quarta-feira, 19 de maio de 2010

Meus olhos,

, por exemplo, são parcialmente incapazes de fazer aquilo a que foram destinados: ver. Há cinco anos foram diagnosticados com uma miopia já suspeita. E, desde então, sua sina é estarem sempre recobertos de vidro.

(Às vezes eu acho que são míopes só para terem esta proteção. Só também para que meu rosto porte uma máscara. Uma armação, eu sei, mas antes de tudo uma máscara, porque com ela fico diferente de como sou.)

Eles são fugidios. Não bastasse a couraça das lentes, também a íris gosta de se fantasiar. “Hoje seus olhos estão pretos!” “Seus olhos, hoje, estão cor-de-mel”. E isso independe, vejam só, até do meu humor. Sim, porque eu tenho um avô cujos olhos são de um azul de invejar o céu, mas só quando ele se põe possesso. No mais, são só azuis, como quaisquer outros.

(Eu também acho que eles fogem propositalmente das pessoas. Quando eu caminho na rua, por exemplo, sempre lembro de ver mais o calçamento do que outros olhos. Talvez eles tenham um fascínio impensado por pedras e apenas isso. Afinal, aos olhos também merece ser dado o que eles desejam.)

Eu acho belos olhos pestanudos. Enfeitados como se de plumas, uma cauda de avestruz negra. Olhos lânguidos também me invejam, embora eles pareçam mais expressão de livro. Pálpebras pesadas, meninas dos olhos quase dormentes. Quem sustenta um olhar assim parece estar vivendo em constante prazer.

(Talvez esteja. Talvez o mundo de cores e formas seja prazeroso demais para estes tais “olhos lânguidos”. Isso explica o porquê de eles estarem sempre entreabertos, como se a visão do em torno fosse desnecessariamente boa. Acho que lânguidos – até a palavra desliza na língua – são os olhos de ressaca.)

Meu oculista anotou cuidadosamente seu telefone particular em um cartão. Disse que o procurasse, caso desejasse lentes de contato. Meus olhos tremeram de puro pavor. Eles são tão frágeis que não suportam sequer a possibilidade de um colírio, se fecham à menor ameaça. Como entrar neles, então, com os dedos para tirar e colocar aquela pele impensada? Não. Obrigado, meu oculista.

(Lembro de uma professora cujos olhos eram verdes. Ela usava lentes de contato. Eu lembro de que quando olhava bem de perto podia definir as bordas da lente, como halos da íris. Era uma demônia a professora. E seus olhos tinham halos santos.)

Bolas estranhas são os olhos estrábicos. Eu nunca sei em qual olho me fixar. Também nunca sei se a pessoa está ou não está olhando para mim, o que me gera um desconforto enorme. Tenho medo de estar sendo bobo, enquanto o outro olha a parede, tão mais interessante.

(Óculos escuros me perturbam do mesmo modo. Tornam os olhos insondáveis, de repente livres demais. Nesse caso, o problema não é suspeitar que a outra pessoa olhe a parede, mas que ela olhe você. Quando nem deveria.)

Olhos arregalados me apavoram. Não gosto de órbitas prontas a saírem do espaço. Já olhos orientais me instigam. Sempre guardam um segredo insinuado, às vezes até fingido, mas ainda assim um segredo. Quando eu acordo tenho olhos orientais. Minhas melhores fotos são as da manhã.

(Clarice tinha olhos orientais. Sempre sussurrando segredos, só para não ouvirmos e poderem rir, zombeteiros. Minha namorada tem olhos que falam. Não para todos, mas para mim sim. São olhos afoitos, que se apressam em me contar tudo que lhes passa pela alma. São olhos que eu ouço com meus olhos míopes.)

Seus olhos, por exemplo, lambem agora as minhas últimas linhas. E eles viram só letrinhas escuras na página alba. Mas eu mostrei a eles outras coisas tantas: óculos, pedras, lentes, olhos. Eles sabem o que viram ou imaginaram. E fizeram isso de puro deleite, espero. Máquinas fantásticas os olhos. Mesmo míopes, orientais ou estrábicos. Mesmo recobertos, mesmo expostos. Pena que muitos jamais verão os meus. Nem eu os seus. Temos, escritores e leitores, olhos invisíveis.

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Quem quiser pode também dar uma "passada de olhos" no meu conto da Revista Ficções. É só clicar aqui e comentar por lá. Grato.

4 comentários:

  1. Ah, que saudade que eu estava de escrever uma coisa assim: imensa e sem compromisso nenhum.

    Um texto que ninguém precisa entender e que, no fundo, não quer mesmo dizer nada demais.

    Escrever por escrever. Arte pela Arte. Sem cobranças, sem preço, sem indulgências, sem censuras. Sem público, sem remetente, sem carteiro. Só um texto e a aniquilação pós-coito.

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  2. Meus olhos se perdem, muitas vezes, no vazio, em estado de reflexão. Mas é por que já se cansaram dos limites, das delimitações terrenas. Parabéns pelo texto.

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  3. Os olhos tb refletem o infinito quando os olhamos no espelho, não é??

    obrigada por visitar o blog!!

    =)

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  4. Adorei teu texto! Meus olhos, impacientes como o de uma criança que descobre o mundo, foram até o final com curiosidade. Olhos curiosos. Sou míope. Uso lentes. Incolores. De óculos, sou outra: mais séria, mais inteligente, mais feia. Adoro olhos e olhares. Dizem mais do que os próprios donos.

    Abraço pra ti, meu amigo.

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