sábado, 29 de dezembro de 2012

"I dreamed a dream"


Às vezes a gente sonha com algo bonito, muito bonito, na verdade. E, então, às vezes a gente passa a investir tudo que tem nesse sonho. Para alguns, esse tudo é dinheiro. Para outros é tempo. Para mim foi alma.

Eu sonhei um sonho e acreditei nele.

Chega um momento, porém, em que você percebe que não pode só viver de sonhos. A realidade vai entrando pelas frestas, vai fazendo desacreditar, vai corroendo qualquer tipo de confiança ou fé. E então você passa a não saber mais o que fazer.

Sonhar um sonho dá trabalho demais. Você não pode simplesmente desistir, então. Você tenta se convencer disso. Não, não “você”. Isso é sobre mim. Eu tento me convencer disso, então: de que não posso desistir. E então eu sigo mascarando inseguranças, eu sigo disfarçando medos, eu sigo fantasiando minha vontade toda de acordar.

Eu, logo eu que não sou dado a sonhos. Que não gosto das mensagens otimistas todas e que acho abraços em palestras a pior coisa que há. Logo eu, tentando me convencer de um mundo possível, contrário a todo esse real.

Hora de acordar.

É preciso sim desistir. 

Todo esforço foi grande e houve sim recompensa. Mas chega.

Chega de tecer fantasias, de bordar objetivos, de costurar planos e mais planos.

Eu já não posso lidar com isso. Eu já não posso ser leviano assim. Não sem me destruir por dentro, não sem me sentir mal comigo mesmo, não sem pagar o alto preço de um Morfeu qualquer.

Não há mais espaço para este mesmo sonho dentro de mim. Não há tempo para continuar de olhos fechados às minhas vontades, às minhas urgências e alinhavar outro sonho com fio fino.

É hora de acordar.

E quando acordo, estupefato, percebo que já não é com sonhos que eu lido mais. Há muito tempo. O que eu acreditava ser sonho já é minha realidade. Já é meu cotidiano. Já não é ilusão. E por isso foi tão importante acordar. Porque agora eu sei que estou lidando com realidades, com fatos, com números. Não com sonhos, não com letras, não com levezas só.

Essa é a minha realidade. E está na hora de parar de tratá-la como sonho. Está na hora de ser e não de querer. Está na hora, sim, de viver.

Acordado.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

E chove em Tapera VII


— Oi...
— Oi... Nossa!? Você?!
— É, eu voltei, lembrei de você e pensei... por que não?
— Nossa. Quanto tempo. Você fica até quando na cidade?
— Eu... eu não vim a passeio. Eu voltei. Meio que de vez.
— Mesmo?! E seus compromissos todos? O trabalho lá em Santa?
— Eu fui demitida... Tempos ruins, essas coisas.
— Ah... E a sua irmã, você ainda cuida dela?
— Não. É.... na verdade ela casou.
— Que bacana...
— É... eles se mudaram para o Paraná.
— E a sua tia, aquela que estava doente, ela conseguiu fazer o tratamento?
— Então... a tia Clara... ela faleceu.
— Nossa.... Sinto muito.
— É... no estado em que ela estava, acabou sendo o melhor.
— E o seu trabalho voluntário, com os animais?
— Eu acabei largando o abrigo. Foi algo passageiro. Eu não tinha mais tempo, sabe?!
— Hum... sei. E seus pais? Você ainda...
— Eles se separaram. Meu pai saiu de casa e nem telefonou mais. Minha mãe está morando sozinha agora.
— Ah...
— Bom, não interessa muito. Na verdade eu estive todo esse tempo pensando em você. E por isso eu vim até aqui. Porque se não viesse acho que eu iria explodir. Lembra qual foi a última coisa que você me perguntou antes de eu partir?
— Lembro. Lógico. Eu perguntei se alguma vez... você conseguiria ser minha. Só minha.
— Pois é. Isso. Eu agora vim aqui para te responder que sim. Que eu conseguiria ser sua. 
— Wow... é.... desculpe, mas essa foi uma pergunta que você já respondeu antes. E agora já não tem como mudar sua resposta. Eu sinto muito... Eu...

(trovões)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Ponto de saturação


As dores em mim não explodem subitamente. Não sou dado sempre a ações e reações. Preciso ser mais sutil do que isso. Eu acumulo não dizeres, vou somando desaforos, pequenas intempéries, minhas chuvas e tempestades de sol. Eu vou guardando tudo até sedimentar. Até acumular. Até que a saturação se dê por completo.

Eu evito os sinais prévios, os barulhos pequenos das rachaduras, eu evito demonstrar no sorriso triste qualquer marca do que por dentro se passa. Quando estou farto já é tarde. Quando estouro, eu estouro de vez.

E daí não meço palavras ou danos. Não perco tempo e não poupo sofrimento. Quando é minha vez, é minha vez. Quando eu quero fazer doer, eu sei fazer doer. E não em doses pequenas, não com uma tortura moderada e imorredoura. Eu uso toda maldade que se acumulou no meu corpo, todo veneno que encharcou meus ossos, todo fel que já não flui junto com o sangue. 

Enquanto sofro não mio. Em compensação, quando ataco, mato.


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Abandonar o barco


Foi assim: tiveram a ideia de construir um grande barco. Um barco como aqueles descritos nos livros, o barco ideal, o conceito platônico de todos os barcos, uma obra que contivesse em si todos os princípios e signos definitivos de um barco. O melhor barco, enfim, que o mundo já vira. Nenhuma delas, porém, entendia de barcos.

Chamaram engenheiros navais. Descreveram a eles como seria o barco. Eles compreenderam lá da sua maneira e viram na construção qualquer chance de ascensão (social ou econômica). Traçaram o projeto do barco, bem aquém do que descreviam os livros, era bem verdade, mas o dinheiro viria do mesmo modo, de forma que foram deixando por isso mesmo.

Foram a elas, mas elas estavam tão perdidas nos sonhos do barco ideal que já flutuavam num mar de imaginação ignóbil, ignorando totalmente as falhas dos engenheiros. Barco, barco, barco. Que fizessem o barco. Sim, estava perfeito o barco. Barco, barco, barco...

Os engenheiros chamaram construtores. Construtores que não entrariam no barco e que, portanto, fizeram tudo ainda pior do que aquilo que estava no projeto já mal feito. O material foi de segunda, o salário foi baixo, a humilhação foi constante, de modo que, propositalmente, os construtores fizeram um barco para afundar.

Terminada a construção, os engenheiros fizeram vista grossa. Nenhum se atreveu a descer até o porão. Não, eles não eram homens de andarem em porão. Se os construtores disseram que estava bom assim, então devia estar.

Os engenheiros avisaram a elas que o barco estava pronto. Receberam os ouros e os louros enquanto elas babavam pelos cantos, de olhos vidrados, cabelos insanos sem parar de repetir um minuto sequer... Barco, barco, barco,  barco, barco, barco, barco, barco...

Nas ruas pegaram a mais densa ralé até encher o convés. Eles é que deveriam servir, trabalhar, lavar, passar, coser, arrumar, cozinhar, fritar, ferver e fazer, logicamente, o barco navegar. Não interessava como. Trabalhariam em troca de pão. E só apanhariam um dia sim e outro não. Elas eram mesmo muito generosas. Barco, barco, barco.

No dia da partida, estouraram uma garrafa de champanhe sobre o casco. Elas também bebiam champanhe. E muito. Comemoravam a glória de todos os barcos. O mais perfeito e lindo e bem construído barco que o mundo jamais sonhou em ver. E era delas. E era graças a elas. Barco, barco, barco. Hahahahaahahahaha.

No segundo dia em alto mar, elas ainda bebiam e riam e gritavam “barco”, como lhes era típico. Foi então que um moço, ralé de toda ralé, subiu em plena proa. Uma ousadia. Um desrespeito. Uma falta total de educação. Que queria ele entre elas, na parte mais importante e magnífica do barco, barco, barco?

Queria avisar dos erros no barco. Ele vira a construção do porão e podia quase garantir que não era sólida. Que não aguentaria muito tempo, que se partiria à primeira provação. Precisavam fazer alguma coisa. Do contrário, afundariam todos.

Hahahahahahahaha. Barco, barco, barco. Então ele por acaso era uma delas? NÃO! Ele era um dos engenheiros? NÃO! Ele era um dos construtores? NÃO! Ele era ralé e ralé não sabe nada. Barco pra ele. Que voltasse para o porão, onde era seu lugar, e deixasse de lado esses sentimentozinhos de inveja. Ah, como era feio criticar porque ele não sabia fazer melhor. Ah, que ridículo ele dizer isso porque queria o lugar delas... Ah, então elas não entendiam de barco? Ora, como sim. Barco, barco, barco pra ele. Imbecil burro.

Continuaram no champanhe e nos gritos e nas danças.

Quando a água começou a invadir o porão aos gorgolejos, ele tentou mais uma vez avisá-las. “O barco vai afundar! Precisamos fazer alguma coisa! E já!” Blá, blá, blá, disseram elas. Barco, barco, barco. O barco é ideal, é perfeito, está funcionando perfeitamente. Então se houvesse problemas ele pensava que elas não saberiam? Elas saberiam. Era o barco delas. E não havia nada de errado com ele. Será que ele não podia pegar o que ele pensava e enviar no casco? Bem fundo no casco? Elas sabiam. Os engenheiros sabiam. O barco era perfeito. Barco, barco, barco. E mais champanhe.

Ele foi ameaçado. Que parasse de dizer besteiras. O barco era lindo e era delas e não afundaria jamais. Mudaram as regras. O suprimento de pão lhe foi cortado. A surra passou a ser diária. Que aprendesse a não falar o que não sabia. O que ele, ralé, entendia de barcos? Nada. Se mais uma vez ele viesse com suas ideais revolucionárias e irreais, ele aprenderia sua lição. Seria jogado ao mar, como isca para os tubarões que vivam fora do barco, barco, barco.

Ao fim do dia, dois terços do porão já estavam submersos. Ele pensou uma última vez em avisá-las. Em dizer-lhes qual era a situação no fundo do barco, ele que estava ali, que via a água entrando, que via os primeiros ratos se afogarem. Isso era tudo que ele podia fazer, avisá-las. Que salvassem todos. Por favor, que não os deixassem morrer... 

Mas pensou melhor então. Elas não queriam ser salvas. O barco ideal existia, em suas mentes. O barco real não interessava a ninguém mais.

Percebeu que não importava o que dissesse, ou quantas vezes o fizesse, elas afundariam o barco do mesmo jeito.

Ele tentara. Era isso o importante. Não esperaria nem mais um momento. Foi à popa, vestiu o seu colete salva-vidas e atirou-se ao mar desconhecido. O barco afundaria de qualquer modo. Que fizessem o que lhes interessava, então. 

Enquanto esteve à deriva, ouvia ainda claramente o espocar dos champanhes e a cantiga sorridente que não cessava, mesmo quando a água salgada já lhes entrava pela boca. Barco, barco, barco, barco, como é perfeito nosso barco, dizia a última delas, enquanto morria.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Felicidade


Felicidade não faz barulho. Felicidade não sai na rua, não dá abraço ou sorriso forçado e não abana para quem passa. Felicidade não quer aparecer. Felicidade não vai às festas e nem se deixa fotografar para o Facebook. Felicidade não ganha aumento, não sobe de cargo e não fila a simpatia alheia. Felicidade não humilha ninguém. Felicidade não usa anéis sem decoro, não quer sapato de couro e não é sempre a primeira a falar. 

Felicidade não quer sair no jornal.

Felicidade não mente, não fala em nome dos outros e não obriga sua presença a ninguém. Felicidade não faz complô, não troca olhares significativos e não quer ser mais importante do que qualquer um. Felicidade não se importa com os outros. Felicidade não quer ter poder. Felicidade não quer parecer.

Felicidade chega em casa depois de um dia de cão e sorri. Embevecida. Não importa o quanto a queiram, só ela decide a quem se dar. Não importa o quanto se importem, ela só quer um canto de lábio. Felicidade é aquilo que fica quando ninguém mais sabe, ninguém mais vê, ninguém mais se importa. Felicidade é promessa de ser feliz mais além. Felicidade é perceber como tudo é passageiro, como pouca coisa é realmente importante, como há quem lhe ama só por amar, não por mostrar. Felicidade, enfim, é ser. Ser de verdade. E saber, mesmo que ninguém mais saiba, que se é feliz.

sábado, 17 de novembro de 2012

A vizinha


A vizinha sabe de todas as coisas.

Seria até caso de estudo. Só não é porque ninguém no mundo é tão sabida quanto a vizinha. Logo, só a vizinha poderia estudar a vizinha. Mas isso ela não faz. É perigoso o que ela poderia descobrir... Além disso, a vida da vizinha é perfeita.

A vizinha conhece as doenças todas. Ela tem, em algum lugar, um diploma de medicina. Lá de Harvard. Em um olhar ela diagnostica, desengana e indica um tratamento milagroso. Mi-la-gro-so. Salva o corpo e alma do infeliz.

A vizinha sabe o que acontece com todo mundo. Ela tem alguma tecnologia que nem a Nasa inventou ainda. Ela sabe quem trai, quem rouba, quem se droga, quem trafica e quem dá o cu escondido. A vizinha sabe onde você está agora. O que está pensando. O que você acha que ninguém sabe, a vizinha sabe. 

A vizinha está informada das notícias todas. Ela tem contatos espalhados em todo o Brasil – e mundo afora também. Caiu um prédio no Japão? A vizinha sabe. Caiu a bolsa na Alemanha? A vizinha viu. Morreram cinco no Paquistão? A vizinha estava lá. Espirrou sangue nela, inclusive. Quer ver? A vizinha mostra.

A vizinha tem um GPS que, quando for descoberto pelos outros, será tratado como invenção extraterrestre. A vizinha sabe de onde você chegou às 3h da manhã. E mais, sabe para onde você vai às 3h da tarde. Mesmo que nem você saiba ainda. Ela já sabe e já avisou alguém.

Porque, afinal, todo conhecimento deve ser repartido...

E a vizinha reparte.

A vizinha estudou tudo sobre relacionamento familiar também... Como tratar bem o marido, como criar lindos filhos, como adular a mãe, a sogra, o periquito... Tudo isso a vizinha sabe e não se cansa de ensinar. Ela conhece quem bate na mulher, quem dorme com a filha, quem trai a esposa com a cunhada e até quem deu uns pegas na própria avó.

Não bastasse, a vizinha conhece Deus. Se ninguém mais O conhece, ela conhece. Tem linha direta com Ele. Ela sabe do que Ele gosta e o que não gosta, o que Ele permite ou não permite... Ela sabe como ninguém o que é pecado. E avisa. E julga. E condena. Misericórdia? Se Ele tem, a vizinha não. É coisa do capeta.

Economia, beleza, jardinagem, educação, tecnologia, saúde, astrologia, traições, tradições, psicologia, psiquiatria, espiritismo, macumba, simpatia, medicina, medicina veterinária, enfermagem, finanças, relações exteriores, terrorismo, cinema alemão pós-expressionista, taxidermia, história, aramaico, inglês, bicho de pé, chá pra diarreia, astronomia, pediatria, botânica, química orgânica – e inorgânica, paleontologia, música, mineração... de tudo ela sabe tudo.

Ela contradiz, com calma e fumo, cada um dos especialistas dessas áreas, sendo, inclusive, capaz de convencê-los prontamente de que nada sabem, se comparados a ela.

Este texto, como se percebe, é um elogio à vizinha.

Porque a última vida que ela conseguiu salvar foi a minha. Não de um risco de morte, mas de esquecimento eminente.

Sim, em seu laboratório subterrâneo, usando seus conhecimentos de neurociência e neuromedicina e neuropsicologia e neurobarometria, entre outros, ela fez uma descoberta importantíssima, inédita, salutar, digna do próximo Nobel de medicina.

Preparados?


E que, portanto, ou eu paro com essa mania de ler – e de escrever, logicamente – ou acabarei afetado - e louco - muito em breve.

Nada tem a ver com meu conhecimento, com as oportunidades que estão surgindo, com o livro que lancei, com meus poemas que estão ganhando o mundo... É tudo uma questão de saúde. Preocupada como só, tratou de convencer meus parentes todos de que NÃO ler é o único remédio...

Como eu, porém, sou viciado e sem cura... continuo lendo. Agora escondido. O que pouco efeito tem, afinal, a vizinha sempre sabe... E não demora para que ela me denuncie e me encaminhe para uma internação compulsória (basta ela assinar um papel... a vizinha tem poder!).

Se eu internado for, por favor, conto com vocês.

Levem-me bolos, tortas e bolachas.

Sempre com recheios de Rimbaud, Woolf, Wilde e Flaubert.

Que, como a vizinha sabe, são os nomes de 'ameixa', 'banana', 'morangos' e 'doce de leite' em inglês.

(Lógico que a vizinha sabe!)

Um beijo para ela, inclusive, que já deve estar lendo esse texto antes mesmo de eu o escrever.


"O quê? Ele está lendo de novo?
Mas tem gente que não quer
ser ajudada mesmo...."



terça-feira, 13 de novembro de 2012

Quereres


É que no fundo eu começo a me sentir um piá de merda.

E piora, piora muito quando eu tomo a consciência de que, aos 24 anos, eu tenho direito de ser um piá de merda. Mas é que assim não me querem. 

Não me querem embarcando em um ônibus e mandando o motorista parar só quando eu cansar de olhar trigo e céu. Não me querem na cidade grande, passando fome e dividindo aluguel. Não me querem ganhando gorjeta em um bar imundo enquanto sonho em conquistar o mundo com dez versos e duas canções. Não me querem bêbado na praça gritando “all you need is love” às duas horas de uma manhã.

Não me querem como um sonhador, como um menino de nuvens, como aqueles que fracassam acreditando na putaria da arte. Não me querem fazendo curtas independentes e escrevendo contos que ninguém lê. E que quem lê não entende. Não me querem nas sarjetas. Por quê? Não me querem colorido de ilusões, acreditando até envelhecer, até perceber que é, não deu. Até engavetar tudo, até trancar e ir viver como os outros. Não me querem. Em lugar algum me querem.

E há o que eu não me quero também. Não me quero contando sempre os mesmos passos de casa à sala de aula e às balas necessárias para morte inevitável. Não me quero envelhecido e fraco, de terno gasto e gravata, sendo respeitado por qualquer coisa que disse uma vez. Não me quero sem sonhos, sorrindo das coisas bobas da juventude enquanto pago a escola das crianças. Não me quero assistindo os filhos voltando, trazendo livrinhos, enquanto penso que eu também já os quis escrever.

Não me quero dizendo que fui bobo e que agora sim sou correto e professor e sério. Não me quero contando quantas turmas eu tive e quanto tempo falta para a digníssima aposentadoria. Não me quero pigarreando alto, suando quente e dizendo “modernismo, minha gente”.

O que me quero?

Quem disse que me quero?

Não. Alguém assuma. Eu já não me quero mais.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Questões do impossível

Descascar uma laranja. Esse era meu objetivo de vida quando eu era só uma criança. Aquele processo todo de girar a laranja, a faca, as mãos, o mundo.... me parecia nada menos do que impossível. Eu olhava admirado vendo aquela casca soltar-se e formar uma serpentina comprida e ininterrupta. Eu nunca seria capaz. Eu sabia.

Quando descasquei minha primeira laranja, parecia que eu nascera fazendo aquilo. Era um movimento automático, independente de mim, não exigia habilidade, esforço, esperteza, destreza. Exigia a laranja, a faca e as mãos. Só.

Muito tempo depois, na faculdade, eu definia que impossível seria saber algum dia as classes gramaticais todas, os tempos verbais, as classificações das orações coordenadas e subordinadas.... As professoras diziam tudo aquilo com uma naturalidade extraterrestre. Não me era concebível como um ser humano comum, eu, no caso, conseguiria saber tudo aquilo algum dia.

Hoje eu recito a classificação das palavras de um texto inteiro, sem nem respirar.

Isso tudo me fez pensar que o impossível é, às vezes, uma questão de tempo. O que hoje me parece inatingível amanhã poderá ser só natural.

Toda essa reflexão é para perguntar o seguinte: e agora, quando é que eu vou saber exatamente o que dizer? Quando eu vou resolver meus problemas de forma confiante e eficiente, sem parecer um retardado gaguejante? Quando eu vou saber a resposta certa para uma provocação, para um elogio, para uma delicadeza inesperada? Quando eu vou perder o sorriso sem graça? Quando eu vou deixar de lado o embaraço e a sensação de desamparo?

Algum dia também isso se consegue? Ou chegou a hora de eu descobrir que algumas coisas são mesmo impossíveis, não importando quanto tempo passe? Chegou a hora, Carlos, de aceitar que alguns nascerem mesmo para ser gauches na vida?

Se alguém souber, por favor, responda.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Forte


Você não pode se confessar fraco. Nunca. Você briga e argumenta e discute e consegue. Você fere e tenta não se deixar ferir. Você protege quem ama, protege a própria pele, protege quem até quem nem conhece. Você parte e toma partido, você defende suas causas e tenta não comprar prisioneiros. Você prende o choro. [Ou você chora quando ninguém vê?]. Você aguenta consequências, você mente que tudo vai ficar bem. Você escolhe, separa, perde e corta, não sem dor, até as pessoas de dentro de si.

Você batalha e luta e consegue e falha e tenta de novo. E então você se acostuma. Você se acostuma a ser forte. Você acha que sua armadura é a única opção. Não é. É prisão. Ou antes esconderijo. Dentro da armadura, debaixo do aço escovado, do ferro no fogo dobrado, da carne que sustenta seu corpo, está só uma criança. Você.

E é abraço. Às vezes é abraço o que você quer. É abraço o que você precisa. Mas você não sabe pedir. Você desaprendeu. Ou porque ouviu que abraço não se pede, ou porque pensa que pedir é fraqueza. E você precisa ser forte. Você é forte.

Você não precisa de nada. Muito menos de abraço.
Mesmo que sem ele você fique assim, aos pedaços.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A afronta da Baronesa


Convidaram, então, a Baronesa para a festa no curral. Um erro, obviamente, mas o que se poderia fazer se ela estava mesmo em visita ao primo Genésio? Seria má educação não fazer o convite. Fizeram, mas avisando que a festa era de gente simples. Ela que não... fosse estranhasse. A Baronesa, muito cortês, aceitou o convite e fez de tudo para adequar-se à simplicidade citada.

Entre os vestidos que tinha – quase todos vindos da Europa a mando do falecido Barão – a mulher escolheu o mais simples, com menos rendas, com menos cores, com menos elegância nos tecidos e com menos bordados nos arremates. As jóias tirou todas, colares, pulseiras, anéis, brincos... Só deixou as duas alianças. Não passou pó de arroz nem blush. O único luxo a que se dignou foi ao perfume de laranjeira. Mais por hábito do que por consciência, inclusive.

Chegou à festa transformada em sorrisos e cordialidade. Mal chegou e fez-se o burburinho. “Que luxo! Não tem vergonha essa daí! Aposto que veio só pra se exibi! Antes a gente não tivesse convidado ela. Se era pra vim fazer assim... Garanto que tá dando risada da nossa cara, da nossa ropa, das comida que a gente feiz. Broaca! Parece uma prostituta de tão pintada. Olha só! E as jóias, heim? Deve tê tirado pra ninguém robá. Ah, mas dexô as aliança. Olha lá. Isso é só pra mostrá que tem dinhero! Cadela. E viu o perfume? Nem puta ainda fedendo tanto assim”

O momento do jantar foi terrível também. Enquanto todos comiam com as mãos e sofregamente, a Baronesa juntava bocadinhos com as pontas dos dedos e os levava delicadamente à boca. É que não havia talheres à mesa e, para ela, seria descortês perguntar. Comia aos poucos e sem jeito, desconfortável pela falta de hábito.

“Olha só o jeito que come! Pensa que é uma pombinha. Que nada, tá é com nojo da nossa comida. Olha, pega cas pontinha dos dedo... Que vaca! Como ela não fosse cagá que nem nóis depois! Parece que tem medo de se sujá. Não sei porque que veio, se era pra fazê cara de nojo!”

O próprio primo Genésio não sabia onde enfiar a cara, tamanha vergonha. Era só olhar feio que recebia. Sorria a todos como que se desculpando pela ostentação da convidada.

Mas foi quando chegou o momento das danças é que a coisa terminou realmente mal. Um moço desavisado, encantado com a novidade, decidiu tirar a Baronesa para dançar. Como o tempo de luto já passara e como estava ali fazendo o possível para se entrosar e ser agradável, a Baronesa aceitou o convite assim dizendo:

— És muito galante, meu rapaz. Certamente eu ficaria honrada.

Tudo então embaralhou-se. Só se ouviu o grito de “filho meu não é galhante coisa nenhuma, sua vaca!” enquanto a mãe do jovem partiu aos tapas sobre a elegância simplificada da Baronesa. Foi o que precisou para que todos os outros fizessem o mesmo. A pobre Baronesa teve o cabelo despenteado aos safanões, a roupa rasgada palmo por palmo e a pele pintada de vermelho e roxo e sangue.

E era bem feito. Bem feito, pensava até o primo Genésio. Fizeram o favor de convidá-la e ela fizera aquela presepada toda, esbanjando luxo para humilhá-los, comendo com nojo para constrangê-los e agora, não satisfeita, ainda xingava o rapaz que só queria lhe tirar para a dança. Ah, não, merecia mesmo a coça.

Só para se cobrar, Genésio abriu caminho entre aquela gente toda. Queria dar à prima sua pancada também. Afinal, fora ele o mais humilhado.. Quando chegou até ela, porém, viu que já não era necessário: a Baronesa estava morta. Ainda assim bateu. Bateu com força, bateu com vontade. Bateu porque, afinal, não fora pouco o desaforo.





segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Poesia concreta III









Não quero

C         N       E        E
O       F       T

NEM S E R  P  E  N    T    I   N     A

quero rotina.










Dia dos professores


Engenheiro, veterinário, artista, psicólogo, jornalista... Tudo isso eu já quis ser. Professor não.

Professor eu não quis ser.

Minha boa vontade para com a escrita me fez enredar por caminhos que a utilizassem também. A princípio o jornalismo. Mas um estágio e a falta de vocação me fizeram mudar de ideia, ainda no primeiro ano de faculdade. Mas para onde ir? Letras parecia a opção mais afim da escrita. Sim, na época eu já pensava em escrever.

Apesar disso, a  perceptiva de emprego, salário, tipo de trabalho, etc... parecia influir em mim. Até que veio uma certa mariposa e me disse: “Esqueça todo o resto. Você deve estudar o que você ama, o que lhe dá paixão. Você não estuda por um emprego, por um salário... você estuda por você e para a vida. Então estude o que te dá prazer. Estude o que você mais ama. Você vai ver como todo resto é consequência.”

Estudar o que eu mais amava... Era o conselho mais simples que eu já recebera. No entanto, eu sabia que conselheiro vocacional nenhum teria a sabedoria de luz dessa mariposa. O que eu mais amava? Literatura. Fui então para a faculdade de Letras, sem medos.

Tudo transcorria como em sonho. Especialmente em algumas aulas fascinantes de Literatura e Língua Portuguesa. As letras eram apaixonantes. E de repente eu me vi fascinado também pela função de ensinar, de educar, de lidar com pessoas em formação, com sonhos. 

Eu me tornava, aos poucos, irremediavelmente professor. E, pior, daqueles idealistas, do tipo que eu admirava em filmes como “Mentes brilhantes”, “O sorriso de Mona Lisa” e “Escritores da Liberdade”.

No meu primeiro estágio – repleto de medo – fui para frente de uma turma de EJA. Eu tinha 20 anos. Alguns de meus alunos, mais de 60. E eles me chamavam de senhor... Foi uma experiência ímpar. Foi o que eu precisava para me convencer de que, enfim, eu nascera mesmo para aquilo.

Tivemos 4 estágios. E em alguns deles, confesso, as ideias foram melhores que as execuções. Ainda havia insegurança e pudor em mim. Porém, tudo se dissipou quando assumi as minhas primeiras turmas. 

Nada se compara ao prazer de ter sua própria turma. De saber que não é temporário. De saber que o objetivo não é ser avaliado, mas ensinar, fascinar para o saber, mudar concepções, ajudar a construir sonhos.

É.... eu não escolhi ser professor, ser professor é que me escolheu. E só me cabe, então,  tentar ficar à altura dessa profissão.

Sei que não acerto sempre. Torço, porém, para estar acertando mais do que errando... Se é que isso é possível.. Não sei. Ser professor é tão subjetivo quanto a minha literatura. E tão emocionante quanto, também. Sei que estou tecendo pequenas diferenças. E nada se compara à possibilidade de mudar a vida de alguém. Se a cada ano eu puder acender uma luz na penumbra de um aluno, um aluno que seja, eu tenho certeza de que a escolha foi bem feita. De que eu estou sendo, enfim, professor.

sábado, 13 de outubro de 2012

Diálogos imaginários

— O mundo está carente de delicadeza.
— Você também, Clarice?
— Não... Eu estou carente de mundo. Só queria que o mundo fosse menos... bruto quando chegasse a hora dele me atingir.

sábado, 6 de outubro de 2012

Inside

Feche. Feche rápido as portas, dê duas voltas nas chaves e tranque os trincos também. Ligeiro. Bem ligeiro bata as janelas de par em par, venezianas, vidraças e depois cerre as cortinas de renda. Feche tudo: as frestas, as frinchas, as fendas... Feche, ande, feche tudo. Que hoje não entre nem luz nem vento. Hoje a festa é por dentro.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Entre aspas

"Qual é o cachorro que não lambe a mão que o alimenta? Qual é o cachorro que não rosna para quem lhe chega perto da comida? Não se preocupe, meu filho, isso tudo vai passar. O que tu tens na mão é um gato. E gatos gostam ou não gostam. Gatos, se não ganham comida em um lugar, não imploram, procuram em outro. Gatos são independentes e confiam neles mesmos, na própria capacidade de se sustentarem. Tu tens na mão um gato e gatos não agradam ninguém. Cachorros abanam o rabo até para quem os chuta, porque dependem dos outros para sobreviver. Gatos, ao primeiro desagrado, pulam o muro e vão viver outra vida. O pátio é pequeno demais para eles. Por isso, meu filho, não esqueças jamais que é um gato isso que tu tens na mão."



quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Nem tudo que rima é sinonímia


Um ditado diz: "não confunda alhos com bugalhos". Outro, mais propício às mesas de bar, vai além: "não confunda bunda com funda". Chulo, eu sei, mas por ora serve ao comparativo que preciso fazer.

Esses ditados aproximam palavras de significações diferentes.As duas possuem entre si apenas um traço comum: a rima. Pode-se confundir o significado de duas palavras porque rimam simplesmente? Não sei. Deixo isso aos amigos linguistas, minha paixão é a análise literária.

O fato é que, pelos últimos dois anos, eu tenho visto outras palavras rimadas serem confundidas ao limite: experiência e competência.

A confusão é tanta que eu, mesmo seguro, recorro a um dicionário (Luft) para explicá-las melhor:

"EXPERIÊNCIA: s.f. 1. Ação ou efeito de experimentar(-se). 2. Prática; conhecimento; perícia. 3. Ensaio; tentativa; demonstração. 4. (Filos.) Conhecimento transmitido através dos sentidos."

"COMPETÊNCIA: s.f. 1. Qualidade de competente. 2. Alçada; autoridade; jurisdição. 3. Idoneidade; aptidão. 4. Habilidade, saber."

Palavras diferentes, significados diferentes. Nem preciso consultar um dicionário de sinônimos para ver que lá também elas não se equivalem. Logo, uma pessoa que trabalha há 20 anos na mesma função, ou seja, tem conhecimento de todos os trâmites e práticas, possui EXPERIÊNCIA. Uma pessoa que faz bem o seu trabalho, de forma habilidosa, comprometida e apta – independente do tempo de trabalho – possui COMPETÊNCIA.

É possível trabalhar 20 anos em um cargo e ser incompetente? Lógico. Basta para isso ser relapso, ter uma formação ultrapassada, acomodar-se e tudo mais. Alguém pode argumentar que uma pessoa assim jamais se manteria no emprego por tanto tempo. No setor privado, possivelmente, não...

Por outro lado, é possível uma pessoa estar há seis meses em uma empresa e ser competente? Sim. Apesar da sua experiência naquela função ser limitada, uma formação de qualidade, seu empenho e sua aptidão para sua função podem fazer dela uma pessoa dotada de grande competência.

É possível, ainda, que as duas qualidades estejam ausentes na mesma pessoa, o que a torna um caos completo. O governo têm se preocupado em garantir a formação de um número gigantesco de pessoas. A qualidade dessa formação, no entanto, têm estado com sérios problemas de nanismo. Muitos recém-formados saem da faculdade sem ter a mínima noção necessária para exercer, de fato, a profissão que escolheram. Esse despreparo gera incompetência o que, certamente, vai truncar a aquisição de uma experiência duradoura na área.

Por fim, há ainda, evidentemente, quem una de forma brilhante os dois vocábulos. Pessoas fantásticas, com décadas de experiência, que são competentíssimas no que fazem. Essas são minha inspiração. Gente que não parou no tempo, que sabe da importância de estudar sempre, de se renovar sempre e de se manter informada e culta. Pessoas assim, inclusive, jamais confundem competência e experiência.

De todo modo, por mais que eu me desdobre tentando, não consigo compreender a confusão que os outros fazem entre estes dois termos. Seria porque faço parte de uma geração que nasceu sem verdade absoluta? Aprendi desde novo a relatividade das coisas, as transformações constantes em todos os campos e, de modo destacado, a necessidade da mudança para haver evolução.

Há décadas se ultrapassou a concepção de que funcionário bom é aquele que morre no mesmo cargo. Funcionário bom, hoje, é aquele que é promovido, que amplia seu campo de opções, que pode e quer e precisa crescer sempre. Aposentar-se no mesmo cargo que começou deixou de ser um status. Assim como aposentar-se e ficar em casa esperando a morte chegar deixou de ser única opção.

Estamos na era do instantâneo, na qual o valor da informação (e da formação, às vezes) é dado pela sua atualização. Sem atualizar-se constantemente qualquer profissional, mesmo o recém-formado, já está ultrapassado. Em meio a tudo isso, a experiência continua válida, sem dúvida, sendo um facilitador para obter-se a tão desejada competência.

Mas vejam bem, eu disse um ‘facilitador’. Experiência e competência não se anulam, podem perfeitamente conviver fazendo uma parte da outra. Mesmo assim, elas não se equivalem, elas não são interdependentes.

Na justiça (pelo menos na teoria) todos são inocentes até que se prove o contrário. A suposição positiva, portanto, permanece. Por que, no mercado de trabalho, o contrário ocorre? Todos são incompetentes até que provem o contrário. E para quem essa prova deve ser dada? Aos superiores? Aos clientes? Aos colegas mais ‘experientes’, talvez?

Como explicar que chamem de incompetente quem acabou de se formar pelo simples fato de não ter exercido a profissão anteriormente? Como classificar como competente aquele funcionário formado há 20, 30 anos e que jamais fez um curso para atualizar-se e – se duvidarem – ainda escreve “ele” com acento circunflexo?

E a pergunta maior: como eu faço para entender isso? Eu, sinceramente, não consigo estabelecer uma lógica. Se alguém mais experiente puder me ajudar, agradeço a paciência e, de quebra, ainda elogio, enfaticamente, a competência.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Trevo de três folhas só


Às vezes quem está de fora tem uma visão 'mágica' da sua vida. As pessoas tendem a pensar que tudo que você conquista é uma questão de sorte, favorecimento divino, astral ou puro apadrinhamento mesmo. E elas acham, então, o mundo injusto. “Por que as coisas boas só acontecem com os outros? Por que só eu é que nunca me dou bem?”

As mesmas pessoas, no entanto, não sacrificariam aquela festa de final de semana para ficarem em casa, estudando. Elas não passariam uma tarde de chuva, propícia para um boa soneca, trabalhando sem ganhar recompensa alguma por isso. As mesmas pessoas que dizem não ter ‘sorte’ no amor, são aquelas que acham um máximo “pegar” quinze em uma noite.

Por favor, sejamos coerentes. Concordo com Thomas Jefferson: "Creio bastante na sorte. E tenho constatado que, quanto mais eu trabalho, mais sorte tenho"

Sorte existe? Existe. Favorecimento divino existe? Existe. Apadrinhamento existe? Existe. Mas esses itens são como animais em extinção. Se você não tem nada disso – e eu mesmo não tenho – a solução mais simples é uma só: trabalhar. Eu sacrifico todos os dias uma porção de ‘vontades’ em troca de necessidades. Shows, festas, bebedeiras e badalações ou artigos, pesquisas, leituras e revisões? Segunda opção para mim, por favor.

Eu me divirto também, lógico. Eu saio também. Eu bebo também. Mas bem menos do que minha idade permitiria. Por quê? Porque eu tenho ideais. E porque eu sei que “deus” nenhum, “mágica” nenhuma, “indicação” nenhuma vai aparecer, exceto se EU fizer aparecer, exceto se EU me esforçar e fizer realmente por merecer.

Nada me veio fácil. Nada me “aconteceu” simplesmente, por jogo de destino ou sorte. Cada conquista, por mais humilde que seja, foi fruto de dedicação e sacrifício. E continua sendo. Quanto mais oportunidades, mais trabalho, mais preocupações, mais incômodos. E eu reclamo? Não. Eu faço. Faço porque é por mim.

Já me ofereceram atalhos, caminhos fáceis, e eu recusei. Não importa em que lugar eu vou chegar, desde que seja pelos meus próprios meios. Se for por competência e esforço, ótimo. Se for por amizade, fico lisonjeado – mesmo - mas não, obrigado. Eu preciso ter certeza do meu merecimento. Sempre precisei.

Enfim, cada vez que você considerar alguém uma pessoa de “sorte”, pense em quanto esforço há por trás de suas conquistas. Se você quer ter as mesmas oportunidades que ela, as mesmas vitórias, não se preocupe com essa pessoa, mas com o que VOCÊ está disposto a fazer e a sacrificar. 

Quer sorte? Ótimo. Trabalhe duro e chame as consequências – que certamente virão – de “sorte” ou daquilo que você quiser chamar. 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

O sentido de um sentir


Quando ficou sozinho, depois da festa, precisou entender o que sentia. E como entenderia? Pelo seu modo natural de entender as cosias, vendo-as refletidas por fora.

Foi ao baú dos LPs e procurou. Revirou cada disco. Leu o nome das músicas, ouviu trechos de algumas, pensou em outras que nem sequer tinha mais. Nada. Nenhuma música lhe cantava o que sentia.

Partiu para as estantes estalando de livros. Descartou de cara a prosa. O que sentia era poesia. Percorreu lombadas com os dedos, virando a cabeça ora à esquerda, ora à direita. Folheou páginas de sonetos, com rimas e sem rimas. Leu trechos em voz alta, em voz baixa, silenciosamente. Leu em inglês, em espanhol, em pitadas de russo, em português até. Nada. Nenhum dos seus poetas jamais escrevera sobre que ele sentia.

Foi à janela. Olhou as estrelas e sentiu o cheiro gelado da noite. Tocou as grades frias, seu próprio corpo quente de febre, a seda verde e escura das cortinas. Nada. Nenhuma sensação, nenhuma visão, nenhum cheiro traduzia o que lhe passava por dentro. 

Tentou então encontrar palavras. É só pela palavra que o homem domina. Que nome dar? Os nomes velhos já não serviam. Era carnal para ser esperança. Era azul para ser amor. Tinha delicadeza para ser paixão, pulsação para ser carinho e pelos demais para se chamar liberdade. Como era então? De repente lhe ocorreu: era peito-explodindo-por-dentro.

Era novo. 
E era bom.

Peito-explodindo-por-dentro. Repetiu, e seu sorriso desabrochou inteiro. Deitou na cama, mas não dormiria aquela noite. Nem em muitas outras mais. Não dormiria até a explosão se manifestar do lado de fora. Até ele ser 'eu-explodindo-inteiro'. Só então ele teria terminado a busca. Só então ele entenderia, completamente, o sentido do que sentia.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Meu vício

Eu espero. Espero a casa toda se acalmar. Espero que até os cachorros durmam. Espero que os vizinhos saiam para trabalhar. Qualquer um deles, se me visse, saberia para onde vou e daria o alarme.

Eu não precisaria ir. Eu tenho em casa. Tenho mais do que poderia usar. Escondido nos armários, pelo chão, em todas as gavetas, nas mochilas todas, sobre as cômodas. Eu tenho. Tenho o suficiente para cinco ou seis overdoses. Mas basta? Não basta.

Na verdade eu nem queria ir. Não deveria ir. Eu tenho minha vida já toda bagunçada. Mais disso só me traria problemas. Faria com que eu atrasasse tudo ainda mais. Eu prometi. Mil vezes eu prometi a mim que iria parar. Segurar por umas semanas, pelo menos. Dar um tempo...  só por enquanto. Tentar me manter sóbrio, de cara limpa. Mas como? Como se a realidade é feia e as pessoas são brutas?

Só o vício ameniza.

Eu ando pelas ruas como andam os criminosos todos. Cabeça baixa, andar rápido, olhar sempre desviado. Encarar o outro - o são - é mortal. A vergonha é grande. Vergonha de trair especialmente a mim. Eu havia prometido... Então eu sou meu próprio traidor? Sim.

É porque sou fraco diante do vício.

Atravesso a cidade e sinto que muitos já sabem. Os do meu caminho já intuem. Já sorriem. Eles sabem... Tantas vezes eles tentaram me avisar. Procuraram meus pais até. Quando me viam, antes diziam assim: "Pare com isso, meu guri. Isso não fez bem, nem pro corpo, nem pra cabeça. Tu ainda vai te arrepender.... Pare enquanto é tempo"

Eu não parei e eles desistiram. Que eu me danasse, então.

Às vezes me arrependo. Mesmo. Às vezes penso que se eu os tivesse escutado... Me fez mal mesmo. Para o corpo e a cabeça. Deixou sequelas. Só agora eu sei. Mas agora já estou perdido. Agora não adianta. Não adianta o olhar impassível dos pais. Não adiantam as súplicas silenciosas da namorada. Mesmo eles já se conformaram.

Porque no fundo no fundo eles sabem: não podem me fazer escolher. Se eu tivesse que escolher entre qualquer coisa e o vício... 

Eles sabem.

Quando vou chegando ao local, estremeço todo. Entro disfarçado, cobrando ainda a minha culpa. Eu não deveria. Eu não poderia. Isso destrói minha paz já tão delicada.

Há aulas, há mestrado, há um livro por revisar, outro por reescrever... Como eu posso me permitir assim? Como eu posso me entregar, ser tão inconsequente? Não sei.

Não sei, mas posso.

Eu sou fraco. E já não sei se a fraqueza é motivo ou álibi. Também não importa.

Quando chego na boca lá estão elas. Só sorrisos. Aliciadoras é o que são. Mas sorrio também, já inebriado pelo cheiro. Lá meu vício sorri comigo. De todos os lados. E elas me tratam com deferência. Porque sabem que eu pertenço àquele lugar. Elas sabem que eu sou dos condenados. Dos que já não têm mais volta.

Elas sabem que é só isso que ameniza os dias. Só isso que permite fugir da realidade prenhe de caos. Só isso que amplia a visão, a percepção, o êxtase, só isso que faz 'viajar'...

Elas sabem. 

E como são maldosas. Uma delas já diz logo que separou para mim do melhor. Que outros clientes queriam, mas ela não deixou que levassem. Que é mesmo do bom e que veio ainda semana passada. Tinha quase meu nome escrito nele.

Eu pego. Olho bem. Cheiro.

Esqueço minhas promessas. Esqueço minha vida e a tentativa de mantê-la ordenada. Que me interessam as outras coisas?

É esse mesmo! Eu quero! Eu preciso!

Lá no fundo, avisos espocam: NÃO! Eu não deveria. Isso significa mais atraso, mais atrapalhação, mais nãos, mais caras feias e compromissos quebrados, isso significa a caída mais para o fundo do poço... Não!

Eu não devia, mas eu quero.

Quero e pego e saio. Saio escondendo-o. Embora todos notem. Todos saibam. Chego em casa e olho para minha vida espalhada sobre a cama: os cadernos, as pesquisas, o notebook ainda ligado... Tudo poderia ser tão bom se não fosse meu vício. Tudo seria feito, seria resolvido, seria entregue... Mas há o vício. E não posso com ele, então me entrego...

Deixo tudo de lado. Pego o que trouxe da boca. Abro. Cheiro mais uma vez. E é mesmo do bom.
Enfim, começo a ler.




Estou perdido. Eu sei. Porque para o meu vício não há cura.
Maldita seja essa [bendita] da leitura.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A menina que podia [e a que não podia] voar



A menina... a menina... é o dia da menina voar.

Eu a procuro bem cedinho, dou banho, lavo os cabelos com cheiro de amora, coloco neles a faixa amarela. Escovo até brilharem feito sol. E é de sol também o sorriso dela. Depois, coloco nela o vestido novo, todo limpo e lindo. Arrumo o volume da saia, deixo que ela use os chinelinhos tão queridos... Seguro sua ansiedade comigo e faço-a prometer que não vai sair voando antes do tempo. Ela promete, sorrindo toda.

Também recomendo o que recomendaria qualquer mãe zelosa: “Sem se sujar, heim, meu amor?”. Ela diz “aham”, como eu mesmo dizia à minha mãe.

Depois eu me distraio. Cuido das coisas de um adulto cuidar. Providencio tudo para que ela voe, corro, me distorço me faço e desfaço. Passo por cima de tudo que é constrangimento em mim. Para que ela esteja linda. Para que ela voe.

Quando a chamo de volta, ela não vem.

Chamo de novo, pelo nome que só eu sei...

E nada.

Então vou procurá-la. E no quintal, escondida debaixo dos pés de azaleia está ela. Cabelos em desgrenho e nós. Rosto sujo de terra - e sangue até. Arranhões nos braços, lama no branco do vestido. Só um chinelo no pé. Do outro já não se sabe.

Quando me vê ela se encolhe, como se eu lhe fosse aplicar qualquer bofetada. Não. Ajoelho-me junto a ela, cheio de choro nos olhos. Ela ergue o próprio rosto, olhos úmidos também, vertentes d’água. Pede perdão e me abraça forte, sujando de barro meu próprio casaco.

E eu não entendo! Ela não é assim. Não é de artes tamanhas. Não a minha menina. Justo no dia de voar.... Não falo nada. Ela também não. Só ficamos abraçados, o sangue do seu rostinho deixando frinchas vermelhas na minha camisa.

Pego seu rosto entre as mãos, olho no fundo dos olhos, vejo dois lagos castanhos e neles uma tristeza imensa. Beijo um, depois o outro. E então ela desata, entre soluços, a falar:

“Foi ela. A menina aquela. Passou e me viu. Perguntou se era hoje meu voo. E eu disse que sim. Daí ela não perguntou mais nada. Só disse que era para eu aprender de uma vez. Que eu não aprendia mesmo... E que se ela não voava, eu não voaria também. Então vieram as pedras e os arranhões e as bolotas de barro. E ela me deixou toda assim. Desculpa eu?”

- - -

Naquela noite, apesar de tudo, tudo, tudo. Apesar dos impedimentos todos. Apesar do descaso. Apesar da sujeira. Apesar dos arranhões. Apesar da lama no vestido. Apesar do chinelo perdido. Apesar da maldade da outra. Apesar do medo, especialmente apesar do medo, que a minha menina tinha do dragão da lua, ela voou. Lindamente ela voou. E eu, ainda com seu sangue e sua lama na minha própria roupa, aplaudi forte.

Os que olharam, fascinados pela beleza dela, não repararam no estado de suas roupas, na sujeira de sua pele, nos nós do seu cabelo. Era uma menina. E voava!

E a ninguém também importou a garotinha má e indelicada. Atirando pedras para cima. Essa nunca voaria. Porque é preciso de alma para voar.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

De vento em voo

Amanhã.

Amanhã é a noite da realização de um sonho. E eu queria muito escrever sobre o que eu sinto. Sobre o que me trouxe aqui. Mas as palavras já me estão engasgadas.

No Febre Crônica, blog em que eu escrevo às segundas, há uma noção do que se passa nos bastidores do meu peito. Para ler, é só clicar aqui.


Um obrigado especial a quem em acompanha e desde sempre torce por mim.



quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Convite


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Formigas

Ele guardou, então, o seu melhor. Escondeu mesmo, como criança faria com o derradeiro brigadeiro. Guardou. E esqueceu onde encontrar. No fim da festa, sua parte mais doce, ninguém comeu. Nem ele. Nem eu.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Ladeira abaixo

É como descer uma ladeira. Uma ladeira bem íngreme e bem funda para dentro de si. Você começa a correr sem vontade, depois por gosto e, no fim, já não consegue parar.

Você quer parar de correr, quer continuar com a vida e suas coisas frágeis de andar, mas não consegue. Você desce desenfreado, como se suas pernas tivessem uma vida só delas. Como se elas descobrissem que foram feitas para correr e não quisessem mais, jamais, parar de novo.

E você corre e corre e corre, sem muito destino, sem muita direção, trocando os passos, se atropelando, sentindo o sangue inchar o nariz, como uma premonição da queda certeira.

Mas a queda não importa às suas pernas. E elas correm e correm e correm, cada vez mais rápidas, cada vez mais para o fundo. E, no fim, se não trilham o caminho certo, ou se são desengonçadas enquanto você queria ser elegante, não importa. Importa é que algum caminho se fez. E importa que você conseguiu ir mais fundo para dentro de si.

Eu sou assim. Sou assim, só que com a escrita. No lugar de pernas, dedos frenéticos. Dedos que no começo se recusam a correr pelas teclas, demoram, se espicham, reclamam. Mas que logo aprendem os caminhos da ficção e não querem mais descanso. Só querem o tec,tec,tec, rápido das teclas em que batem. E aí me desgoverno.

Aí perco a prosa e me preparo para a cara no chão. Hoje foi assim. Eu falava com uma amiga até não poder mais. E de repente a conexão falhou. E eu precisei fazer algo de mim. Peguei um texto começado, então. Esperança de ser um futuro segundo livro, publicado pela mesma editora do futuro primeiro livro.

Comecei sem tom e logo o texto se fez. E eu me desfiz. 12 páginas. Direto. Sem pausa nem para olhar ao lado. Depois um e-mail, longuíssimo, ao editor. (Sou dos que se descontrolam e escrevem, então, até mais do que aquilo que os outros tem paciência de ler). Esqueço que para meu meio tempo de escrever há um tempo inteiro de ler e responder.

Me podei de lá. Coitado, tão atarefado o moço e eu ainda a lhe despejar meu jorro vazio e vocabular. Ele precisa de espaço, entre minhas letras, para responder e respirar. A quem direciono então o castigo? A quem eu escrevo porque simplesmente não posso parar de escrever? A você!

Pois é certo. A você.

A você que não tem rosto, a você que nem sempre existe, a você que talvez nunca venha a ler essa prosopopéia que descamba – já rolando – a ladeira. Porque é assim que o escritor se sente. Sozinho.

Ele é lido, mas não sabe. Não faz ideia. A menos que você diga alguma coisa. Então tudo se ilumina. Mas você raramente diz. Raramente lê, decerto também. Não é sua culpa, meu amor. Não há tempo. Eu sei. Poucos desfrutam da inutilidade que é ler. Ou escrever, a propósito.

Inutilidade que salva, à qual eu dedico minha vida em altar nu de sacrifício, mas inutilidade para você, confessemos.

E nessa confissão as pernas/dedos finalmente tropeçam, em algum lugar entre o enter e a barra de espaços. Finalmente. Exausto, ralado e arranhado, mas de sorriso na cara eu paro. E eu paro como se tivesse valido a pena, mesmo que seja só para eu mesmo rir do tombo.



quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Ábaco


Até hoje aprendi
que o que de pior há
é ter que confiar em alguém
com quem não se pode
contar.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Chapeuzinho revisitada


Era uma mocinha, do alto de seus sete-oito. Vinha empertigada por uma calçada, eu ia distraído pela outra. Nos encontraríamos na exata esquina.

Eu vi o pavor crescer em seus olhos, contrastando com a força das que são mocinhas: é que na minha mão ela via uma guia vermelha, mas não via, por detrás do muro, que cão eu levava. Em sua mente de menina passavam descontrolados cachorros enormes e raivosos, pelos negros, dentes afiadíssimos, língua salivante, olhos de vermelho horror! Ai, meu Deus! 

Ela toda gritava por socorro. E ela toda se esforçava para manter a pose. Era mocinha. Não era criança de se assustar à toa. Enfrentaria. Tinha o que, imaginava, fazia das meninas mocinhas e das mocinhas mulheres: coragem.

As mãos brancas de menina segurando a mochila - e o grito. Os olhos, castanhos de menina arregalados de medo. As pernas finas de menina tremelicando nos últimos três passos. E toda ela mocinha. Toda ela valente, contendo-se. Toda ela disfarçando o medo, caminhando para o que viesse. Três passos faltando ainda. Será que eu paro? Será que eu corro? Atravesso a rua? Volto? Não! 
Vou! 
Três passos... 
Coragem!

Um. Mas e se for um Rottweiler?
Dois. Ou um Pit Bull?
Três! 

E o coração a se despedaçar por dentro.

Tum, tum. Tum, tum. Tum, tum...

O encontro.

TUM!


- Aaaaai.... Que fofo.


Fora mocinha até ali. Podia, aliviado o medo, voltar a ser menina. E o seu "Ai que fofo" escapou com o encantamento que só as crianças têm pelo que é delicado. Com a descoberta da inutilidade do medo. Com a desconfiança de que a vida é boa. Com a certeza de que sua existência estava salva, de que poderia, sim, no exato tempo, se tornar mocinha. Por enquanto era menina. E uma menina que teria o que contar na escola.

Eu sorri, maravilhado - que é meu modo meio novo de ser. Sorri do medo insatisfeito. Sorri da vida ganhando. Sorri da mocinha empertigada se tornando só menina. Era bela a tarde. E o Bag, meu filhotão doce de poodle toy, seguiu caminho abanando o rabo, estufado de elogio e sol.

sábado, 4 de agosto de 2012

Das últimas epifanias


Já era noite. E foi só quando caminhei sozinho que dei pela mudança. Era como se as peças soltas por dentro não estivessem mais chacoalhando. Como se as porcelanas quebradas tivessem sido tiradas, coladas, e então colocadas de volta, feito novas.

Nada mais de tilintares. Nada mais da sensação de incompletude, nada de vazio, de oco, de abandono por dentro. Eu estava, de repente, inteiro. Eu estava, de repente, completo.

Mas a mim não ensinaram o milagre gratuito. A mim nunca a graça veio "de graça". Eu só conheci o sabor das coisas pelas quais me atormentei. Até hoje só foi meu o que eu conquistei. E então aquilo. Então, quando dei por mim, meu sentido havia me encontrando. O mesmo sentido que eu procurei em tudo, tudo. O mesmo que eu já desistia de encontrar. De repente ali, inteiro no peito, como se fosse seu lugar mesmo. 

E era.

Mas não assim, pensei. Assim não...

É que se eu questiono o que de errado há, não é por simplesmente discordar. É porque sou uma interrogação mesmo. E o bom eu também questiono. Meu sorriso aberto já veio com a pergunta: E agora, Vinícius? Agora o que foi que você fez para se completar? O que foi, afinal, tão significativo para você ser encontrado pelo tesouro que buscava?

A resposta veio em flashes rápidos, epifânicos.

O tempo todo eu precisava encontrar esse tal sentido meu. E meu sentido passava por provar algo a alguém. (Sempre passa?) Por me mostrar merecedor. Por fazer alguém se orgulhar de mim. Quem? A quem eu precisava convencer? O perdão de quem eu precisava? A quem eu precisava provar? 

Aos meus pais. Poderia ser a eles. A eles que me adotaram com um amor imenso, primitivo amor, daqueles já desenhados desde as cavernas, em contornos de mãos. À mãe, que não pode ver o retrato sobre a cômoda, pela tristeza que aparece nele. Ao pai, cujo sangue uma transfusão fez correr em mim. Seria a eles? Não.

Ao meu amor, então. Precisava eu ainda provar algo a ela que é carne da minha? Que tem o meu mesmo gosto na pele e na boca? Precisava eu provar alguma coisa para alguém que até sonha o meu sonho? Que me compra o que eu lhe compro? Alguém cujos olhos eu posso ler e cujo pensamento jamais me é segredo? Não. A ela também não.

Porque os três me amam. E amor, caso se retribua, só pode ser com amor. Não há prova, não há perdão, não há convencimento. Em troca do amor o amor se basta. Não era a eles a minha prova. A quem então?

Ah, aos amigos. Aos poucos amigos. Não. Essa descartei de pronto. Desde meus primeiros passos são eles que me provam as coisas. Eles que me mostram o que não vejo. Eles que me olham com olhos sempre tão belos. E que me respeitam e admiram e amam mais do que eu mesmo. A eles tudo já estava provado. E por isso são tão meus.

Talvez aos tatus da Cratera! Aos bichos que de tão embolados estão, não conseguem suportar a luz, não conseguem ver o céu o brilho o ar o sol. Só vêem a própria barriga inchada. Só se fecham dentro de si mesmos, redondos e tolos, pensando que são, à parte, um mundo. Confundem a escuridão de suas pequenezas com o universo. Confundem as frestas de luz com milhões de estrelas. Confundem. Pobrezinhos.

Não. Os tatus são pequenos demais e perdem a proporção. Eles não enxergam sequer a Cratera, como verão para fora dela? Como verão fora deles próprios? Não verão. Jamais verão. Então, por Deus, não é a eles que eu preciso provar uma coisa qualquer.

Por Deus... Era isso? Deus? Era para Deus que eu precisava ainda provar? Era a Ele que eu precisava convencer? Sim, eu tive mesmo a ousadia de pensar Deus. Nele em quem eu sequer acredito. Mas por reflexo, quem sabe... Por lembrar do começo, do pecado original, do meu pecado. Do que me envergonhou e me fez e faz fingir que Ele não existe. Era a Ele minha prova? Não. Não porque se ele existisse, eu já teria provado. E, se não existisse, eu já teria desistido de provar. Não era a Ele porque minha própria imensidão não é tão grande assim. Nem minha ousadia tão intensa.

Era a quem então? Aos outros? Aos que eu não conheço? Aos que não me tem importância? Não. De mim não viria tanta benevolência assim. Em mim não há tanta vaidade para querer agradar o mundo. 

Então a quem? A quem eu precisava agradar? A quem eu precisava provar? A quem eu precisava me mostrar digno? A quem eu precisava me mostrar completo - para só depois o ser realmente? 

Silêncio. Noite. Árvores. Gente sorrindo para gente. Eu sorrindo sozinho. Bobo de felicidade por estar completo. Tentando, ainda, me compreender. E de repente a iluminação simples. De repente a resposta inteira, fechada, bonita, até. 

A pessoa para quem eu precisava provar...
A pessoa que precisava me perdoar...
A pessoa a quem eu precisava convencer...

Era, o tempo todo, eu mesmo.
E eu o fiz.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O preço de se despir


Nada me exaure mais do que ser Vinícius Linné. Então foi assim: cansado completamente de ser eu, tal como ator que já sufoca e sua e sofre por baixo da máscara, despi-me de mim. 

O movimento é fácil, a causa é justa - o escape é falso, mas isso não se conta. Passei então três dias em beatificada paz. Como que exorcizado, eu pude viver tudo de fora,  pude esquecer completamente os vazios, as escuridões, as poesias veladas, os abismos, os comodismos, as marcas, as fotografias, os reflexos, os enredos, os mortos, tudo.

Por três santos dias - em um ano de 363 outros - eu pude me imunizar contra o mundo. Pude me afastar o suficiente para me tornar insensível - especialmente a mim. Nada me doeu, nada me comoveu, nada me sensibilizou, nada me eriçou, nada me desvairou. Fui - e falo com a vergonha digna - um homem comum.

Fui um homem vulgar, que vê porcarias na televisão, que olha o mundo sem perguntar, que dorme longas tardes, que passeia com cachorro nas ruas, que responde a coisas simples, que não questiona, que obedece e que faz e que come e que só sonha dormindo.

Por estes três dias do que mais descansei foi das palavras. As palavras me consomem demais. Elas imperam em mim e me desgraçam, como se a desgraça fosse - e é! - minha única forma de conceber uma salvação.

Por três dias consegui - à custa da mediocridade - manter as palavras longe de mim. Nada li. Nada escrevi. Por Três Dias Inteiros.

Nirvana.

Passados os três dias eu precisava - como precisa todo viciado - me redimir com meus pecados. Precisava chamar todos eles de novo. Precisava fechar as janelas, escurecer o dia e invocar os demônios de volta. Eu precisava, enfim, vestir novamente o Vinícius Linné.

Uma parte importante dessa volta é, sem dúvida, a conexão. Estar conectado a outras pessoas. Uma infinidade delas, meus caríssimos demônios externos. 

No computador travo essa conexão. Junto com ela, porém, vem a dispersão. Por isso, no notebook não tenho internet. Isso me possibilita um trabalho mais concentrado, mais profundo, só espargido - levemente - por algumas gotas de paciência - quando tudo é difícil demais.

Eis que depois de me despir, ao querer me vestir novamente não encontrei essa peça da roupa.

O computador não ligou.

Então ele é tão meu a ponto de ser como eu? A ponto de não me querer mais porque eu - por bons três dias - não o quis?

Exatamente. O computador já não me quer. Tentou morrer para mim e levar consigo tudo que de meu eu tinha. Sim, porque não são minhas as roupas, os móveis, a casa, ele mesmo. Não me interessam profundamente as coisas. São meus - e muito meus - só os textos, as imagens, as pastas, as fotografias e tudo mais que eu mesmo fiz. E que agora está trancado nele.

Não sei. Não sei se há esperança de abrir novamente a caixa de Pandora, de reaver minhas posses pelo computador sequestradas. Meus anos de textos - dois romances prontos, inclusive; minhas fotos de contar histórias, meus artigos todos, minhas aulas, minhas músicas, meus vídeos, enfim, meus ouros e meus pequenos berloques por enquanto não existem.

Enquanto ele não voltar do conserto, eu não saberei se ainda tenho algo do que tinha. E por todo tempo em que ele não voltar, eu não terei como ser completamente Vinícius Linné. Talvez seja uma punição por eu não querer ser eu. E se for uma punição, ela acaba; o computador volta e tudo retorna ao mínimo status de normalidade. Se não for uma punição, se for castigo, se minhas coisas forem mesmo sumariamente trancadas em uma máquina, só me resta continuar incompleto.

Só me resta seguir sem um pedaço de tudo que eu fui - e este é sempre um risco ao se desfazer de si, mesmo que por um tempo. Até ter o computador de volta, sigo sendo este resto de eu. Não um Vinícius Linné. Minha pessoalidade sumiu. Por enquanto sou só um Linné. Científico, acadêmico, anti-niilista. 

Mas nem tudo são dores. Enquanto minha parte Vinícius adormece e fica incomunicável - intransponível - minha parte Linné dá jeito de adiantar sua dissertação toda. Livre de distrações e dos compromissos que o Vinícius arruma com as suas artes, é possível que o compenetrado Linné desembarace os fios de Clarice.

Assim sigo. Vazio de alguns demônios, inseguro quanto aos monstros trancados, compenetrado do modo como deveria ser. Linné até onde posso ver no espelho. E agora Linné? Agora é esperar. Esperar para ver se arrumo de volta minha parte Vinícius ou se precisarei tecer uma toda nova a partir de agora.

- - -
Update: a caixa de Pandora voltou. Aberta, nada se perdeu.
Então, Vinícius Linné de novo.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Quatro

"There are times when all the world's asleep
The questions run too deep
For such a simple man
Won't you please, please tell me what we've learned
I know it sounds absurd
But please tell me who I am"

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Um


É o fim do primeiro dia. E toda claridade esmaece - foge - levando consigo qualquer história boa de se contar. Os pássaros se calam, lentos, e cachorros, os barulhentos, começam a ladrar. Acabou, eu penso. E o pensamento intenso se põe a rodar.

Não posso mais - se traduz sozinha uma frase em tinta preta na máquina de escrever sonatas. Não posso mais, reverbera o último facho de sol lá fora. Vou-me embora. Dizemos ambos.

E vamos.

sábado, 30 de junho de 2012

Dentro dos baús

Ághata, a louca, chora escondida em um dos baús da casa. E eu não sei em qual deles. São muitos. São muitas as mágoas e as dores que temos aqui para guardar.

Eu só ouço seus gemidos e seus soluços esgarçados. Eles são como ratos e me roerem os nervos enquanto guincham incessantes. "Ághata, por favor - eu peço - pare." E ela não para.

Abro alguns baús à beira da histeria. E nada neles há senão vestidos aos trapos, teias de aranha e poeira o suficiente para sufocar até dez homens. Desisto. Mesmo que gastasse meus outros 100 anos a abrir baús. Mesmo que procurasse em todos os cômodos e todas as portas. Mesmo que chamasse e gritasse e prometesse relevar, eu não a encontraria.

Deixo que ela continue a chorar e quando vejo já choro também.

É só então que ela vem. Desgrenhada, coberta de pó e teia e traça. Manchada de choro, unhas roídas e vestido rasgado. Ághata se escora na porta e então me diz todas as coisas que precisava dizer.

Diz do seu desespero. Diz da sua tristeza. Diz da sua solidão de fundo de baú. Diz da sua falta de sentido. Diz do seu esvaziamento. Diz da falta de mim.

E eu, o que posso dizer?

Ela não espera que eu lhe diga mesmo alguma coisa. Ela espera que eu a abrace forte. Que eu lhe limpe as teias, que eu lhe cirza o vestido, que eu lhe penteie os cabelos, lhe passe batom nos lábios e esmalte nas unhas. Que eu lhe prometa, enfim, todas as coisas e lhe diga, pelo menos uma vez, que a amo.

Eu sei que ela espera isso. Eu sei que isso a salvaria. E, por consequência, salvaria a mim também. Salvaria-me do mesmo desespero. Do mesmo destino. Da mesma sina exata. Porque tudo que ela disse sentir, também eu já senti. De tudo que ela disse experimentar também eu já me fartei.

Mas estamos sufocados demais - ambos - para mexermos os braços. Estamos sem ar demais para formar as palavras na boca. Estamos já distantes demais para ouvirmos coisas bonitas. Passamos do ponto em que poderíamos ainda ser salvos. Cruzamos para onde o resgate é impossível. E por gosto.

Que desespero há em não poder consolar quem deveria ser consolado. Que desolação é  não poder salvar quem poderia ser salvo. Que angústia imensa essa de não ter forças suficientes nem para mostrar-se fraco. Nem para isso, Deus. Nem para dizer baixinho: “Eu sei. Eu entendo... Eu sou assim também. Encontra teu sentido, por favor, em salvar a mim....”

Não digo nada. Não faço nada. Mantenho minha dureza de pedra.

Ághata para de falar. Nos olhamos bem nos olhos. E desviamos. Ághata entende que salvá-la seria também me salvar. E que, mais do que tudo, quero mesmo é me perder.

Quando ela se afasta, lentamente, voltando para o seu secreto baú, eu esvazio um dos outros, o maior deles. Entro nele e me ponho a chorar, como um rato também.