quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O menor lado do triângulo escaleno

Chego tarde, acendo outro cigarro e fumo na janela, enquanto você não está. Tem sido assim agora. Eu venho para tua casa para ficar sozinho. Os carros passam já sem profusão, as crianças quase não gritam e as mulheres poucas andam armadas pelas sacolas. Na praça, cachorros coçam uns aos outros em ritual pagão.

Tua casa respira pelos pêlos no nariz da velha. Ela sentada me observa como se eu fosse um invasor. Mas ela só me olha assim enquanto você não está. Assim que você entrar pela porta, a velha volta seu humilde natural. O que me fere mais. A humildade me dilacera pela pena que eu não tenho.

Não posso ter. É pela velha que você não vem. A velha te impulsiona para fora daqui e de mim. Eu sei. Você ainda não sabe, mas eu já sei. As linhas, os bordados as costuras que você fica até tarde a comprar. As pílulas, as gotas, os analgésicos que você começou a tomar. Tudo coisa da velha. Ela te sussurra essas coisas no peito, quando ninguém mais escuta.

Anoitece, e então eu venho. Venho e fico sozinho. Ou venho e vejo você ser da velha, enquanto eu só estou, sem pertencer.

Agora eu fumo. Fumo e minha fumaça incomoda a velha, eu sei. A fumaça azul irrita a textura vermelha dela. Não faço de propósito. Faço de nervoso que fico. Qualquer hora ela me dilacera. Minha vontade era a de não vir mais. Não ficar esperando na casa que tem o cheiro dela. Não esperar até seus poucos segundos de atenção, antes que você se volte – de novo – toda pra ela.

Sinto-me sem ser. Ela não me deixa lugar na casa. Ela ocupa tua parede inteira, porta à porta. O que me sobra são as migalhas tuas que ela derruba. Minutos entre teu limpar da baba dela e criar da tua própria, já no sono pesado.

Então eu existo para isso? Para os minutos que caem sujos das sobras da velha? Eu existo para você me ver entre o fazer das coisas e o desfazer do sono? Penso nisso quando você entra, carregada de sacolas.

Beija-me rápida, coloca tudo nos lugares, corre pelos cômodos todos, azula tudo com tua presença sem força, com teu rosto sem marca, com tua cara vazia. Quando lembra de mim já é tarde. Bem tarde.

Da janela já só se vêem as prostitutas. Você pergunta sem interesse pelo meu dia. Que quem sabe foi quente. Eu respondo qualquer coisa e penso nos filhos que já não vamos ter – falta espaço na casa.

Você sorri e eu sei que é para a velha. Agora ela toda é humildade e compaixão e carinho. Já escondeu sob o peito a voracidade com que te devora. Protocolar, você pergunta se tenho fome. Digo que não. Pergunta se tenho sono. Digo que não. Deveria perguntar se tenho sentido. E eu responderia que não.

Até eu apagar o cigarro você já dormiu. Meus olhos se abrem no escuro e viram abismos. E eu já não sei mais o que eu faço aqui sozinho. Tenho ímpetos de levantar, vestir minhas calças e sair dessa casa. Mas tenho medo de fazer isso. Medo do mal que pode te fazer a velha. Pintada assim, na tela de Marc Chagall.

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Conto inspirado em Lídia e o Rabino do - e custa-me dizer isso, depois que o conheci na Jornada - Charles Kiefer.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Divulgação


Poema meu concorrendo a destaque aqui. Se gostar, é obséquio votar.
Obrigado.

sábado, 26 de novembro de 2011

Réquiem para Shana Maria Cristina.

Eu queria ligar pra alguém. Eu queria te dizer alguma coisa. Eu queria, mais do que tudo, ter feito um último afago no teu focinho marrom. Mas não consigo fazer nada disso. Assim como não consigo ainda chorar. Estou tão corroído por dentro, meu amor, que não consigo chorar. E é também porque se eu começasse a chorar por ti, eu não conseguiria parar. Viriam as lágrimas também por mim e aí tudo estaria perdido. Se a primeira gota escorre, eu me afogaria e morreria. Como tu. Bem igual, meu benzinho.

Teu cheiro de nova eu ainda lembro, teu corpo todo preto, sem marca nenhuma, tua boca faminta de leite a beber de uma outra que já era minha. A rejeição, tua volta pra casa, por um tempo, me diziam, por um tempo. E foi. Quando te encontrei de novo já tinhas as manchas brancas nas patas e no peito. O desenhado marrom na fuça e nas sobrancelhas e o porte elegante do que me pertenceria.

Eu te ninei e brinquei e corri e pulei na grama verde. Foram nossos anos melhores, não foram? Eu ri dos teus emburramentos, da tua personalidade minha, das tuas graças e dos teus acidentes de percurso. Eu te vi chorar, meu amor. E tu me viste chorar, meu amor. E eu te chamei quando ninguém mais havia. E tu vieste. Sempre. Sempre atendendo ao meu chamado. Sempre fazendo festa quando eu voltava pra ti.

E agora se foi tudo. Todos os amores me abandonaram. O gato preto primeiro, que eu achava tão meu. Depois aquele que cresceu comigo. E agora tu. Por pura injustiça eu fiquei sem ninguém. Ninguém, meu amor. Como tu podes me deixar sem ninguém?

Agora, eu sinto, meus olhos já se molham. Minha cabeça pesa. Minha casa inteira reclama tua falta. Nunca mais o latido forte. Nunca mais os arranhões na porta do quarto – que eu nem sempre abri. Nunca mais a alegria teimosa de me ver. Nunca mais tua cara pensante no vento lá fora. Nunca mais o passeio de carro enquanto a tarde entardecia.

Que faço de mim sem amor, meu amor? De repente eu fiquei bem bem sozinho. Ninguém para esperar por mim. Ninguém para um carinho apressado. Ninguém com quem repartir uma bala de goma.

E me escorre de cada olho uma lágrima. Já posso chorar. Mas não deveria. Não queria. Escorrem duas juntas. Uma por mim. Outra por ti. Eu queria te ouvir voltar, meu bem. De tamancos russos fazendo tec-tec-tec na madeira do quarto. Queria ouvir teu sopro de desagrado, teu choro por querer visitar nossa avó.

Não mais.

Tudo me vai sendo tirado, como se testassem até que ponto eu aguento – sem morte – a solidão. Quão fundo a pessoa pode ir sem despedaçar pela própria dor. E a novidade é que eu já não aguento mais. Eu já não consigo me recompor e me arrastar vivendo em cacos.

Tu, rainha bonita que era, não me deixarias desistir. Diria com tuas bolitas de amêndoas: por mim. Mais um pouco por mim. Mas agora não tenho tua voz para me segurar, teu cheiro para me embalar, teus olhos para me olharem com o máximo amor.

E teu último pensamento não foi deus. Fui eu. E onde eu coloco a dor de te ver morrer se já não há lugar pra mais dor dentro de mim? Eu não sei o que fazer, meu amor. Eu não sei como chorar mais e me esvaziar um pouco. Eu não sei como te chamar e fazer com que tu venhas.

E se eu assobiar daquele jeito mais uma vez? Tu virás correndo e contente ver o que eu quero? Se eu tentar tu voltas, mesmo dos mortos pra me olhar mais uma vez? Não volta, meu bem? Mas não volta por quê?


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Os nomes

Substantivos e adjetivos são modos de chamar e qualificar as coisas e as pessoas. Isso é o que eu ensino para as minhas crianças.

Nomear algo ou alguém é o mesmo que possuir esse algo ou alguém. Isso é o que eu li enquanto fazia minha dissertação.

Palavras. Eu sou cheio delas, todo completo por elas, não sou?

Mas quero falar das palavras que me dão, sem que eu as tenha pedido.

Substantivos, adjetivos, nomes [feios]. Já me chamaram de tanta coisa, sabe?! De antipático, arrogante, falso, chato, estranho. De poeta, louco, escritor, maldito e anjo. Já me disseram que sou simpático, carinhoso, talentoso, educado e sensível. Como também já incluíram na lista que me nomeia irresponsável, desorganizado e incompetente. É. Nunca falta quem nos chame de alguma coisa, quem tente nos definir para nos dominar de algum jeito.

Já me chamaram de amigo, de irmão, de filho e de pai. Já me chamaram de senhor, professor, mestre, doutor e homenzarrão. Já me chamaram de gatinho, de feio e de gordo. E de Thiago Lacerda [hehehe]. Já disseram que sou autoritário, submisso, depressivo, feliz demais, frio, chorão, triste, depressivo e insensível. São contraditórios os nomes, eu sei. A culpa seria minha, que vario tanto, ou das pessoas que não se encontram?

Já me chamaram de sagitariano, de cincodezembrista e de leitor. Já me fizeram neurótico, cínico, infantil, maduro e debochado. Míope, cego, surdo, desastrado, estabanado, ansioso, calmo, cuidadoso, neto e afiliado [de loucos]. Já me chamaram de adotado, de mal-educado e de tinhoso.

Meu Deus. Para cada palavra que escrevo nascem três outras novas. E a lista, percebo, é infinita. Já fui chamado de quase tudo e quase tantas vezes a ponto de me acostumar até a não ser.

Já me chamaram de muito, é verdade, mas só uma pessoa me chamou de amor.

Você.

E porque você um dia escolheu me chamar de amor, eu posso dizer que hoje sou uma pessoa melhor. Pelo teu exemplo. Você me fez crescer e pertencer de um jeito que eu nunca imaginaria.

A tua força é hoje a minha.

Eu admiro muito tua organização, tua dedicação, teu jeito todo borboleta de cuidar de mim. Eu não conheço ninguém mais assim. Forte quando precisa e frágil quando está no meio do meu abraço. Bonita sempre. Amiga em todas as horas. Amante quando me arrepia inteiro. Carinhosa, preocupada, responsável. Criativa, inteligente [e nem adianta me dizer que não], carretel de quando em vez... Apaixonada, apaixonante, leal e envolvente.

Nossa. Eu tenho tantos, tantos nomes para te chamar. Mas entre todos, eu prefiro também te chamar de amor.

E te dando o nome de um sentimento – o maior deles – eu espero dizer, pelo menos um pouco, o que você provoca dentro de mim.

Na mala, seis espadas

Entre as lâminas afiadas essa é a hora de não cortar. É a hora de não vazar o [próprio] sangue em crime passional. É a hora de não gritar, não virar tudo, não quebrar as coisas e não fugir depressa, feito louco.

Agora é hora de embalar, calmamente, cada pertence. É hora do olhar demorado – e já sem mágoa – para tudo que se optou deixar. É hora de botar a melhor capa e entrar no barco já sem pensar na volta, levando o essencial apenas aos olhos.

É hora de deixar alguém conduzir enquanto você atira o coração no rio e segue só razão pelo resto do caminho, respirando fundo, sentindo bem o ar. É hora de aplicar anestesia na alma e entorpecer a vida a ponto de deixá-la [apenas] indolor.

É hora de testar a própria insensibilidade e de fazer do coração tripas. Quem sabe não nasce um novo.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

estúpidos dias
de estupor
estupram minhalma
com tiros de estopim

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Salva-me dela!

Eu hoje pari Virgínia. Não, não pari. Abortei.

Sim, eu hoje abortei Virgínia. E, meu Deus, que aberração mais deformada. O artista dá a luz àquilo que cria. E foi com horror que eu vi brotar essa menina. Nenhum outro escrito fluiu com a mesma independência que ela. Nenhum me dominou tão inteiro. Nem quando falo de mim, consigo ser tão sufocado pelas letras.

Virgínia saiu de minha cabeça rasgando-a, como Atenas fez com Zeus. Ela me apavora. Começou como um conto simples, fácil, de história quase zombeteira. E de repente aquela intensidade. De repente aquela certeza de que eu mesmo não poderei ler o que escrevi. Não sem choque. Não sem náusea. Não sem pavor. Pavor do que nasceu de mim. Ou do que saiu de mim, como sai um verme expelido da nossa carne.

Antes de uma dúzia de folhas completas ela não me largou. E quando me largou, deixou arranhões no braço, dores na cabeça e uma ânsia de vomitar no mundo. Virgínia me apavora. Antes meus personagens também foram assim, abortados, eu disse. Mentira. Agora que me veio Virgínia, vejo que todos os outros eram anjos ternamente nascidos.

Virgínia me choca tanto porque é humana. Sua crueza nada tem de sobrenatural ou fantástico. Nada que pudesse me consolar. Nada que pudesse me dar indícios de ficção. A Virgínia que escrevo tem a crueldade de coisa humana, que cheira à carne.

Queria publicar ela inteira aqui. Não sem advertência. Já ensaiava dizer: Não leiam. O conto é longo e não vale o olho. Queria dizer que eu mesmo não o revisei por temê-lo. Assim eu tentaria fazer desistir aqueles dois ou três que, vendo o tamanho, ousariam começar. Eu queria expor ela para o mundo e assim ela não seria mais só minha. (Ou eu é que não seria mais dela? Eu queria jogar Virgínia nos outros como quem esconde, em um bolo de maçã, a mais funesta maldição? Queria eu passar a você o que senti, como forma de purgar o que fiz? Como forma de diminuir minha culpa por tê-la nascido?)

Não sei. Escrevo sobre ela agora, como jeito de também tomar distância, de me lembrar que ela é só oito letras, que eu a fiz com palavras, que eu a posso esquecer e que eu a posso matar com um punhal de letras.

Mas Virgínia não morreria sem luta feroz. Sem mordida. Sem me arrancar sangue do rosto. E ela gostaria disso. Ou eu é que gostaria? Virgínia me mortifica porque temo encontrar na menina qualquer coisa minha. E eu lhe dei minhas coisas, traços meus, quando ela ainda não era monstro. Quando ela ainda não havia pulado o muro e entrado no mato.

O que eu fiz de Virgínia? O que Virgínia fez de mim?

Na minha tela ela descansa. Ela espera. Ansiosa, eu sei. Os outros morrem, os outros se limitam ao papel, os outros eu controlo. Virgínia não. Ela é demônio que me possuiu e que eu não sei exorcizar. Ela me faz um mal que eu mesmo não posso explicar racionalmente. É novo. Isso é novo. Não é mais arte. É bruxaria, Virgínia!

Ela não me deixará. E eu não a deixarei. Ela precisa pagar. Mas é mais forte que eu. Posso vê-la. Na porta da casa que lhe fiz. Os olhos verdes que lhe dei. Os cabelos já sujos. As sapatilhas recém lavadas. A boca fina de sorriso mau, como que a dizer “Vem! Vem brincar!” só pra depois gargalhar. As sardas finas. O corpo escorado no umbral. A torneira do tanque ainda pingando. O pano sujo no chão ao seu lado. A cara de quem sabe que me domina...

Socorro. Sufocação.

Ela espera por mim. Espera por mais. Espera pra existir mais, pra completar sua história. Para ir até o fim. E ela nem me deixa colocá-la aqui. Não me dá essa liberdade. Não me permite a ousadia de me desfazer dela. Virgínia quer o fim. E Virgínia sempre tem o que quer.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Lame Love

O primeiro clique pegou teu rosto. O segundo teu corpo. O terceiro teu umbigo. No meu quarto, tuas calças no chão. Outro drinque, por favor.

Qualquer música toca tudo com uma batida que diz "Have I lost my soul, Have I lost myself. I used to be such a romantic, I used to be a good girl". Canto junto, mexendo os lábios com lentidão, passando os dedos pelo teu peito. Tu me perguntas do que fala a música. De amor. Minto.

Sempre menti que era de amor.

Tu fumas outro cigarro. E eu não gosto que fumem aqui. Já não importa. É só mais um pouco de ti que ficará impregnado nas minhas cobertas, nas minhas cortinas e no meu cabelo. Só. Quando tu fores embora. Vais ir logo, por falar nisso? Tenho mais o que fazer.

Revelar as fotos, terminar minha música, editar o vídeo que estou devendo desde setembro. Bebo mais alguma coisa. Gole fundo. Sufoco. Mas pelo menos o gelo faz escorregar teu gosto pra mais fundo de mim. Para lá onde não incomoda mais a aspereza das tuas mãos, por exemplo.

A música acaba e a coloco de novo. Tu me perguntas se gosto. Não. Minto. Minha pele está suada. Eu queria um banho. E tanto por fazer. Vocês poderiam pelo menos ter a gentileza de ir embora depois? E eu que já odeio as novelas românticas.

As mãos no teu corpo, enfeitiçando. Não para tê-lo mais. Para que te vás, de uma vez. Como os cachorros e os corvos que já se recolhem lá fora. Anoitece, meu Deus, custa me devolver a solidão?

Mas a tua [solidão] é maior que a minha. E gulosa. Pensas que cada carinho já é saudade. Não é. É nojo. De mim. Por me ter tanto nojo é que me entrego a ti. Não é amor, meu bem, é castigo. É autoflagelo.

Finalmente tu pareces lembrar que existe outra vida, longe da minha. Ergue as calças do chão. Pergunta, distraidamente, sobre os cliques. Respondo que devem ter ficado alguns bons. Minto. De novo. É hábito.

É hálito. Colocas de novo tua boca suja na minha. Sinto gosto de cinzas. Mas faz parte da redenção. Mas faz parte do meu castigo por algum dia eu ter acreditado.

Em outro tipo de amor.

Ballerina derramada

Outro dia você não veio. E gastei por nada a fita das sapatilhas azuis. Gastei à toa o pulo ensaiado no ar. A maquiagem bonita, até o batom, tudo em vão.

O perfume que estava na última gota. O cabelo arrumado assim, amarrado só pra você ver. E nada. Em nenhuma cadeira você esteve. Meus rodopios, meus floreios e bordados. A espera toda e o brilho do olho, tudo perdido no ar. A luz bem acesa do palco e do sorriso. Foi só pra você, meu amor. Desperdício.

Os versos bonitos que ensaie pra cantar. O violão que aprendi a dedilhar. Cada compasso da dança era teu. E nada. A rosa que colhi bem madura e coloquei entre os seios, perfumada, exuberante e rubra a rosa. Até amanhã está morta. Amanhã você vem?

O gliter derramado no cabelo, a lágrima pintada no olho, as meias coladas nas pernas. Eram pra ti,meu bem. A música escolhida no disco, o champanhe gelado no camarim. Os morangos escolhidos na feira e cobertos de creme amarelo. Tudo é para o lixo agora?

As fitas penduradas na sombrinha. A corda esticada até o fim. A pele limpa cheirando alecrim. O banho demorado de espuma colorida. Era, tudo, pra você. E outro dia você não veio. Decerto foi ensolarar outro lugar. E assim fez-se noite dentro de mim.

Noite entre rostos estranhos, que aplaudem e aplaudem o espetáculo que não é deles. Que é teu. Que é só teu. E que você não quis.

sábado, 12 de novembro de 2011

O menino deus

Para me inspirar eu preciso respirar. Fotografia, música, arte. Eu preciso colocar de volta no peito tudo que eu já senti. E então bater, bater, bater. Para que alguma coisa de dentro possa jorrar. Às vezes sangue. Às vezes sêmen. Às vezes nada.

E o nada banal é que me destrói. Quando eu tento e não consigo espargir palavras no papel. Escrever me dá significado. Mas isso eu já cansei de dizer.

Escrevo sobre sentimentos. Eu os materializo, acho, na falta de matéria desse papel digital. Escrevo não o que estou sentindo. Mas o que já senti. Eu me uso. Uso os restos do que ficou. Componho com sobras banquete.

O que escrevo não pertence a ninguém mais que o próprio escrever. O que me fascina não é mais fazer íntimo diário. Para isso tenho as agendas velhas de fecho. Hoje o que almejo é toda criação que se dá pela palavra.

O código posto a serviço de um homem para torná-lo não menos que Deus. O que me encanta é o criar das letras. A dança que vou regendo em compassos submarinos. Preposições de pés no alto, adjetivos de malha colada, verbos verbando lépidos enquanto as crases permanecem graves, na platéia.

Escrevo para me consumir e guardar. E também para que alguém possa encontrar eco nos muros que pinto. Escrevo porque em algum momento fui também ecoado. Por Clarice, por Caio, por Virgínia, por Ana, por Renato, por Katherine, por Sílvia, por Agenor, por Fernanda e por Clarissa.

Escrevo porque sou meu personagem. Minha vida eu dou aos outros. Escrevo com outra letra o que eu sinto por dentro. Aqui, só coloco para secar as máscaras que pinto.

São sentires fabricados. A menos que eu me exponha todo. De resto é arte de partes. Não faço espelho de tolos. Nem de prata. Nem de ouro.

Faço canção de ser cantada em outra boca. Como pela menina do palco que falou minhas palavras. Deu ar ao que era meu sopro [de vida].

Não escrevo para que me tomem. E quem não quer me ler, que feche os olhos. Tantos fecham, meu Deus, e já não reclamo mais. Também isso aprendi. O texto chega aonde dele for preciso. Nunca além. Não almejo mais grandes oblações. Quero canto quieto. Porque toda palavra que viaja, se perde.

Não me cobrem, então, realidade, referência ou direitos de imagem se usei alguém. Escrever é não ter compromisso. Ser omisso com a ética e com qualquer decência cruel. Tudo em nome do seu próprio fazer. Tudo em nome de uma arte que em dois segundos pode se tornar de ninguém. Ou de Lispector. Ou de Jabor. Ou de uma menina paraibana que viu e gostou e achou que era dela.

Sim, é pelos outros que vamos. Traço por traço. Desde os cadernos da primeira série. Compondo e desfazendo e repetindo sem parar o abecedário. Tudo para um dia firmar a glória de ser espancado. Pela máquina de escrever. É para os outros que nos doamos, nos reviramos, nos destroçamos e cortamos tudo um pedaços bonitos de se verem.

É pelos outros que cometemos o crime de expor até a vida que é alheia e que nos foi tocada. Mas o texto, depois de saído, não é mais do outro. Como não é meu. Ele é de si. Como o homem deve ser do homem, depois de feito o pecado da maçã. Como o Deus deve ser do Deus, sem que isso seja questionado aqui.

O texto é tudo. E todo resto é vazio.
Fim

Tão Alto


Feche as janelas, apague o dia dentro de casa. Deixe só a luz que consegue passar pelas janelas marrons. A luz vermelha, vinda em raios pelas frestas, iluminando a dança saxofônica da poeira.

Deite no chão. Esqueça de tudo mais. Pense só no assoalho tocando cada ponto teu, se abrindo para melhor conter teu corpo. Feito mãe. Deixe qualquer som te levar. Qualquer som em uma língua que você desconheça. Que não te convide a pensar. A concordar. A sentir, sentir com a razão.

Deixe o coração mergulhado na poeira debaixo dos móveis. Você não precisa mais dele. Não desde que eu me fui. Estenda as mãos. Ou não: passe-as pelo corpo, assim. No ritmo sentido da música. Dos gritos que gritam pela tua alma. Da música que tem tua voz, ainda que distante, ainda que incompleta e incompreendida. Deixe-se.

Abandone-se em mim.

Em mim que te pedi a paz de não existir. A paz de não te ver. A paz de não reconhecer teus olhos no fundo das bacias com água. Eu te pedi paz. Agora venho, sensual, sussurrar que esfregue teu corpo no chão. Que deite na minha voz rouca e se afogue de mim.

Eu sei. Contraditório. Eu sou. Se deixe levar, apenas, então. As roupas. Os copos quebrados. Você sobre os cacos, amor, porque tudo que voa alto e é bonito na queda. E colorido, meu bem.

Estou morto porque quis estar. Falecido e enterrado no cemitério que agora tem sol demais. Estou morto lá. E estou morto aqui, dentro de ti. Porque eu pedi assim. Eu quis assim. Eu implorei. Bem assim.

E agora que estou morto percebi a paz de deserto lunar. E não a quero. Amor. Então voltei, pra dentro de ti. Pra te dizer assim: mergulhe no chão. Afogue-se na poeira, nos objetos e dejetos e nos pêlos negros do gato branco.

Afogue-se porque agora eu não quero paz. Me enganei. Quero tuas orações antes de dormir. Tuas ladainhas ensaiadas, tuas rosas cortadas, tua boca decorada de batom. Quero tudo e nada toco. Morto. Eu queria descansar pra não te deixar descansar. Pra não ver outra boca comer a tua. Outros olhos lamberem os teus. Outra alma te engolir o corpo inteiro. Não!

E eu aqui? E a solidão minha? E a cruz sobre meu túmulo que só faz sombra no túmulo alheio? Não. Eu quero de volta. Você. Eu quero. Eu preciso para não te enlouquecer. E como faz para tudo voltar. Para meus cortes fecharem, meu sangue escorrer de volta pra dentro, a faca nunca ter entrado naquele jardim. Enquanto o sol se punha. Minha boca. Teu pescoço. Nunca mais?

Socorro. Meu amor. Salva-me do nada. Do vazio. Da minha velhice de violeta murcha. De trigo que apodreceu sem ser colhido. Por Deus, eu só quero ser teu pão. Eu que te neguei farelos. Como faço agora? De onde volto? Porque estou nos raios de luz que voam alto e pra longe. Estou congelado no ar dos salões. Onde ninguém pode me tocar como você um dia tocou.

Volto como? Não volto, amor? Diz que ainda me quer. Que ainda existo para você. Que não preciso da minha paz maldita. Diz que me espera no banco de tábuas claras. Diz que me quer mostrar a tatuagem que fez para mim. Diz que o sol ainda não se pôs naquele dia. Naquele jardim. Diz que vai me entregar as cartas do teu futuro. Diz que as pedras ainda esperam por nós. Que as folhas voltarão a cair num outono irreal. Diz amor. Diz que eu volto. Diz que eu estarei lá, esperando. Diz que voaremos juntos enquanto ouvirei tuas palavras bonitas. Diz que não foi em vão a tinta roxa das cartas não escritas. Diz que valerá quando estivermos juntos. Diz que estaremos. Por favor, antes que a música acabe de novo e eu volte para. "nunca mais" Lá.

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Escrito ao som de The Gift.

domingo, 6 de novembro de 2011

En.torpe.cer

Se não há a bebida
da geladeira,

sempre há a poesia
da prateleira.