terça-feira, 3 de agosto de 2010

Era um homem com seu amante

Eu ouvi a voz dele primeiro entre sonhos, mas droga, já era quase meio-dia. Ainda deitado eu conseguia imaginá-lo na varanda de casa. Cabelos amarelos e compridos, boné, camiseta e bermuda. Engraçado, é inverno, estou debaixo de um edredom e dois cobertores e não consigo imaginar ele de calças compridas. Acho que nunca o vi assim. Na minha imagem ele acaricia a cabeça da minha cachorra, desajeitando o lacinho de petit poá.

Meu pai, ainda na porta, aceita a prancheta e escreve seu nome – por extenso – no local assinalado com um “x”. O moço loiro confere a assinatura, lhe entrega o pacote, sobe na moto e parte. Eu agora imagino minha mãe saindo da cozinha, pedindo o que há no pacote. Meu pai dizendo que é meu. Ela sugerindo que abram. Não abrem.

No quarto eu já me vestia, por saber o que há no pacote. Mas toda ansiedade foi domada. Vi o pacote azul sobre a mesa de jantar e passei reto por ele. Criei coisas para fazer. Almocei. Liguei o computador, li e-mails. Voltei à sala e levei o pacote para o quarto. Mais um segundo e minha mãe se encarregaria de abri-lo. Ali ele ficou, sobre a cama. Como explicar? Eu espero há mais de oito meses por esse pacote. Desde que uma professora minha, muito querida, me mostrou um e-mail.

Talvez eu queira reviver um conto de Clarice. Felicidade Clandestina. O que há no meu pacote, afinal, é um livro.

“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só pra depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.”

Por fim eu rompo com dentes e unhas o plástico azul: ele surge, compacto, capa dura, à espessura de um tijolo de construção. Ainda pelo plástico transparente eu vejo uma fita negra que o reparte. Meu livro tem marcador de página em cetim. Bem brincava eu “minha Bíblia”, “meu Eterno Testamento”. Chegou.

Eu o abro, de vagar, apreciando o toque da capa, o cheiro das folhas, o peso na mão. Eu folheio as primeiras páginas, todas negras. Muito propício; eu penso e rimos, o livro e eu. Eu me perco naquela escuridão pautada por “uma biografia”. O índice como constelação de estrelas brancas. A epígrafe que pulo, quebrando uma regra minha. Por fim a primeira página branca. “Introdução A Esfinge”.

Leio: “Em 1946....” Paro. Será agora o melhor momento para começar? Será esse o melhor lugar para ler? Penso até em me chantagear com o livro: “Não, Vinícius, só irás lê-lo depois de terminar o artigo que estás me devendo”. Eu sei que essa leitura é uma viagem sem volta. Essas 647 páginas, uma vez começadas, serão meu único e mais intenso objetivo de vida. Eu sei que tudo vai ser posto de lado quando eu me entregar ao livro. Então eu o fecho, com o pavor de minha intensidade.

Eu o deixo sobre a cama. Vou cuidar de coisas urgentes que de repente invento. Olho com cobiça e gula cada vez que passo pelo quarto. Mas eu sei que ele vai estar ali. Pelo tempo que eu quiser. Para sempre. Meu livro, Meu livro.

PS¹: Quem não entendeu o título, leia o conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector.
PS²: O trecho do texto entre aspas e em itálico pertence ao mesmo conto supracitado.
PS³: Qual é o livro de que escrevo? Quem tem sabe. Quem não tem pode descobrir pelas pistas que dei.

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