segundo seguinte eu troco por minha cara de sério e te deixo rindo por boba. Só pra ti eu faço meus comentários mais sarcásticos. E tudo pra ouvir outra vez o teu riso. Só tu conheces, aliás, meu riso. Seja falso, forçado, inevitável ou bêbado. Só tu sabes o que me acontece quando bebo. É tu quem eu agarro e faço cócegas e aperto e mordo onde puder. Eu amo te fazer rir, especialmente quando tu precisas ficar séria. E é também, meu amor, só do teu lado que eu me arrisco a sorrir.

quando tenta me convencer
que eu só fiquei aqui
porque nos dóis somos iguais

Tento. Tento fazer com que tu vejas o que eu vejo. Tua inteligência, tua criatividade, teu talento. Eu anoto tuas melhores frases, meu amor. Todas cunhadas com uma sagacidade e uma sutileza que me encantam. Consigo te admirar tanto e, no entanto, não consigo te demonstrar isso sempre. Não consigo te convencer do quão maravilhosa tu podes ser. Não somos iguais, meu amor. Tu sempre serás melhor do que eu. É só do teu lado que eu me arrisco a tentar ser como te vejo.

até parece que você já tinha
o meu manual de instruções
porque você decifra os meus sonhos 
porque você sabe o que eu gosto 
e porque quando você me abraça 
o mundo gira devagar

Eu conheço todo teu corpo e o efeito de cada toque. Consigo te percorrer inteira, pele, mente, alma. Tenho, como tu disseste, olhos de te ver por dentro. Por isso adivinho o que tu pensas antes que tu o fales. E sempre te deixo tonta com isso. Sei dos teus desejos, dos teus quereres, das tuas coisas mais simples às mais complexas. E entendo. Só de olhar.

Da mesma forma, só tu conhece tudo de mim. O número do meu sapato, o nome dos meus perfumes, o castanho dos meus olhos, o mapa de pintas do meu corpo, a bagunça do meu quarto, o gosto dos meus molhos, o tamanho dos meus sonhos, o choro das minhas músicas, o nome secreto nos meus textos, a marca do meu shampoo, o meu medo por quero-queros, a minha obsessão pela leitura, o meu cheiro no teu travesseiro. É só para ti que deixo meu manual também.

E o tempo é só meu
e ninguém registra a cena 
de repente vira um filme
todo em câmera lenta
e eu acho que eu gosto mesmo de você 
bem do jeito que você é.

Tudo isso, tudo para dizer que importante és tu. Não importa quantos gostem de uma fotografia minha. É na tua casa que foi tirada. Não importa quantos comentem em um texto meu. Foi enquanto tu dormias na minha cama que ele foi escrito. Não importa quantos sorrisos me dêem na rua. É a tua boca que a minha beija.

Entende?

Tu te preocupas demais com o tão pouco meu que dou aos outros, quando na verdade me tens de um jeito que jamais outro alguém terá.

São tuas as fotos pela minha casa. É o teu nome no topo da agenda do meu celular. São teus os cartões na gaveta da cômoda. É teu o nome no topo da poesia que te dediquei. É tu que estás ao meu lado, avaliando textos que jamais serão publicados, palpitando nas cores das minhas fotos mais bobas. É tu que me aguentas clicando teias de aranha e xícaras velhas. É tu que corres na rua comigo a tentar flagrar passarinhos. É contigo que eu rolo no chão ou na cama ou na área de casa. É teu o corpo que abraço. É tua a pele que beijo. É teu o cheiro que eu gosto de sentir sempre aqui. É por ti que pico a cebola sempre tão miudinha. É por ti que tomo conta de mim. É pra ti que guardo meu melhor, meu amor. Só pra ti.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Sou todo feito de cacos e demolições, graçazadeus.

‎"Um dia, perguntou-me por que andava eu tão diferente. Respondi-lhe risonha, empregando os termos de Hegel, ouvidos pela boca do meu examinador. Disse-lhe que o primitivo equilíbrio tinha-se rompido e formara-se um novo, com outra base."
{Clarice Lispector}

Romper suas estruturas e fundações sempre é uma experiência interessante. Interessante, não indolor. Algumas vezes tudo que você construiu como "você" se desmancha, vira pó e escombros. Às vezes só sacode, como diante de um terremoto forte.

De qualquer modo, pó ou não, depois você percebe que tem diante de si uma base nova. Melhor, mais sólida, com erros de cálculos evitados. Você percebe que pode restaurar o "você" a partir daquilo, que pode reerguer alguém melhor, mais completo, mais feliz. Há outro base toda construída para fornecer o equilíbrio perdido. E, superados os primeiros traumas da demolição, você se reergue, com outros materiais, com outras cores, com outras vidas dentro de si.

E depois, olhando para o "você" novo, só o que pode vir é a satisfação. Ou, talvez, o arrependimento de não ter se destruído antes, só para poder se construir melhor.


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Poesia úmida

Chove.
Cada pingo me diz
Foge.



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Do meu Facebook pra cá.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Unhas vermelhas

Ághata domina a casa. Se tranco a porta, ela tenta a janela. Se tranco a janela, seus gritos a derrubam. Por Deus, Ághata me invade inteiro!

Suas unhas longas força passagem pelos meus olhos, fincando feito agulha até despejar deles o mel que há. Suas garras de dedos finos escancaram minha boca. Pra dentro de mim ela procura passagem.

Passagem não há. Eu sangro e ela não entende que o sangue nas suas mãos é meu.

A cada lasca que ela arranca do muro que me cerca, eu envergo nova muralha. Mais pedras, mais cimento, mais areia, mais massa, mais depressa! Ela não entende que quanto mais me sufoca e mais se força em mim, mais eu escorrego pra longe, mais eu me refugio na escuridão que resta.

Mas ela vem. Vem de lança em punho, vem de azul letal nos olhos, vem para tentar me abrir e me enxergar por dentro. Vem em vão. Ághata não entende que em mim não há mais caminho pra ela. Não assim. Não quando ela investe em venenos tão fortes, ácidos tão corrosivos e facas tão afiadas. Não com tanta força.

Ninguém entende, eu acho. Ninguém me aceita sem pertencer. E eu não quero pertencer. Sou egoísta. Eu me pertenço inteiro. E aceitar isso é a senha para a ponte elevadiça destravar. Destravar, não abrir.

É preciso mais paciência.

Não é uma questão de me possuir. Entende?

Não! Ághata, você jamais vai entender, porque é passional demais pra isso. Quem tenta me possuir me perde, meu amor. É preciso se deixar possuir. É preciso que eu te queira, do contrário, caminho não há.

E como vou te querer recheada de espinhos? Como vou te querer coberta de escarras? Como vou te querer de armas na mão? Não vou! E enquanto eu não quiser, você não entra, meu bem. Você não chega perto, você não conquista o direito ao afago, ao riso e ao beijo.

Você me quer domar pela força. E pela força é que eu não me entrego, sou mais forte que isso. Sou mais forte do que você. Sou mais forte do que eu!*


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A última frase de Clarice Lispector, na nota de Uma aprendizagem - ou livro dos prazeres.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

"Eu li na Zero"

Para amigos além de uma fronteira*

De Tomas Tranströmer (poeta vencedor do Nobel de Literatura)

I
Fui tão econômico em minha carta. Mas o que não pude escrever
Inflou e inflou como um antigo zepelim
E se perdeu, por fim, no céu noturno

II
Agora o censor está com a carta. Acende a lâmpada
Na luminosidade voam minhas palavras, como macacos na jaula
se sacodem, se aquietam, mostram os dentes!

III
Leiam nas entrelinhas.
Nos encontraremos em 200 anos
Quando caírem no esquecimento os microfones de hotel
e poderemos dormir feito moluscos.

* traduzido da versão castelhana por Roberto Mascaró



Sagitário
De Oscar Quiroga (no horóscopo do meu signo)

As palavras corretas que não são ditas quando necessárias, o tempo as transforma em maldições. São palavras corretas, porém mal ditas. O momento deve ser apropriado para as palavras importantes serem proferidas.

Tudo no jornal Zero Hora de hoje, 07 de outubro.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Partir

Ainda do aeroporto, enquanto os outros nos olham, eu digo minhas últimas palavras pra você. E elas são estranhamento doces. Também é doce o que você me diz.

Ironia: mergulhados no ácido, falamos caramelos.

E de minha parte, mesmo que doce, não há volta possível. Há a dor que se acalma a cada dia. Há o amor que deixamos descansar e mofar no fundo da gaveta do meio. Há os traços do rosto que vamos esquecendo. Há o perfume da pele que já não conseguimos mais sentir. Há a voz que começamos a confundir com outras vozes. Há as músicas que voltam a ser apenas belas músicas. Há os sonhos que vamos apagando, desfazendo, descosturando, bem aos poucos. Há as coisas que o outro disse e que vamos embaralhando... embaçando... até perdê-las.

Não há dor definitiva. Há o tempo e sua corrosão. Há o inferno daqui e há as outras pessoas que chegarão um dia.

Não te disse tudo isso, mas vi. Vi você se apagando de mim. Vi eu me apagando em você.

Não chorei. Fui firme, embora quem nos visse ali, no saguão, desolados, compreendesse qualquer coisa de dor nos meus olhos de mel. Você ainda tinha o quê dizer. Não disse. Eu pedi assim:

— Agora é melhor você ir. Você está se atrasando e se ficar mais um minuto, do jeito que as coisas estão, eu vou acabar dizendo “Eu te amo”. E não é isso que eu quero. Então... Até mais.

Menti.

Não no dizer que eu amava. Amo, louca e desesperadamente amo, para minha própria maldição. Menti quando disse o "até mais".

Porque, meu amor, nós não nos veremos.
Nunca mais.

"Gosto muito de você, leãozinho..."

Meu pai sempre foi de economizar, especialmente com as "porcarias" para mim. Mas lembro de uma tarde em que fui junto com seu caminhão, cidade estranha, de nome há muito esquecido... Em uma loja de beira de estrada, havia um leão de pelúcia. Um Simba. Era bonito. 

Bonito diz pouco. Era lindo.

Tomei a ousadia de pedir, esperando a recusa. Se minha mãe estivesse junto, eu conseguiria facilmente, imperador que era dela. Do meu pai eu esperava uma franzida de testa, uma exclamação de como era caro - e era, realmente - , de como os tempos estavam difíceis... De tudo eu esperava. E de todas as alternativas, só o que eu não esperava era aquele leão nos meus braços.

Meu pai me olhou, olhou para o bichinho. E de alguma forma ele soube minha necessidade tê-lo. Necessidade que mesmo eu não saberia explicar. Sabia era colocá-la nos olhos. Não houve protestos. De carinho imenso, ele pediu o leão sem nem perguntar pelo preço. Naquele dia eu soube que ele me amava, mesmo que não demonstrasse isso sempre.

Da infância toda e da minha voracidade em descobrir a vida que havia por dentro - inclusive do que não tinha vida - o leão sobreviveu.

Enquanto escrevo, eu olho para ele. Ele me olha de volta e sorri. Então eu entendo. Se naquele tempo meu pai, tão defeituoso herói, era imenso a ponto de me amar, isso significa que eu também posso; se tentar bastante.

sábado, 1 de outubro de 2011

Indigno

Não posso lhes contar o que me aconteceu ontem sem esfarelar uma imagem que vocês têm de mim. E como tudo isso que escrevo - e que preciso escrever para compreender - é sobre imagem, então não posso.

Submergidas as causas, reparto convosco as consequências.

Eu me descobri, de repente, indigno. 

Nós nos esforçamos a vida toda para construirmos uma imagem nossa a ser transmitida e propagada entre as outras pessoas. Nossas maneiras, nossos hábitos, nossas roupas, nossas fotos publicadas - ou excluídas, nossas citações, nossos textos, nossas frases e desculpas. Tudo é construído tendo em vista uma imagem. Podemos repetir e até ficarmos loucos -  ou roucos - de que não nos importamos com o que os outros pensam. E, fazendo isso, acabamos de construir uma imagem.

Enfim, essas imagens construídas funcionam relativamente bem. Cunhamos nossa máscara e deixamos que todos a vejam. Por que fazemos isso? Porque queremos ser admirados. Tão admirados a ponto de sermos dignos do amor alheio. E tudo no mundo só quer ser amado, como lembra bem A cor púrpura.

Até aqui tudo ocorre funcionalmente bem. Sua imagem se constrói ou se deforma de acordo com o seu autocontrole. Você decide o que vai deixar as outras pessoas verem de você e o que precisa - ou merece - ser bem escondido.

Mas de repente, num momento de solidão em uma cidade estranha, você se desloca todo do eixo. É que encontrou o autorretrato.

A imagem passada para os outros pode ser moldada, manipulada, construída, fingida, pintada. Mas e a sua autoimagem? Essa não. Você é incapaz de enganar a si mesmo. A hora do espelho sempre chega e aí a verdade nos implode. 

Qual imagem você tem de si? O que você julga merecer daquilo que lhe é dado?

Eu me apavorei quando descobri o quão baixo eu me considero. O quão indigno de tudo, inclusive do salvador amor alheio. Eu percebi que simplesmente não sei levar a sério qualquer elogio. Descobri que deprecio tudo que faço, como se nada fosse bom ou valioso o suficiente.

Minhas poesias eu chamo de ruins, não aceito que qualquer olhar seja para mim, descarto tudo que me apontam como qualidade, acho risível o que os outros chamam de talento, penso que minhas fotografias são só imagens feias, que minhas letras são rascunhos borrados, que meu corpo é deformação e minha alma enganação. Eu me humilho, espezinho e destrato. Descobri com horror súbito que eu me odeio e me acho indigno.

Descobri que ajo como se em todo lugar minha presença fosse só incômodo ao bem estar alheio. Como se as conversas que me destinam fossem amolação demais ao interlocutor. Como se minhas coisas todas fossem bobagens a encher o dia, o ar e a paciência de quem as vê.

Meu Deus. Horror dos horrores. Encontrei com a imagem que eu mesmo fiz para mim. E ela mais monstruosa do que o retrato de Dorian Gray.

Meu lugar era aquele. E daí já me revelo como não queria, mas escrever é essa incapacidade de contenção também. Aquele bar sujo era como eu me via. Aquelas paredes imudas, aquelas prateleiras com merda de rato, aquelas garrafas cobertas de pó, aquele chão com manchas de vômito, aquela puta velha de unhas auzis roídas e cigarro no canto da boca servindo um pastel rançoso. Esse era eu por dentro. A porta quebrada do banheiro imundo, revelando as entranhas do esgoto explêndido. A cigana discutindo com o amante por causa de dinheiro. O velho gordo vertendo sebo e morte na mesa do canto. Tudo era eu. Era isso que eu me destinava. Era isso que eu me fazia mercer. Era a isso que eu me entregava com gosto. Compreendem?

Não. Também eu não compreendi até viver. E você, talvez, só vivendo porderá encontrar seu autorretrato. E poderá, então, maravilhar-se ou, como eu, chocar-se do mais puro horror.

A imagem toda. A manipulação fiel e habilidosa que eu fiz para os outros jamais serviu para mim. A mim ela não convenceu. Eu não fui capaz de comprar minhas próprias ilusões. Na hora de ver no espelho minha máscara de veludo escarlate, rubis e pedrarias, eu só fui capaz de olhar para meu rosto sujo, gorduroso e desossado. Choque.

Eu queria que ter constatado tudo isso me servisse de consolo. Como quem, ao quebrar a parede, finalmente encontra o vasamento e pode consertá-lo. Mas eu não sei consertar. Não sei o que fazer do horror que me foi dado. Minha imagem. Os olhos com os quais eu me vejo. Como trocá-los? Como convencê-los de que eu sou, sim, digno? De que eu mereço mais do que aquele bar? De que eu mereço o salão espelhado com garçom servindo à direita? De que eu mereço o vinho caro da uva mais bem pisada? De que eu mereço estar ali, falar e ser ouvido, fascinar e ser fascinado? De que eu mereço, por Deus, escrever e fotografar, fazer arte e chamá-la assim? De que eu mereço ter minha boca cheia beijada, meu cabelo afagado, minhas mãos presas por outras mãos?

Quando eu vou me convencer de que eu estou aqui? E de que se eu estou é porque alguma coisa de especial eu tenho? Qualquer coisa. Quando eu vou, finalmente, deixar de ver um desperdício e ver uma pessoa?

Quando eu vou, finalmente, olhar no espelho e enxergar o que você consegue ver?

Quando?

Que não demore. Que não demore porque eu já não sei por quanto tempo aguento.