segunda-feira, 29 de setembro de 2014

As três palavras secretas

Desse lugar, nem a água eu quero levar. Despejo-a fora, na parada de ônibus, com cuidado para que nada me respingue. Lembro-me, então, da frase que ouvi de manhã: nojo é pior do que ódio. Concordo, mudo, balançando a cabeça sozinho, enquanto os que passam me olham, desconfiados. Se eu não balançasse a cabeça, a desconfiança ainda seria a mesma. Aqui eu sou “diferente”. E, aqui, o diferente é ruim. Que me olhem assim, eu não ligo.

De qualquer modo, nojo e ódio se reúnem sobre mim enquanto estou na cidade que deveria, ela inteira, atender pelo nome de uma das suas “linhas”. Ojeriza.

Nem a água daqui eu quero levar. Nem a poeira que tiro de mim com um banho sempre mais demorado. Nem o mantra que repeti ao longo de todo o dia, como uma ode à ignorância, como se minha mente fosse um grupo irrequieto de alunos da primeira série, gozando da coleguinha estúpida. Três palavras que me ensinaram e que, desde então, eu não pude esquecer. Três palavras que não, eu não posso dizer.

(CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO.  CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAAAAAAPIVARA DE LENÇOOOOOOOOOOOO!)

Agora eu entendo o que me disseram. O que me repetiram nas portas, o que me comentaram à meia voz, o que me falaram pedindo segredo. Agora eu entendo o quanto a ignorância não tem limites. O quanto a vontade de aparecer pode ser maior do que a de fazer. O quanto a vida é burra, meu Deus. Mas só às segundas.

Em um cavalete próximo, um candidato a deputado qualquer me olha de soslaio. Em seu terno bem cortado, ele não parece ter alguma vez esperado um ônibus na chuva. Ele não parece ter passado o dia com nojo e náusea, repetindo em silêncio as únicas três palavras que realmente tinha vontade de dizer. As três que eu não pude e não posso contar.

(CAPIVARA. DE. LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO.  CAPIVARA DE LENÇO.)

Debaixo do nome do deputado, três palavras também. Família, Fé, Sociedade. Se eu prometesse lutar pela família, fé e sociedade, eu poderia, Senhor Deputado, não esperar o ônibus na chuva? Eu poderia não ter uma vida medíocre em que é preciso passar pela ojeriza todas as segundas? Em seus palácios há ignorância, Senhor Deputado? Se há, então não vou para lá. A ignorância me fere mais do que o ódio. É dela que meu nojo sempre brota.

O deputado continua a sorrir. Se ele vier, terá carro sempre à espera. E pessoas deitadas sobre o asfalto, feito os capachos que são, para que ele os possa pisar. Para mim há o “não” e o ônibus que também não vem. Há ainda a fofoca que tudo domina e as disputas mais bestas que já vi. Minha única vingança é repetir, sem parar, as três palavras que me deram, como se elas fossem um escudo. Como se, ao pensá-las, eu pudesse não fazer parte do que abomino. As três palavras secretas e agora tão minhas.

(Capivara de lenço.)

Uma caminhonete cinza chega e para. Uma salvação. Nem todos os cavalos são brancos. Eu subo e consigo sorrir. Consigo sorrir quando saio dali. A música no rádio é alta e eu fecho os olhos, sentindo o vento no rosto. Quando os abro, o motorista pergunta, divertido: "O que foi?". Eu lhe respondo que sorrio assim porque amanhã é terça. E toda terça a esperança me renasce. Ele sorri também, balançando a cabeça como quem não entende, mas se diverte mesmo assim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.