Eu tive, por algum tempo, um heterônimo. Ele surgiu, na
época, por conta de alguma paixão difícil e como uma possibilidade de publicar
o que eu sentia sem ser, no caso, eu. Ele nasceu, no fim, para poder escrever
por mim.
Em pouco tempo, porém, passados os arroubos da paixão, ele
não passou. Ele resistiu bravamente, publicando o que ele mesmo sentia e
tecendo uma vida inteira ao meu redor. Hoje percebi a verdade. Nesse heterônimo eu criei a vida que deveria
ser a minha. Ele, que começou escrevendo por mim, terminou vivendo por mim.
Em meu perfeito avatar, eu podia amar, morar na cidade que
sempre quis, ser solitário e profundo e humano. Ele viveu – e vive ainda? – do jeito
como eu me imaginava viver. E então ele me ultrapassou em profundeza e entrega.
Hoje, entregue a uma epifania, eu não consigo compreender
por que eu dei a outro (e me satisfiz com isso, o que é pior) a vida que
deveria ter sido minha. Minha a solidão, meu o apartamento, meus os amores
passageiros todos que ele teve, meu o texto às duas da manhã, meu o encontro no
museu e tudo mais que eu entreguei a quem nunca existiu.
Não é tarde para tomar de volta. Para roubar-lhe o rosto, a
nostalgia e a ousadia. Para ser eu o heterônimo dele.