quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Reflexões sobre minha escrita

A escrita para mim veio como um processo de cura, tal como se deu com Caio F. Abreu e Clarice Lispector. O mais importante no meu ato de escrever era promover a catarse, ou seja, purgar minhas emoções. Dentro dessa perspectiva, fui conduzido a uma espécie de “arte pela arte”, conforme as teorias similares às de Hegel.

Minha escrita estava, então, restrita ao meu próprio foco, em detrimento ao do leitor. Para mim, construir textos herméticos e enigmáticos, era uma fonte indescritível de prazer. Eu pensei, por algum tempo, que com isso fazia arte. De fato, naveguei fundo tanto no cultismo, quanto no conceptismo, valorizei complexidades de formas e conteúdos, com minha linguagem rebuscada e minhas idéias truncadas.

Imerso em um processo caótico, na medida em que simbolista, encontrei na prosa poética palco derradeiro para minhas charadas textuais. Ler meus textos não era simplesmente ler, era antes decifrar.

Se por um lado essa proposta de interpretação aberta dava vazão a sentidos polissêmicos, construídos pelo leitor; por outro, deixava o mesmo leitor confuso e perdido. Afinal, estamos acostumados a lidar com teorias de certo x errado. Tudo que foge e penetra no campo do “possivelmente” e do “provavelmente” gera insegurança e, portanto, desagrado.

Ninguém quer ler uma coisa que não compreende. Ninguém quer terminar com macaquinhos na cabeça. Para mim, no entanto, a narrativa simples, o vocabulário básico, a organização textual padrão, não passava de mera “contação de histórias”. Eu sabia fazê-la? Sabia, mas não representava de forma alguma um desafio “artístico”.

Eu traduzia “arte” por “complexidade”. Logo, quanto mais complicado, mais artístico um texto seria. Agora percebo, no entanto, que a verdadeira riqueza está na simplicidade.

Quando mais simples e compreensível um texto é, mais ele pode chegar ao leitor. Mais efeito ele tem. Que se dane minha vaidade de escritor, minha busca embebida em soberba pelo complexo elitista e narcisístico. O que importa mesmo é se fazer compreender. É tocar, emocionar, fazer sentir... Este é o sentido da arte. Se eu conseguir fazer isso de forma complexa e rebuscada, ótimo, mas se eu não conseguir, que minha escrita seja simples e pura, como água. Afinal, o champanhe pode ser mais complexo e fulgurante, mas só a água é capaz de matar a sede.

______________________
Obrigado, Professora Dr. Vaima, por me fazer compreender mais isso com suas palavras: “Escrever é um compromisso com a humanidade. Você nunca saberá o alcance de suas palavras nem a intensidade do bem que poderá estar fazendo. Você tem esse poder, por isso não se permita parar de escrever. Seria um crime.”

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Um Gaveteiro

Foi então que a avó, meio fada, meio bruxa, deu à menina o gaveteiro. Todo em madeira trabalhada e pouco maior do que uma caixa de bom-bons, o gaveteiro tinha três gavetas, todas muito bem trancadas.

— Minha querida... Este gaveteiro me foi dado quando eu tinha a sua idade. Eu jamais tive a coragem necessária para abri-lo, mas confio que você a terá.

A simpática velhinha entregou-lhe também uma chave, muito dourada, explicando que ela serviria em todas as gavetas.

— Mas vovó, o que tem aqui dentro?

— Dentro de uma destas gavetas está a felicidade.

— E das outras?

— Não sei...

Despediram-se emocionadas, porque a menina bem sabia que a avó não duraria até o seu próximo aniversário.

Chegando em casa, coração aos pulos, a jovenzinha foi ao quarto, experimentar a chavinha nas gavetas. Antes que conseguisse girar e abrir, no entanto, chegou uma de suas amigas.

Curiosa com aquela caixa antiga, a amiga quis saber o que era. A menina, com sua inocência e bondade contou. A outra arregalou muito bem os olhos quando soube que ali estava a felicidade.

— E você vai abrir?

— Acho que vou...

— E não tem medo?

— Medo? De quê?

— Ora, pense um pouco... se a felicidade está em uma destas gavetas, o que estará nas outras?

— Eu... Eu não sei...

— A felicidade é algo tão precioso que deve estar muito bem guardada. Aposto que nas duas outras gavetas estão castigos terríveis.

— Você acha?

— Tenho certeza! Mas vá em frente... Abra...

— Será?

— Lógico. Quer dizer, eu não abriria se fosse você... Não me arriscaria sem saber em qual delas está a felicidade... Mas se você quer tentar...

A insegurança havia virado uma sombra densa em volta da menina. Mudaram de assunto e foram brincar de bonecas. Mas mal a outra tinha se ido, a pequena parou bem em frente à caixa. E se a amiga tivesse razão? Se ao invés da felicidade, ela se deparasse com coisas terríveis. Conhecia bem a história de Pandora, ah, conhecia. Da última vez que uma caixa fora aberta, o mundo virou no que virou.

Naquelas gavetas poderia haver coisa muito pior... Ah, se podia.

Como esquecer, no entanto, que tinha a felicidade nas mãos? Que por um giro de chave poderia ser feliz para todo sempre?

Infelizmente, o medo foi maior do que a vontade de ser feliz. E quando estava velha velha, a menina passou o gaveteiro à sua neta, dizendo-lhe assim:

— Minha querida... Este gaveteiro me foi dado quando eu tinha a sua idade. Eu jamais tive a coragem necessária para abri-lo, mas confio que você a terá...

- - -

Ser feliz é uma responsabilidade imensa... às vezes não somos felizes por puro medo. Medo do que pode nem existir. Você tem a chave? Então abra o gaveteiro.

____________________________
Este meu texto encerra uma espécie de tríduo à felicidade, que começou com As Meias. São três textos que há tempos eu pensava em escrever... Percebam que em todos a felicidade é tomada como algo material, que pode ser dada, escondida ou trancafiada... São mensagens que fazem refletir um pouco, ideais para este fim de ano. Ideais para eu também saber o que ando fazendo com a minha felicidade.

Um obrigado especial ao Sarico, exímio jornalista de quem já fui discípulo, que divulgou o texto anterior em seu blog.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Onde se esconde A Felicidade?

Cansado de buscar em vão, o jovem discípulo recorreu ao velho mestre. Depois de subir altas montanhas e passar por perigosos precipícios, ele chegou em frente ao sábio das nuvens.

— Caro mestre, venho em sua busca para que o senhor me diga só uma coisa. Eu estou cansado de procurá-la e jamais encontrar e, sendo o senhor tão sábio, queria que me dissesse: onde se esconde A Felicidade?

O mestre docemente sorriu. Ao invés de responder, fez-lhe outra pergunta:

— Diga-me primeiro, meu jovem, quantos pregos você viu hoje?

— Pregos, mestre? Bem, não me recordo de ter visto qualquer prego... Em todo caso, o que isso tem a ver com A Felicidade?

O mestre não lhe respondeu. Apenas coçou a longa barba e, encarando-o, falou:

— Eu posso dar a resposta que você procura. No entanto, como A Felicidade é algo muito valioso, não posso dizer seu paradeiro sem cobrar o devido preço.

O discípulo ficou consternado. Então o mestre vinha agora com cobranças materiais? Não estava certo. Mas pela felicidade...

— O que queres, meu senhor? Todo ouro do mundo? Todos os camelos do deserto? Diga-me, quanto vale A Felicidade?

— A Felicidade não tem preço. No entanto, para dizer-lhe onde ela se esconde, eu exijo que me tragas O Prego.

— O Prego?

— Sim. Existem por aí muitos pregos, você sequer os nota... Mas há um que é especial, é o prego definitivo, a essência de todos os pregos, a síntese do que é um prego. Não sei se me faço compreender...

— Claro que sim, mestre. Queres O Prego, ou seja, o prego mais especial que eu puder encontrar. É isso?

— Exato. E não volte aqui enquanto não tiver este Prego para me dar.

Pensativo, o discípulo desceu a montanha. Do que seria este prego? Na certa era enorme, quem sabe de ouro, ou então de diamante... Encontrando no caminho outro discípulo do mestre, resolveu compartilhar com ele as suas especulações. O homem, que era muito inteligente, pensou um bocado e depois respondeu:

— Ora, o prego mais perfeito deve ser feito com o material mais perfeito e fino: a porcelana.

Um prego de porcelana... Realmente, a porcelana era o que havia de mais rico e maravilhoso no reino.

Agora sim, o jovem foi à aldeia tomado pela idéia de encontrar este Prego. Daquele dia em diante, ele passou a observar que o mundo era feito de pequenos pregos. Havia pregos nos casebres e nas mansões, nas banquetas e nos balcões, nos berços e nos caixões... Milhares e por todos os lados. Na cruz havia três, nas paredes, incontáveis, até no chão ele os encontrava... Mas nenhum era de porcelana. Obcecado como estava, passou mais de 20 anos em uma busca vã.

Foi quando chegou à aldeia a notícia de que o sábio das nuvens havia falecido...

O homem chorou muito, porque além de seu mestre e amigo, ele era o único que sabia onde encontrar A Felicidade... E agora levara com ele o segredo.
Naquela noite, no entanto, o homem sonhou com seu mestre. Nas brumas oníricas, o velho dizia assim:

— Meu jovem discípulo... Quanto tempo.... Por que jamais me procuraste?

— Ah, mestre... porque jamais encontrei O Prego. Todos estes anos eu encontrei pregos grandes, pequenos, tortos, enferrujados, despedaçados... Mas nenhum da maneira que o mestre me pediu.

O sábio sorriu com bondade. E lhe disse assim:

— Então agora você está pronto para saber a verdade sobre A Felicidade. Essa Felicidade que você procura é como O Prego. Nenhum prego é definitivo ou melhor que todos os outros. Cada um é especial e contribui para formar o todo. Você jamais encontrará. A Felicidade que procura, porque ela não existe, é frágil demais... No entanto, o mundo é cheio de felicidades, como os pregos que você encontrou e aos quais não deu valor, porque procurava um único. A felicidade o cerca e você não percebe, porque a quer grandiosa demais. De hoje em diante, preste atenção às pequeninas e diferentes felicidades que se concentram à sua volta. Abrir os olhos é uma felicidade, o sorriso de uma criança é outra, o vôo de uma borboleta é mais uma, e que felicidade pode ser maior do que olhar para uma estrela? Sentir o cheiro de uma maçã é uma felicidade indescritível, assim como tomar um banho quando você está cansado, ou ouvir uma música alegre, quando você está triste. Basta que você perceba estas pequenas felicidades e se alegre imensamente com elas, assim encontrarás, sem dúvida, A Felicidade


Quando acordou, o discípulo se deu conta do que o mestre falava. A Felicidade, que ele tanto procurou, não existia. Mas ao olhar pela janela, lá no horizonte, uma felicidadezinha toda quente e nova nascia, iluminando o céu. Surgia com o sol um novo dia que seria, este sim, repleto de FELICIDADES.

http://img85.imageshack.us/img85/6508/newcopy.jpg

Desejo que em 2010 você saiba dar valor a todas as felicidades que já estão na sua vida.
Desejo que você aproveite cada instante, sinta cada momento e se emocione a cada conquista.


Que bons ventos soprem sempre em seu caminho.

Abraços,
Vini Linné

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

As meias

De natal, ela esperava ganhar uma felicidade, não A Felicidade. Para ela bastava uma felicidade qualquer e nem precisava ser muito grande. Tinha o coração tão apertado que a felicidade completa sequer caberia. Qualquer felicidade usada já serviria, mesmo gasta, mesmo empoeirada, mesmo rasgada. Ela poderia remendar, não poderia? Poderia pintar, poderia limpar, poderia colocar na lapela e poderia fingir que era nova. Não poderia? Não? Por que não?

Ah, com que orgulho ela mostraria a todo mundo aquela felicidade micha, amarelecida pelo desuso. Ela correria nas ruas, como se fosse uma criança, e não a velha que era, e exibiria a quem quisesse ver: “Você ganhou uma bicicleta? Grande coisa, eu ganhei uma felicidade, olha. E é só minha, de mais ninguém no mundo!”

Quando chegasse a noite, ela dormiria exangue, agarrada com unhas sujas à felicidade puída. E, no raiar do sol, se amanhecesse viva, é claro, veria com olhos novos a felicidade velha. Veria com outras cores e ainda com mais alegria o presente do Pai Noel. Porque também com as crianças é assim: na manhã seguinte tudo brilha ainda mais intensamente. Acho que é medo da felicidade só ter existido em sonho.

Fato é que, ao invés da felicidade, deram à velha um par de meias de lã. Ela sorriu agradecida, embora acabrunhada. É que era verão... e ela tinha tão pouco tempo. Qualquer coisa que ganhasse, não viria a usar. Por que não lhe deram a felicidade? Mesmo que curta, pequena ou feia, dessa ela faria bom uso. Mas eles não entendiam... Queriam aquecer pelos pés o gelo que lhe faziam no peito. Deram-lhe as meias, foram-se embora do asilo, para a ceia-natalina-em-família. Como em família, se a vó ficava ali? De meias na mão e nenhuma felicidade no bolso?

Post Confuso (a pedidos)

Odiar o natal é cult... Mas eu não odeio. Logicamente, ele não tem para mim qualquer magia que outrora tinha. Também não viro repentinamente cristão devoto por ocasião. Mas natal tem festa, com comidas e bebidas e tem presente. Visão deveras materialista, desculpem. Tem mais, eu sei. Como por exemplo: no natal, ao menos no natal, as pessoas fingem que são boas e que gostam umas das outras. Além disso, elas escrevem cartões com votos bonitos, embora insinceros. E tem panetone, que eu gosto.

Calor. Calor. Calor. Disso eu não gosto. Verão aqui é inferno. Avalon cresce em tamanhos e manhas, a olhos vistos. Clichê. Post confuso, antes que eu esqueça, é meu fluxo de consciência. Embora o começo fosse bastar por si só. Gostei do tom infantil em uma parte e lembrei de outro livro. O que me faz lembrar que preciso estudar para a prova de mestrado... O que me leva a relembrar o ódio mortal por pessoas que “não podem fazer nada”. Nossa cabeça é mesmo um turbilhão. Turbilhão que, aliás, só funciona quando quer. Post confuso foi sempre de um parágrafo só. Por que eu dividi? Nem importa. Está quente e eu queria uma árvore só pra mim. E queria ligar para Ela, perguntando a que horas virá. E eu tenho sede, mas nenhuma vontade de ir tomar água. Tenho vontade é de escrever, mas nenhuma inspiração legítima ou original. E os cachorros latem enquanto papagaios gritam. Ninguém ainda descobriu qual é a avezinha da vizinha? Não. Só escutamos os gritos e ficamos intrigados. E agora vou ir adiantando o jantar de natal, que ficou aos meus encargos. Ao menos de cozinhar eu gosto. É como fazer bruxaria, é Como água para chocolate.


Felizes Festas! (escrito em vermelho, que é cor que eu gosto.)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Caçador de Serafins

Meus serafins estão de folga hoje, folgados que são. Estes anjos na verdade já nem me servem, estou disposto a colocá-los em escambo: troco-os por querubins usados ou elfos de importação. Ah, que nada. Só preciso é que trabalhem, que suem as barriguinhas rosadas, que penem até a última pluma das asas. Preciso que rendam, que minerem, que me explorem à gota máxima da saciedade.

Porque eu só queria voar nas asas dessa louca frota, descer em nuvens encardidas, a poluir o vento com pensamentos pretos. Mas nunca mais me chegam à janela os serafins. Beija-flores, borboletas, pardais e quero-queros, esses sim, mas onde estão meus serafins? E a janela nem é alta, até os falecidos gatos a conseguem pular.

Reduzido que estou, sem guardas em meu castelo, sem cavalos na carruagem, sem tronos no salão, cem coroas na cabeça, nenhum serafim? Procurem nos cantos, debaixo dos tapetes, enroscados nas teias de aranha, algum há de ter ficado para trás.

Não, nenhum ficou. Apesar isso, ainda coloco mel e água em dedais de ouro, só esperando o momento certo para eu, enfim, puxar a corda da gaiola.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O Mercador

Ele disse que por dois xelins me venderia um segredo. Segredo de quem? eu perguntei. Meu, ele respondeu. Fazia sentido. Afinal, ninguém pode vender o que não lhe pertence. Pensei bem na proposta... Não era caro, especialmente se o segredo fosse valioso. Pois eu tinha exatos dois xelins no bolso. O pão que esperasse.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Apartamento 201

Mandou então que eu mantivesse nos olhos a venda e na boca a mordaça. Então eu não podia ver? Não. Falar também não podia? Não. Embora me mantivesse preso em outras teias, não amarrou minhas mãos. Isso é o que mais me assusta. Ela não amarrou minhas mãos, entendem? Eu poderia, portanto, arrancar a venda e a mordaça. Mas não arranquei...
Em troca de quê? De beijos passados, de toques amanhecidos, de sussurros vencidos. Eu me entreguei todo por muito pouco e me fiz prisioneiro cativo daquele cansaço.
Jogado no calabouço frio, irremediavelmente lânguido, desejava-me as torturas na pele. E as torturas não eram outras senão aqueles toques, rebocos de um amor vazio, arremedos de uma paixão doente.
Então era assim? Era. Eu era prisioneiro sem grilhões nos pés, sem algemas nas mãos, sem grades em volta e sem cadeado na porta.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Das lições de ontem

(texto dedicado ao Nelson)

Eis que eu precisava para hoje dois papéis que conseguiria ontem, na faculdade. Para evitar as viagens de ida e volta, bem como a perda de uma noite, combinei com uma amiga que ela retiraria os documentos para mim. Minha namorada, no entanto, disse que o melhor era ir eu mesmo. Assim, apesar dos desperdícios, poderia evitar qualquer desencontro. De fato, não me custava, estando eu livre na noite de ontem... Além disso, pouparia a messa de uma procuração. Fui eu mesmo então.

Eis que na faculdade fui direto à Secretaria Acadêmica. Tirei uma ficha, esperei alguns minutos e uma das atendentes me chamou. Expliquei o que eu precisava e ela, muito solícita, respondeu:
— É que hoje não pode ser.
— Como “não pode ser”? — digo entre palpitações.
— Infelizmente, não há ninguém que assine os documentos que você precisa. Mas posso deixá-los prontinhos e amanhã de manhã você os vem pegar.
— Isso também não pode ser. Moro em Tapera e não há meios de vir para cá amanhã. Além disso, preciso postar estes documentos amanhã, senão perco a vaga de inscrição.
— Sinto muito, mas minha assinatura não vale de nada, e não estando aqui o responsável...
— Sim, entendo... Vou ver o que consigo fazer e, qualquer coisa, mais tarde passo aqui. Obrigado de qualquer forma.

Lição 1: Sempre resolva suas coisas pessoalmente.
Por mais empenhada que minha amiga estivesse, não caberia a ela resolver as complicações que acabavam de surgir. Dei graças por ter ido eu mesmo.

Pensei um pouco no que fazer. Às vezes, com um pouco de pressão, se consegue encontrar alguma resposta. Pois bem, procurei ao coordenador do meu curso, afinal, ele estava ali para nos facilitar a vida, certo? Errado. Sempre errado.

Expliquei-lhe o que acontecia e ele me chamou de brasileiro, tipo que deixa tudo para a última hora. Não perdi minutos explicando que só na sexta-feira soubera do curso de mestrado e que as inscrições de fato encerravam amanhã. Eis que veio sua máxima:
— Desculpe, mas eu não posso fazer nada.

Lição 2: Jamais diga “eu não posso fazer nada”.
Se alguém procura você com algum problema é porque precisa da sua ajuda. Há uma diferença enorme entre não poder e não tentar. Se você é o responsável por alguma coisa, seja Responsável. Eu trabalhei em contato com o público por alguns anos e sempre que não podia fazer nada, ligava para alguém que podia, explicava o problema como se fosse meu e encaminhava a pessoa para a solução. Aprenda: você sempre pode fazer alguma coisa, só o que impede é o comodismo.
Lição 2.1 (um adendo): Gramaticalmente é incorreto usar em uma mesma frase duas palavras de sentidos negativos, como é o caso de “não” e “nada” elas se anulam. Quem NÃO pode fazer NADA, pode fazer alguma coisa, até pelas normas gramaticais.

Depois de alguma insistência ele disse que o máximo que faria era pedir às secretárias que redigissem um atestado de que eu me formaria. Ok. Pelas idas de meu desespero aceitei com mesuras.
Redigiram por quase uma hora duas frases. Não quero parecer mal-agradecido, mas acontece que me entregaram um papel com um erro de acentuação e dois de concordância. Além disso, colocaram o carimbo do coordenador e a assinatura, visivelmente, de outra professora.

Lição 3: Quando o assunto é importante, trate-o com importância.
Como eu enviaria um “documento” daqueles para uma inscrição de mestrado em outra faculdade? Primeiro porque sou do curso de Letras e isso me exige alguma coisa em matéria do bom português. Além disso, minha universidade não demonstraria muita excelência com um papel de pão daqueles.

Assim também não podia ficar. Era uma questão de me preservar e preservar a própria universidade em que estudo. Vaguei pelo campus em busca de uma resposta. Desde pedir se eles possuíam um scanner até solicitar que me enviassem o documento por fax na manhã seguinte...
Foi então que lembrei da administração no centro da cidade. Ora, se no campus não havia ninguém para assinar, talvez lá houvesse. Liguei.

Lição 4: Sempre há alguém mais importante que quem lhe atendeu.
Isso já aprendi faz tempo, mas fica a lição: sempre que você receber um não ou for mal atendido, procure um superior. Longe de “delatar” o funcionário que não cumpriu as suas expectativas, você está cuidando de resolver seus próprios problemas. Além disso, como foi no meu caso, a funcionária tinha ordens superiores que a impediram de me entregar o papel sem a assinatura adequada, ordens “ainda mais superiores” poderiam resolver o problema.

— Alô.
— Oi, com quem falo?
— Nelson.
Vasculhei a mente de forma rápida: como perguntar sua função de forma cortês? Sim, porque um nome pouco me dizia, poderia ser o porteiro, o guarda, algum secretário... e nenhum deles precisaria ouvir minha triste história.

Lição 5: Fale sempre com quem pode resolver seus problemas.
Não fique se lamuriando para todo mundo que disser “alô”. Sinceramente? Você não precisa explicar o que quer para as secretárias, atendentes e etc. Primeiro porque elas não poderão tomar decisões que não lhes cabem, segundo porque ouvirão só por paciência...

Melhor do que perguntar sua função, era, pois, pedir para falar com alguém da administração. Foi o que fiz.
— Eu sou o administrado. Pode ser comigo?
Pois podia. Expliquei todo o caso até ali. Ao final ele me respondeu:
— Então procure a encarregada pela Secretaria Acadêmica.
— Pois é justo ela quem não está!
— Xih... Então vá até lá que falarei com a atendente. Vou ver o que posso fazer por você.
Era isso que eu esperava ouvir essa noite. Que alguém se dignasse a resolver esses meandros burocráticos e facilitasse minha vida.

Lição 6: Trate os assuntos dos outros como se fossem os seus.
Foi isso que fez o Nelson. Tratou do meu caso com a importância que daria se o problema fosse dele.

Quando cheguei na Acadêmica a moça que me atendera antes já falava com ele ao telefone. Aguardei alguns instantes e ela me chamou. Disse que havia um jeito.


Lição 7: Nunca se desespere. Estamos no Brasil, ora, sempre há um jeito.

Caso a vice-reitora assinasse, não haveria problemas. Ótimo, pensei. Porque a vice-reitora era minha conterrânea e eu a tinha em muita estima. Enquanto eu perguntava onde poderia encontrá-la, o telefone tocava novamente.
O tal Nelson estava verificando que ela conseguira resolver minha situação. Enquanto falavam , eis que a moça desliga apressada, explicando a ele e, consequentemente, a mim, o motivo: ela acabara de ver a vice-reitora estacionar o carro. Correu à janela.
A professora Sirlei, muito polida, disse que não haveria problemas e ainda acenou quando me reconheceu.
A moça voltou, pedindo que eu fosse ao caixa pagar as taxas referentes aos documentos que, enquanto isso, ela iria levar os papéis para que a professora assinasse.
Paguei, voltei e recebi os documentos, por fim.


Lição 8: Agradeça!
Nada pode ser mais importante do que agradecer. Isso reconhece o trabalho e o empenho do outro.

Agradeci muito à moça que me atendeu. Afinal, ela o fez com uma educação e uma cortesia ímpar. Além disso, estava disposta a me auxiliar, dentro do que podia fazer, sem quebrar as regras internas.
Fiz mais. Liguei ao Nelson.
Quando ouviu minha voz deve ter pensado que eu ligara para reclamar. Ao contrário. O fiz puramente para dizer “Muito Obrigado” e que minha situação se resolvera.
Pude ouvir seu sorriso. E era um som incrível, porque misturava sua grata surpresa à minha grata ingenuidade. Aquele sorriso disse muito. Disse que ele não estava acostumado a receber ligações desse tipo, portanto me considerava meio bobo. Quem gastaria em uma ligação de celular para agradecer por ele ter feito sua função? Ora eu gastava, com vontade e prazer imenso.

Talvez para ele foi só um “ligar para a moça da Acadêmica”, mas para mim esse ato teve a distância entre eu concorrer a um mestrado ou não. Por isso eu agradecia e ouvia seu riso embevecido.

Ontem o Nelson salvou meu dia. E acho que salvei um pouco o dia dele também. Ele me mostrou que ainda há competência e empatia. Eu lhe mostrei que ainda há reconhecimento e gratidão.

A ele, que pessoalmente nem conheço, mais uma vez: Muito Obrigado.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Antes do (meu) baile verde

O zíper fechado
Os sapatos calçados
Os brincos pendurados.
e os olhos pintados.

Amanhã Clarice vai ao baile.
Vestida, ricamente vestida.

_____________________________
É amanhã que apresento minha monografia...
Mal posso esperar...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A casa do escritor

E a casa, que de nova tantas alegrias deu, infestou-se de ratos e baratas. A imundície foi se espalhando, as paredes ruindo, nossos escritos sendo consumidos pelas traças vorazes. Lutamos, brigamos, nos engalfinhamos. Tudo sem propósito. De repente encontramos uma casa nova, ainda com cheiro de tinta. Fizemos as malas e fomos. Espantados, curiosos, temerosos... Espalhamos nossas caixas, penduramos nossos quadros e, pouco tempo depois, podíamos chamá-la de lar.


Não sou de fazer dessas, mas tudo tem um limite.
Quem é escritor, amador ou não, e está em busca de um lugar para a troca de idéias e opiniões, entre na Casa do Escritor II.
___________________________
PS: É preciso ter Orkut...

sábado, 5 de dezembro de 2009

Eu me desejo

Todos me desejam felicidades. Eu aceito. Aceito tudo que me dão.
Mas o que eu me desejo?
Eu me desejo paciência, coisa que andei perdendo. Eu me desejo alegrias, desde as mais pequeninas, até as maiores. Eu me desejo amar e em troca amado ser. Eu me desejo muitos livros para ler, muitos filmes para ver e algumas músicas para ouvir. Eu me desejo surpresas boas. Eu também me desejo saúde, sucesso e sexo (sic). Eu me desejo dinheiro, ao menos para realizar meus desejos. Eu me desejo viagens, muitas delas. Eu me desejo um outro lugar, uma outra cidade, umas outras gentes, mais interessantes.  Eu me desejo risos, milhares de risos, e todos sinceros. Eu me desejo experimentar da vida, portanto me desejo também algumas lágrimas poucas. Eu me desejo inspiração constante. Eu me desejo um trabalho apaixonante. Eu me desejo tempestades ao entardecer. Eu me desejo peças de teatro e shows de rock. Eu me desejo conversas com os amigos. Eu me desejo fé. E eu me desejo, enfim, felicidades.
Que bons ventos soprem, desta vez em minha direção.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Recadilho

É bonito de ver como os ratos de casaca
admiram-se nos espelhos de prata.
Esquecidos, completamente esquecidos,
de que são só matéria barata.


 

Sou paradoxal. Quando tenho muito a dizer, falo pouco. Uma quadrinha e está dado meu recadilho.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A noiva

Hoje o sol nasceu em mim, por isso me fiz a noiva do dia. Não quero mais as marcas negras lacerando a carne. Não quero mais os vícios somente passíveis de algum sentido. Quero o sol nascendo em mim, me renovando toda, me fazendo alma inteira. Não quero mais doer sozinha, nem sangrar no hospital dolente. Quero me refazer no vivo ar, subir pela fumaça do meu cigarro. Quero ser azul e diáfana, quero ser o céu onde nasce o sol. Não há mais lugar para você na minha vida. A cama estreitou, bem de repente. E agora eu sou completa, infinita, azul e celeste. Vivo por mim e pelo sol, esperando a morte, que virá com a noite. Mas deixa de lado minha escuridão, que agora sou só a noiva louca de Apolo.

E sentir o sol nascer em mim é bom. Sentir a luz quente invadindo meu corpo, penetrando minha carne, derretendo meu sangue. Sentir que a luz me ama mais, me consome inteira, me incendeia levemente, de dentro para fora. Do útero para a pele. Meus poros todos abertos, minhas cavidades santas expostas. Irradio fogo do plexo solar. Você nunca me queimou desse jeito. Nunca me tocou tão fundo quanto ele. Você nunca me fez de banquete. Nunca desejou me consumir inteira, me fazer incorporar em ti, me devorar.

Teus beijos eram só carícias surdas, enquanto o que eu precisava eram mordidas de fome. De que me serviam teus lábios roçando minha pele, se o que eu queria era teus dentes cravados na carne? Ele me crava os dentes na carne, o sol. Ele me espeta inteira com raios fálicos e torturantes. Ele desliza no suor que me causou no corpo, escorre lento nas minhas costas nuas e entre os seios brancos. Ele me faz de seu cigarro, me queima, me traga e depois me sopra toda de volta pro céu.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Cartas na mesa

À sua frente sentada Olívia.
Vá embora, Olívia! Mulher insana, não perdeu nada aqui.
Pele negra de lustro, olhos esbugalhados de gula, boca aberta de sede.
Toda caçadora pronta, prestes a saltar e devorar o futuro aberto e colorido que a tenta sobre a mesa.
Afinal, que tu queres aí, mulher?
Eu já disse, vá embora, porque a cartomante é charlatã e tu não tens futuro.
O que exatamente, Olívia, esperas que ela te diga? Pensa comigo, um pouquinho só.
Se a mulher predissesse um amor no teu caminho, o que farias deste amor?
Talvez ele nem viesse, então estarias condenada a viver uma espera vã. E se, por descuido, ela estivesse certa? Aí tu lembrarias daquela carta com o desenho de um moço de cabelo escuro. Mais novo, bem moço, como ela mesma disse!
Reponda: Tu larga teu marido e foge com ele? Deixa aqueles dois ranhentos esperando em casa? Dá adeus ao teu lar nem sempre doce?
Ah, larga, é? Então me mostra, onde está a caixinha alabastrina em que escondeste tua coragem?
Ela previu dinheiro, muito ouro, apontando a unha vermelha para as rodinhas amarelas da carta. Tu gostas de amarelo, né? Cor tão pobre, Olívia.
Nisso ela está certa, tu poderias ganhar mais, um salário descente, plano de saúde, vale transporte até. Mas só depois de deixar o escritório do Almeidinha.
Está disposta ao risco?
Não está, Olívia. Porque tu és fraca, como eu.
E se ela apontasse doença, em uma das lâminas, a mais afiada.
Tu procura um médico, faz exame completo, previne a tempo?
Não, previne nada. Se a doença vier, será uma coisa a mais para reclamar, tola Olívia.
Vá embora, que assim poupamos teu tempo e o meu.
_______________________________

PS¹: Texto antigo, mas acredito que inédito por aqui.
PS²: Tenho imunidade poética para assassinar a gramática (ou seja, não usem esse texto na escola como exemplo de conjugação dos verbos na segunda pessoa do singular).

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Garras

As unhas grandes já acumulam a sujeira das eras, mas ele gosta. Gosta porque agora já poupa a ponta dos dedos. Apenas as unhas compridas interagem com o mundo. Ele não quer dar sua maciez ao mundo, ele quer arranhá-lo, com sua dureza frouxa e seus ares de bicho com garras.

Tamborila as unhas na mesa de madeira, apreciando o barulho seco. Raspa o tampo, chiando firme, sentido mais as reverberações do que os toques. Nos plásticos finos ele deixa marcas, descascando os livros. Risca a perna e vê uma linha branca se firmar na carne. A pele arde e ele sopra.

Na máquina de escrever, as garras tamborilam doloridas, porque é preciso muita força para elevar o pino de letra, gravando a fita forte no papel desvirginado. Quase se descolam, desprendem, e ele força mais, em êxtase puríssimo esperando quebrá-las uma a uma. Aguardando a vertigem do sangue, os redemoinhos que sempre dão os pingos rubros na água da pia.

Imagina, então, as torturas chinesas. As unhas sendo arrancadas, por alicates, um gozo. Porque ele quer ser agredido, de qualquer forma. Acorda no meio da noite querendo dor, lunático que é. Amanhece torcendo por um desastre, qualquer um, que o jogue na confortável posição de vítima. Porque ele quer um mundo algoz, quer ser mártir, penitente, quer é escorrer em sangue quente.

Engraçado, pensa de repente, como as unhas dos mindinhos crescem mais depressa. Lembra então do asco que sente pelos homens de unhas longas, especialmente as do mindinho. Ele sabe, usam para coçar o ouvido. Unhas pretas de cera podre. Homens felizes, não sabem o quanto são miseráveis. Ele sabe. E corta as unhas, então.

Arrumação

Segundo os adeptos do Feng Shui, desordem no quarto gera desordem na vida. Concordo. Mas não se trata de uma questão energética, a coisa é mais simples, é uma questão de lógica. Se uma pessoa não é capaz de manter em ordem alguns metros quadrados, imagine a vida, que é toda redonda.

Eu estou incluído aí, nesses desordeiros. Minha vida é uma bagunça. Sim, e meu quarto também. Eu tenho a mania das velhas: guardo tudo. E é dificílimo eu conseguir me desfazer das coisas. Eu fico grudado nas lembranças dos papéis de bala. Crio afinco pelos santos de gesso que quebrei. Fico preso ao cheiro de perfumes que já viraram álcool. Eu guardo cadernos sem folhas,. carrinhos sem rodas, pilhas sem carga, meias sem par, caixas sem sapato, jogos sem peças, ursos sem olhos... A lista é infinita, meu Deus.

E a minha vida segue assim: abarrotada de coisas inúteis, estagnada por falta de espaço, entulhada mesmo. Mas hoje, hoje enlouqueci. Panos e vassouras, sacolas e lixeiras, gavetas e prateleiras. Coloquei ordem o quarto todo. Sim, o quarto, porque organizar a vida me exige demais.


quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Era uma casa...

Tenho inveja, porque na sua casa ninguém entra, então ela é tão Sua. Essencialmente Sua. Ela te pertence, como poucas coisas jamais te pertencerão. Na minha todos entram, pés enlutados, trazendo a poeira da rua. E há guardas, e há armadilhas, e há alarmes, tudo só para casa não ser minha demais.

Na minha sala todos sentam, conversam alegres, das próprias vidas. Quase esqueço que não sou um móvel. Uma poltrona estranha e decorativa sobre a qual ninguém sentou. Eles bebem chá e deixam marcas sobre o tampo da mesa. Marcas que eu não posso tirar. Nem com lustra móveis, nem com cera ou com verniz. A sala nem mais é minha, é deles.

E é para eles que eu penduro as cortinas bonitas, tiro os pêlos do tapete, arrumo as almofadas no sofá. É pra os outros que eu me fervo todo, junto às folhas de laranjeira, que depois entronarão com o chá. Quando vão embora me deixam as migalhas de bolo, os farelos de pão, a terra das botas. Os restos, enfim. E eu quase me alegro com isso. Satisfeito que sou em chafurdar o lixo alheio.

Se minha casa fosse minha, minha e só, então eu... Ah, que besteira... Eu não saberia o que fazer com a imensidão de uma sala sequer que me pertencesse. Mas a sua casa é tão bonita, e tão Sua, desde a escuridão da noite até o findar do dia. Sabe... Às vezes eu venho aqui escondido, só pra fingir que a sua casa ainda é também a minha.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Tecidos de TCC

De TCC¹ não se morre. Está certo. Não se morre, mas se enlouquece. Talvez não todos, mas é que tenho em mim essa predisposição a ensandecer. Não preciso de muito para me roubar o pingo de juízo. Minha cabeça dá duas voltas, rodopia e então vira essa festa de demônio alado.

É que estou com pontas soltas de todos lados, costuras somente alinhavadas, pontos mantidos com alfinetes, peças de tecido ainda por cortar, moldes por fazer e Deus, vocês já querem o vestido pronto? Não me venham dizer que o baile é amanhã!

Sim, eu sei, eu sei. Se tivesse feito a costura antes... Se tivesse arrematado enquanto cosia... Mas agora é tarde. E é porque sou assim mesmo, meio bagunçado e aleatório e artífice e amador. Demoro para encontrar a escrita certa, o tom exato, a combinação perfeita para estes botões tão pálidos.

É porque quando não estou apaixonado eu me espeto os dedos, enonzo a linha, arrebento o ilhós. Minha tessitura, mesmo acadêmica, precisa advir de crime passional. Não consigo pensar no que fazer destes tantos retalhos. Como compor essa peça de pano? Como transformar tecido em vestido? Como? Como? Como?

Ah, mais um pouco e me canso. Clarice que vá ao baile pelada!

________________
1 - TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), ou Monografia.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Papéis... Papéis...

Então agora, para receber um papel que diz que estudei, preciso entregar (de novo) cópias de todos meus outros papéis? Sim. E já estou fora do prazo. Preciso entregar a prova de que fui incluído no Registro Geral e documento que ateste minha inclusão no Cadastro de Pessoa Física. Preciso provar que já fui registrado, cadastrado, catalogado e numerado. Ah, e preciso comprovar também que o exército não me quis e que voto desde os 18 anos. A barbárie maior é ainda provar que nasci.

Mas não é lógico? Se tive que me registrar, cadastrar, dispensar, votar, pois não é lógico que nasci primeiro? Sim, porque em cada fase tive que provar de novo, com papel escrito errado (nele consta Ibirubá, onde deveria estar Passo Fundo) que algum dia fui parido.

I was born, tá legal? Juro! É que para mim, papéis não tem importância, a menos que tragam escrito algum poema ou história. Então extravio meus documentos e nunca, nunquinha (digo isso com orgulho) encontrei minha certidão de nascimento sem antes revirar a casa toda.

Eu sei, sei sim, onde está aquele poema que escrevi na 7ª série, na última folha riscada do caderno de matemática. Mas a certidão não faço idéia de onde se escondeu desta vez. E preciso dela com urgência, caso contrário não me dão o outro papel, ao qual devo confessar que também não dou importância.

Um diploma (ou a falta de) não atesta nada do que passei, nada do que aprendi, nada do que me inspirei, nada do que vivi. O fascínio do que conheci está documentado nos meus cadernos rotos, está gravado no brilho de neurônios gastos e isso ninguém me tira (com ou sem papel).

Quando eu for Rei, farei a abolição de todos papéis. Chega de documentos com números infinitos para provar que nascemos, estudamos, casamos ou morremos (sim, porque um dia terão que fazer outro documento atestando que não sou mais nascido). A palavra de um homem deve bastar, ou então que cada um escreva um poema dizendo quem é, o carregue no bolso e que isso sirva por todos os outros papéis. Tenho dito! Agora... Bom, agora vou voltar à busca da minha certidão. Santo Antônio que me ajude de uma vez.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Me dê motivo

Me dêem motivos para ficar, porque os para ir embora eu mesmo invento. Nem as flores se dão de graça. O sol precisa aquecê-las, a água precisa molhá-las. Então porque eu, logo eu, que nem sei repartir, preciso me doar inteiro por puro e grato prazer? Não. Eu quero mais, eu quero motivos.

Eu não estou aqui para atravessar os dias, para respirar da vida, para secar ao sol. Eu estou aqui porque. Por quê? Não, não entendam mal como sempre fazem. Eu não estou querendo ir. Pelo contrário, quero desesperadamente ficar aqui. Mas como posso ficar se começo a sentir que lá fora é que se vive? Como posso ficar se no lugar de sol minhas folhas estendem-se na escuridão? Como posso ficar se ao invés de chuva, minhas raízes chafurdam nas grotas da terra seca?

Motivos. Vamos, me dêem motivos! Digam bem alto porque vocês me merecem. Porque eu não vejo vocês fazendo nada para que eu fique. Não vejo em quê tentam melhorar para mim. Não vejo olhos gratos por eu estar por perto.

Motivos! Eu quero motivos que me impeçam de fugir solene durante a noite. Razões para permanecer afundado onde estou. De graça, nem as flores! Me mostrem agora as vantagens de ficar, porque senão eu vou. Vou de vagar, vou sorrateiro, cabeça baixa e pés descalços...

Provem. Provem por pelo menos um dia que ainda me querem. Provem que não estou aqui por comodismo, estou por opção. Me convençam disso, porque eu preciso desesperadamente ficar. Mas sem motivos... está ficando impossível.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O miserável

É tudo tão igual. A janela mostra a mesma triste luz do fim de tarde. Os pássaros dão os mesmos trinados claros de quando quase dormem. As cortinas balançam a mesma leveza de um novo vento bom. A porta ainda bate, as sombras se alongam, as palavras se formam.

De que eu sinto falta, então? Porque nem tudo é igual. Meu texto, quando leio, é diferente. É fraco, é pobre, é indigno. A experiência, ao invés de acrescentar, me oprimiu sem motivo. Perdi a inocência? Nunca tive. Foi antes uma graça de contar, um balanço de encantar, uma inspiração de envolver.

Porque antes meu texto era perfume denso. Vinha manso, rodeava calmo, invadia sereno e dominava lento. Quando menos se esperava, zapt. Fisgava e não dava chance de escapar. Eu era o sedutor, caçador, devorava vítimas em teias de palavras.

E agora? Agora sou mendigo antigo. Guardo avarento textos velhos, papéis rasgados, tintas desperdiçadas em contos podres. Amarfanho páginas amarelas, inéditas, fadadas ao fracasso desde nascidas. Pedinte que sou, reviro lixo atrás de inspiração usada e disputo com os ratos qualquer criatividade suja.

Antes eu dizia com orgulho, agora é com sorriso débil, com a vergonha imortal dos miseráveis: O que quero ser? Escritor... Junto com a palavra vem uma asquerosa modéstia, um traço de quem reconhece a própria sandice. A tarde ainda é dourada, então ela não mudou. Mas o que eu fiz de mim?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Nas paredes.

Sangue nas paredes? Não. Hoje minha casa amanheceu alvejada por amoras. Achei meus vândalos de uma imensa doçura.

sábado, 17 de outubro de 2009

Augusto,

Antes que venham te lamber as línguas ferinas desta cidade porca, falo eu: há outro que agora dorme na minha cama. Há outro que se enrosca em minha vida e a causa disso ainda és tu.

Há muitos que arranjam outros, sabes bem. Mas se eu fosse usar a justificativa que aos outros cabe, soaria ridículo. Não foi para te esquecer, foi antes para te lembrar.

Porque olhando para ele, pêlos crespos, negros, espessos e macios, lembro irreversivelmente de ti. Ainda que os olhos sejam de outra cor, a voz miada seja também de outro tom, o corpo ainda sem atingir a graça do teu, o nome distante, o cheiro distinto...

Não. Ele não veio ocupar teu lugar, meu caro Augusto, porque ninguém jamais o fará. Meu coração ainda pulsa pelas tuas vozes de manha, minha janela ainda se abre a espera da tua volta, meus olhos ainda me enganam quando vejo alguém que contigo parece.

Ele veio, Augusto, para lembrar-me de ti. Para que em cada passo eu purgue ainda mais minha dor de abandonado. Para que em cada nuance destes olhos azuis que ele tem, eu possa chorar pelos teus, que são cor de mel. Ele veio para que eu não esqueça de te amar a cada abençoada manhã.

Ele veio para representar tua falta. Ele veio porque tu me abandonaste sem adeus. Ele veio. Mas eu ainda te prefiro, Augusto. E se eu te prefiro tanto, se eu te amo tanto, Augusto, me diga: por que você foi morrer?

Ele só veio, Augusto, para que eu não morra também.

PS: A propósito, caso desejes saber, ele se chamará Victor. Também terá outro nome, como tu tinhas. O teu era Salém, o dele será Avalon.



quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Calma em caos de cacos

Vou juntar estes livros todos, perfurá-los e amarrá-los ao teto. Com os papéis faço fogueira sobre a cama. Dos cadernos arranco todas as pétalas. Viro o lixo aqui no chão e meto nele as coisas das gavetas. Rasgo folhas, quebro três espelhos, martelo o notebook, com todos seus arquivos.

Quebro os santos de gesso, arranco os quadros, rasgo as cortinas de petit poá. Entorto os ferros, mordo as grades, jogo tinta na parede. Derramo as coisas das caixas. Rasgo as 78 cartas, dilacero a pelúcia dos bichos, desenrolo dois carretéis de linha dourada.

Eu grito. Grito muito até cansar. Pisoteio as roupas, corto os cadarços, estraçalho brinquedos remanescentes. Derramo todos perfumes, loções e cremes. Arranco fios, esmigalho vidros, viro o armário.

Então suspiro, de alívio intenso. E só depois vai ter espaço para eu ser feliz.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

O colecionador de tuas borboletas

É minha a mais bela coleção de borboletas já sonhadas. Alfinetes nas asas, isopor nos pés, vidros isolando à imensidão, nada disso. Todas elas, fadas aladas, me batem presas ao peito, debatendo-se umas nas outras, às voltas de um coração que é todo amor.

Teus olhos são minhas borboletas brilhantes, pequeninas, de uma grandiosidade quase marrom. Gosto quando pousam em mim, exagerando qualquer ínfimo traço de uma beleza inventada. Gosto destas duas quando, lânguidas, provocativas, insinuantes, me chamejam. Gosto quando batem asas delicadas, entre risos de deleite. Gosto quando voam, perseguindo os olhos meus. Gosto mais ainda quando neles pousam, tocando uma alma que é só tua.

Teus lábios são minhas borboletas rubras, que mesmo em sede de desatino, esperam o mel cair-lhes à boca. Têm tracejados delicados, textura aveludada e um farfalhar de asas que me enche de arrepios. Elas pousam úmidas, onde querem, aquecendo gelos, desdobrando amores e causando desvarios.

Tuas mãos são minhas borboletas brancas. Lívidas asas, com cinco pintas cada uma. Pintas que mudam de cor conforme os dias. Essas são fadas gentis, delicadas e graciosas, uma delas até usa jóia de prata pura. À noite, para dormir, pousam e fazem casulo no meu peito nu. Borboletas de asas leves, arranhões esguios e força frágil. Tentam às vezes me envolver inteiro, mas, pequeninas que são, perdem-se nos meus traços mais viris. Borboletas que me adulam, aquecem e afagam.

Há outras? Sim, há outras mais. Borboletas valiosas que são só minhas, escondidas no meu pensar, ocultas do meu falar, deleitadas no meu sentir. E é por isso, só por isso, que te amo. Porque te amar, é cair no vôo das borboletas.

domingo, 27 de setembro de 2009

Cores d'água

Sim, eu uso a arte como droga e escrever já não me serve. Feito viciado, sempre em busca de coisas mais fortes, de doses mais altas, agora persigo os traços do desenho. Escrever já me bloqueia os sentidos, ainda mais quando tudo no mundo escreve. De cada poste as letras caem, amontoam-se nas sarjetas, sobrepujam as valas sujas. As palavras vendem-se a quem quiser, caem das bocas sem dentes, escorrem pelos lápis dos bastardos, corroem as vitrines das lojas. De repente todos são escritores, poetas, contistas, blogueiros. Grandessíssimos filhos das putas. Fiquem então com estas palavras sujas, essas letras vomitadas, essas rimas podres. Nada disso me interessa mais.

De repente os traços finos, os sombreados negros, as luzes que se obtém pelo apagar. Talvez a ilusão na folha, o perpassar do mundo, os ângulos retos que me entortam. Quem sabe as arestas pretas, as aquarelas foscas, os coloridos vagos... Poder ser. Pode ser que ali resida minha nova catarse. Meu fluir, meu viajar, meu nirvana noir, minha pulsão de sangue, meu abrir de veias, minha expurgação de demônios, meu vôo de anjo, meu canto de maldito.

Eu preciso da arte. Mas mais do que dela, preciso de um quarto onde eu possa ficar sozinho. No da escrita já tem gente demais.

sábado, 26 de setembro de 2009

Intensidades de uma (chuva) insana

Chove. Não, mais do que chove, cai um temporal imenso que deveria lavar toda alma dessa cidade imunda. Mas não lava. Nunca lava. A força da água é tanta que me faz tremer a terra. Eu sinto as vibrações, dedos crispados nas grades da janela. Eu sei, vejo que a qualquer momento as venezianas serão arrancadas pelo vento. As cortinas sugadas para fora, o barulho de panos rasgando, o voal varando o dia, feito fantasma louco. Meus panos voando por cima das casas, encharcando de chuva, até pesarem demais e cairem. Todos corpos mortos. Pássaros abatidos em pleno vôo, baques surdos de cadáveres mudos. Sangue misturando à água e penetrando nas frestas da rua, abrindo fendas entre paralelepípedos sujos.

Então virão as rachaduras na terra. Sulcos erosivos, bocas engolindo ruas, pessoas, casas, automóveis, tudo marrom, tudo banhado de vermelho-terra. O vento arrancando paredes... Da minha casa mesmo, não restará mais do que três partes desse quarto. À beira do mundo, às portas do caos, olhando calado a destruição, estarei eu. Pés no piso.

A tempestade chicoteando meu rosto, lambendo meus olhos míopes, penetrando pelas brechas do meu cabelo. Forças inumanas rasgando minhas roupas, roubando minhas coisas, arrastando pelos ares qualquer brinquedo de criança. O telhado alçando majestoso vôo, meus braços abertos aos céus, em entrega ou súplica, jamais desespero.

De repente tudo pára. Já nem mais chove, agora garoa manso. O som embala os sonos de quem pode dormir. Eu não posso. Há décadas que não durmo, esperando o que está por vir.

E não, ainda não foi desta vez, infelizmente.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Só mais uma flor azul

Para Aninha, que a encontrou, era uma flor diferente de todas as já vistas por sobre a Terra, ao menos a do jardim. Chafurdou em dúvida: Colho ou não colho? E se for a única do mundo inteirinho? E se nunca mais crescer? Ah, mas cresce. Se não arrancar tudo, cresce; assim como dedo cortado.

Puxou com cuidado imensurável, quebrando sem judiar o galinho flexível. Botou bem perto do olho direito. Meu Deus, que prazer imenso. Havia nas pétalas veiazinhas de um azul escuríssimo, que saiam meio e iam clareando para as pontas. Ramificavam-se todinhas, perdendo-se em singelas transparências. As pétalas, como eram finas, tingidas de um lavanda-céu. Cinco ao todo, e em forma de coração.

Não, perfume não tinha. Tinha mais era qualquer cheiro de verde, embora fosse uma flor azul. Não era maior que um botão de casaco. Vista de baixo era mais opaquinha, mas por cima brilhava enveludada de sol. Mas que delicadeza tinha Deus! Mãos enormes capazes de moldar tão frágil belezinha. Pois no meio havia até mesmo uma estrelinha branca, vejam só.

Qual será o nome, heim, Aninha? Na certa um nome bonito, sendo assim, tão suave...Tinha qualquer textura macia, cariciosa no contato com o rosto. A menina passou-a de leve pela bochecha rosada, enquanto sorria, de olhos fechados.

Mal podia esperar para contar a alguém. Qualquer um. Na certa chamariam os outros e ela seria conhecida por descobrir “a primeira flor azul do mundo todo inteiro de todos os tempos desde o começo”! Sorriu sozinha. Foi então que entrou em casa correndo, toda faceira, jogou-se em meus braços e, abrindo a mãozinha em concha, mostrou-me a incrível descoberta.

— Olha só o que eu achei!
— Aham.
— Não é incrível?
— O quê?
— A flor! Veja, é azul.
— Sim, estou vendo. Mas não é flor, minha filha, é só um inço.

Aninha sabia o que era inço. Deixou cair a florzinha triste no assoalho da cozinha... e foi brincar de outra coisa.

- - -

Eu já fiz isso. Já 'descobri' flores e insetos únicos e maravilhosos. Também já vi lua quebrada, quando era minguante. Já troquei avião por disco voador e gato por bruxa.
Queria saber quando que perdemos essa visão que transforma até as coisas mais simples em fatos espetaculares? Quando o mundo deixa de ser mágico e passa a ser apenas mundo? Quando os dias começam só a correr, sem qualquer graça?
Eu queria ter mais respostas. Respostas inventadas.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Só Citando

Desculpem o descaso, estou sem descanso, quase perdido nos meandros desta monografia infinita. Sem descanso ou sem vontade, porque, de repente, tudo que eu mais queria era deixar-me ser feliz.

Sua vida [a do artista] está necessariamente plena de conflitos, já que dentro dele lutam duas potências: de um lado, o homem comum e corrente, com seu direito à felicidade, satisfação e segurança vital, e de outro, a implacável paixão criadora, que em certos casos o obriga a pisotear todos os seus desejos pessoais. (JUNG apud MOISÉS, 1977, p. 47)
Só parei para compartilhar este trecho. Agora volto a investigar as perguntas sem respostas de uma mulher morta. Até quando der.

MOISÉS, Massaud. A criação poética. São Paulo: Melhoramentos, 1977.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Do que se perdeu

Só tenho saudade de um conto, dedicado a um amor de ocasião. Tal romance curto era de uma doçura insuportável, uma beleza aguda e cortante. Não, eu não lembro a natureza exata dele e, talvez, aí resida minha fascinação. Em não sabendo ao certo o desenrolar, minha mente, quem sabe, o supõe mais belo. São muito vagas as memórias que tenho dele, apesar de intensas. Sei da chuva, de um apartamento, de whisky, de coisas que não deveriam ter sido ditas, mas foram. Que coisas? Nem idéia faço.

Lembro do conto, sendo construído todo de quase toques, de movimentos suspensos, de carinhos retraídos, de uma boca que parte em direção à outra... quase chega, mas volta. A sensação que me dá este texto é a mesma da respiração sobre a pele. O misto de medo, hesitação e prazer. A dúvida do não-querer e a certeza do arrepiar. O momento em que se espera e a mão não vem. Sente-se o calor, mas não o toque.

Que fim levou o conto? Pois não sei. Tão logo o terminei, dei-lhe um nome bonito, agora imemorável, salvei e fechei. Ao tentar acessar o arquivo, poucas horas depois, tudo que encontrei nele foram quatro páginas de um branco imensurável. Apressei-me em tentar reconstruí-lo... Impossível. Nem uma linha eu sabia reescrever. Então foi assim? O conto simplesmente vazou inteiro de minhas veias impossíveis e fluiu para o papel, sem nem deixar marcas? Foi. Foi assim. Em mim não ficou nada, tudo foi para o arquivo que, por arte de qualquer prestímano, estava agora esvaído em brancos.

O amor de ocasião me durou pouco, fugiu de meus romances e caiu em um casamento, típico adereço das comédias de costumes. O que me doeu foi ter perdido o conto. Este sim deixou marcas. Era quase bonito demais.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

De que entreis em minha morada

Limpei a casa. Pintei de nova, desfiz as teias e plantei as flores da janela. Arranquei o inço, caiei o muro, consertei a cerca e matei formigas. Lavei os tapetes, poli a prata, troquei os lençóis e perfumei os cômodos. Assei carnes, preparei manjares, comprei toalhas e desempoerei toda a porcelana. Arranjei rosas, banhei os cães, bordei as fronhas e varri o porão.

Esperei.

Por todo tempo você não veio. Quando as rosas secaram, as toalhas sujaram e os manjares azedaram, você chegou. Carregado de ouro, olhou para tudo: o pó nos móveis, as manchas nos lençóis, as flores mortas, o inço alto, a prata preta...

Nem entrou. Ainda da rua jogou-me só uma palavra. É dela que tenho sobrevivido. Na primeira fome comi-lhe um "A". Ficou-me "deus". Em nova voracidade devorei-a dos dois lados. Restou-me "eu". E isso? Isso eu guardo nas gavetas. É tão pouco que nem à gula tenta.

Corvo-correio

Ághata voa pela casa, espalhando nos cômodos as tragédias do além. Ela grasna de cidades destruídas pelas pedras do céu. Quando sai pela janela, voa buscar notícias, só as de desgraça e morte. Volta afoita, quase feliz, penas arrepiadas e cadáveres no bico. Daqui, ela conta coisas que não aconteceram, tentando fazer qualquer flagelo parecer maior.

Ághata espalha no meu ar o cheiro ocre de carniça. Porque ela quase se rejubila com o pranto alheio. Bem, na verdade, deleita-se toda, mas dis-far-ça-da-men-te. Sua alegria tem máscara: solidariedade. Não é. É puro gozo porque isso comprova sua tese. Isso fortifica sua crença. Isso aumenta sua fé na decadência. Porque tudo é decadência, doença, desgraça e morte. O mundo é maravilhosamente cruel e diabólico. Ela goza farta, porque Deus...

... ah, Deus é deliciosamente mau.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Sem querer...

Apedrejar teu telhado, quebrar as vidraças, tocar fogo nas cortinas. Pichar meu nome nas paredes. Transformar em cacos a porcelana, lançar ao chão os pratos, trincar os copos. Rasgar os livros, todos eles; queimar teu colchão, esvaziar as gavetas, virar os armários. Quero. Despejar o açúcar, o sal, a farinha. Quebrar os ovos. Estourar os canos, arrebentar os fios, destroçar o chão. Virar a mesa, cortar as roupas. Quero. Te bater na cara, deixando marca. Quero. Te cuspir à boca e escorrer em ti. Quero, desesperadamente, entrar na tua vida. Quero, ainda mais que todo resto, beijar-te os cílios. Porque meu amor é todo feito de extrema delicadeza...

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Sacrifício

A palavra é minha ousadia para o mundo. Não sem preço. Para escrever é preciso raspar a carne e esfregar o rosto no asfalto. É preciso verter sangue e expor as veias, os músculos, os ossos. Para entrar no mundo das letras há que se descascar o corpo inteiro. É necessário aflorar os nervos. Arrebentar os botões, quebrar as costelas e abrir o peito. Não há outra forma. Para poder invadir as linhas, é preciso antes virar do avesso a pele. Mostrar as fibras, revelar tudo que há por dentro.

A escrita exige essa entrega. Essa renúncia. Não há outra forma senão abrindo-se todo. Há que se ficar exposto inteiro ao ar. Ao imundo ar. As palavras só brotam quando se sofre de todas as dores.

Por isso a mudez é mais fácil. A escrita exige sentir. Viver não exige. É possível passar pelos dias incólume, quando se renega a palavra. As letras ordenam que se rompam as barreiras. Que se descasquem as camadas. Que se tirem as proteções. Elas exigem a aspereza. Elas se regozijam na crueldade da dor. Qualquer dor. Porque quem escreve está exposto a sentir até a dor do outro. Escrever é esse aflorar de toda sensibilidade. Abrir todas as portas e janelas. Mesmo sem saber o que vai entrar. Os pontos não são de tinta, são de sangue. Meu sangue.

Por isso o medo. Por isso a renúncia. Por isso a fuga. Porque escrever me exige mais do que viver.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

E quem souber que conte outra

Meu Deus, que alegria, que graça, que complexidade quando meus livros chegavam. Eles vinham raramente, mas vinham, repletos de letras, pinturas e músicas, na ordem inversa à da preferência. E eu ouvia uma, duas, três, cem vezes a mesma história, até quase enrolar a fita, até quase rasgar as páginas. Eu era príncipe, pássaro, raposa astuta e feiticeiro. Eu era gênio, duende, aprendiz e guerreiro.

Nas tardes vazias eu viajava mundos, tecia ilusões e cantava bem alto, em todas as cores. Sentava próximo à janela, com um gato sobre o colo e um livro nas mãos. Eu era criança. E quando criança, eu era tudo.

Hoje? Hoje sou adulto e isso já não me basta.

Os Tratos da Ousadia

Eu sou ousado. É mentira. Como? Por mais que incline assim os olhos, por mais que erga o queixo, por mais que empine a pompa, é mentira. Eu sei. Sou covarde. É porque comigo o mundo não aconteceu direito. Sou, porque no primeiro tapa não revidei.

Não sou leão, não sou pantera, não sou leopardo. Sou bicho que foge, não bicho que caça. Sou daqueles que se escondem no escuro. Sou daqueles que tremem em um canto e tem olhos bem grandes. Assim, ó. Sou frágil.

Eu tenho é medo de quebrar. Porque se quebrar, se arranhar, se machucar, daí... Daí o quê? Daí não sei. Medo de gostar de ser rato. Medo de me mudar para o esgoto. Talvez. Mas se nem gato, nem rato, do que vale? Morcego gordo. Porque nem voar eu vôo. Morcego é mais que rato? É menos. É evolução. Não. É cego, ruidoso, horrível e cagão.

Já viu caverna de morcego? Moramos numa. Não por fora, moramos por dentro. Mas morcego vira vampiro. Vampiro é só um parasita. Igual berne, lombriga e bicheira. Verdade. E se fosse planta? Dorminhoco. Ou inço. Acho bonito chorão. Mas nem choro quase. Se fosse planta morria, porque sou seco demais. Então cactos. Perfeito. Não deixa ninguém chegar muito perto.

Eu deveria ao menos tentar. Ser mais sociável não dói. Dói. Dói sim, porque você precisa rir de coisas idiotas. Melhor ser cactos ou idiota? Rato.

Das Vizinhas

Telescópios nos olhos e urtigas na língua, Maria acorda. Nem bem boceja. Nem bem se lava. Corre à janela. Despenteada. Pijama furado. Bafo encruado. Bom dia para a rua.

D. Ana está atrasada! Assunção ainda não acordou! Flávinho já saiu! Felizberto nem chegou? Já sei. Felizberto dormiu fora. Foi... Foi... Foi na casa de Tiana. Mas não pegou a filha. Pegou a mãe. Que absurdo! Deveria era se envergonhar! O que Camilo faz, sentado na mesa da sala? Ah, coisa ruim, na certa. Ninguém presta.

Só dá um tempo porque a bexiga aperta. Volta rápida, mal se seca. Pega a vassoura e corre para fora. Varrer a entrada. Varrer que nada. Assim fica mais fácil xeretar a vida da outra vizinha. É que do lado sul não tem janela.

Carmela está grávida, querida. Aposto que ele não é o pai. Não, o pai é... o pai é... O Seu João. Isso. Quando ele sai, o Seu Jão vai lá dormir com ela. Toda tarde. Que horror! Bom dia. Brambila é meio louca e aquele filho... hum... muito esquisito.

Quando é a hora de fazer almoço, mantém um olho na panela, outro na janela. E quando é tempo da refeição, ai de quem roubar o lugar dela!

De frente à porta quem senta sou eu. E deixe aberta, assim vejo a rua. Mas olhem só, Cassiano não vai trabalhar. Será que foi demitido? Acho que foi. Foi, foi sim. Foi porque... porque... porque saiu com a mulher do chefe. Que safadeza!

À tarde conta tudo no salão. E anota disfarçada, no caderninho de contas, o que contam as outras. Sim, porque tem medo. E se esquece alguma coisa? Todo domingo repassa tudo à outra Maria. E indignam-se juntas com a safadeza e a promiscuidade daquele povo. Como foi parar ali? Logo ela? Tão descente. Tão correta. Entrecortando a fala ela ainda diz:

Você sabe que eu nem gosto de comentar, mas...

Heterônimos

Se eu não fosse eu, como o outro escreveria? Não. Comigo não funciona. Meu sangue é forte e domina. Algum outro escreveria, irremediavelmente, igual a mim. Ou preencheria as linhas, enquanto eu penetraria as entrelinhas. É porque eu me entrego sempre. Em todo texto. Eu me devoro nas palavras. Eu me redimo nas mentiras. Eu navego em meus mares e não consigo sair deles. É que se eu me disfarçasse, ainda seria eu. O não-eu me dói, despersonifica. Um de nós acabaria ganhando. Não sou homem de divididas. E se o outro então ganhasse, se impusesse sobre mim? Como saber se não é ele o mais forte? Não, não, não. Criar alguém é perigoso. Quem tentou sabe.

Bairro Nobre

Quem são os estranhos que, de repente, invadem tudo? Meus campos, meus parques, meus bosques, tudo. Eles reviram toda terra, empilham canos de concreto, barulham com máquinas de cimento. Homens rudes empilham tijolos, atiram areia e fazem muros. Hoje aqui, amanhã ao lado. Tudo se transforma com uma rapidez impressionante. Não, não perguntaram se alguém os quer aqui. Eu não quero.

Quero meu sossego manso. Quero olhar horizontes, não paredes. Na minha janela quero o campo, não os vizinhos. Comigo concordam os quero-queros, que perderam o lugar dos ninhos. Como podem desmanchar minha estrada de terra e destruir a esquina dos entulhos? Como podem ir bloqueando o sol e cobrindo o campo de plantio? Então nunca mais vai ser o verde da soja nova? Nunca mais o dourado do trigo maduro? Nunca mais o bosque e a casa assombrada? Nunca.

Pois então fiquem. Agora que estragaram tudo fiquem. Prefiro abrir mão do que é meu a ter que repartir.

Tudo novo de novo

Quem acompanha meu blog desde o começo (nos perdidos meandros de 2004), deve lembrar de uma época em que eu trocava de layout todos os meses. Naquele tempo isso parecia um máximo. Depois fui percebendo uma coisa... As pessoas gostam de rotinas. Imagine, por exemplo, você chegar em casa todos os dias e sua casa estar de outra cor. Cansa. Alguns amigos já nem sabiam mais onde estavam.

Foi então que fiz o meu primeiro "template definitivo". Que, por ser definitivo não deveria ser o primeiro. Minhas domesticadas contradições... Depois disso, mesmo trocando o visual de vez em quando, procurei manter um padrão reconhecível.

Onde quero chegar? Bem, o layout mudou (novamente). Alguns acharão que para melhor, outros que para pior... etc, conforme o roteiro estabelecido. Eu prefiro, também, visuais mais rebuscados, estilos mais vintages. Porém, há que se ter em mente que o que quero ressaltar aqui é conteúdo, não forma. Por isso a simplicidade aparente.

Outro item. Quem tem um blogspot sabe que há algum tempo o provedor passou por modificações, só com html não dá para fazer muita coisa por aqui. Eu ainda dominava só o código antigo... Depois de levar alguns tombos, aprendi a desenvolver isso aqui em xhtml, css e outras coisas de nomes complicados e códigos mais complexos ainda. Essa mudança é essencial para que o blog passe a utilizar 100% da capacidade do provedor, além de coisas como feeds, seguidores, etc, que com o tempo posso ir incorporando aqui.

Por enquanto é isso e não deixem de dizer o que acharam.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

No dia...

“No dia em que eu morrer não morra de amores”

Lembre-se de mim só quando vir avelãs, cogumelos e cerejas. Lembre-se no vermelho das coisas, nos dias de chuva, nas tardes de vento e sempre que anoitecer.
Lembre-se de mim só no outono das folhas, nas histórias de crianças, nas cores da pintura. Lembre-se nos flashes da fotografia, nas rimas da poesia, naquilo que você não consegue entender.
Lembre-se de mim só nas gavetas trancadas, em todos os livros e nas músicas mais tristes. Lembre-se no drama dos filmes, nos perfumes mais fortes, nas madrugadas mais frias.
Lembre-se de mim só nos temperos mais picantes, nos mistérios mais bobos e nas horas mais insólitas. Lembre-se nas sombras dos plátanos, nos olhos dos felinos e no bagunça do seu quarto.
Lembre-se de mim só nas lentes de outros óculos, nas carícias de pelúcia e nos círculos da lua. Lembre-se nos arabescos do complexo, nos espelhos sem reflexo e nas asas do que voa.
Lembre-se de mim só nas janelas daquele ônibus que vai, nas caretas dos palhaços e nos cliques do teclado. Lembre-se nos riscos da calçada, nas coisas que são de prata e nas cartas de ler sorte.
Lembre-se de mim só na mudez sempre suspeita, na nudez quase perfeita e nos lábios voluptuosos. Lembre-se nas caixas escondidas, no grito das aves e no pó que faz o giz.
Lembre-se de mim só na luz, quando faltar, nos morangos mais maduros e nos pedidos mais singelos. Lembre-se nas frases em francês, nos testes de inglês e nos ditados em latim.
Lembre-se de mim só nos arrepios do pescoço, na sinfonia de gemidos e sintonia da TV. Lembre-se no vento carregando as folhas, nas nuvens desenhando o céu e nas chamas de qualquer vela.

“No dia em que eu morrer
mesmo só estando o meu corpo aqui
Vou te fazer lembrar de tudo que fizemos
Dos dias tão felizes que nós dois tivemos
No dia em que eu morrer não lembre do tempo que perdemos
Lembre do tempo que eu te dei
No dia em que eu morrer”

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Palavras, apenas

"Escrever é uma maldição"

As palavras. Eu não as quero mais.
Não as quero, porque elas esperaram ouvir da minha boca, toda madura e inocente, que eu as desejava.
Diabólicas, elas me conduziram vendado ao abismo e sussurram lúbricas, irresistíveis: Pula.
Entreguei-me por completo às asas de cera, sem esperar que derretessem. Derreteram. Derreteu a máscara, também de cera, e me vi nu, em pleno palco.
Cansei das promessas falsas, do desalinho imoral que me causam, da devassidão que paira à loucura em que me botam.
Se pudesse, terminava os dias seco, sem mais nada ler. Queimaria os livros, esqueceria as letras, rasgaria as páginas secas, as rimas tortas, os versos torpes. Atiraria tudo ao alto e seria, irremediavelmente feliz.