terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Azul Pelúcia

Porque a coruja nos contou, eu acreditei.

Antes de mais nada, é preciso dizer que a coruja é a mais sábia do quarto inteiro. Ela tem tanta importância, que fica em pé sobre um mundo. Além disso, ela é dona de um elefante de porcelana e um carretel de linha dourada. Não bastasse, ela ainda possui uma repartição da estante só para ela, enquanto nós precisamos dividir a nossa.

Pois bem, a coruja nos contou que, depois de quebrarmos, somos levados a um lugar por um enorme caminhão e lá somos transformados em pessoas. Na noite em que ela nos disse isso, fez-se na casa um enorme alvoroço. Uma vassoura que varria o quarto naquela hora espalhou pelos outros cômodos a informação.

Em breve deu-se a derrocada. As xícaras de porcelana tramaram um suicídio coletivo. Da maneira que puderam, empilharam-se bem na borda e promoveram um pulo fatal. Os pires, desolados, tentaram o mesmo, mas uma mão de mulher os salvou. A estátua nua bateu-se contra a parede e perdeu a cabeça. A santa com labirintite lançou-se da estante, mas, acostumada a cair, voltou do chão ilesa. Um dos vidros de perfume, enlouquecido, rolou para a borda da penteadeira; tudo que conseguiu foi quebrar o espelho, além de derramar-se todo.

Uma febre geral apossou-se da casa. De repente os objetos todos se queriam quebrar, tal era a graça que viam em virar “pessoas”. O duende, sempre desconfiado da coruja, foi às santas da cobertura, perguntar se era verdade o que dizia a ave de resina. As santas, no entanto, iluminadas por velas e cercadas de bronze, disseram assim:

— Não falamos com os mortais das prateleiras inferiores.

E tocaram-no de volta aos outros bibelôs. O duende voltou dizendo que as metidas também não sabiam. Tramaram então um plano infalível: jogariam o anjo de vidro prateleira abaixo, quebrando o coitado em mil pedaços. Depois disso, o anjo ficava incumbido de voltar, tão logo se tornasse pessoa, para confirmar se a teoria da coruja era verdadeira.

Passaram duas semanas, nas quais pouco falávamos. Cada movimento de cortina, cada batida de porta, cada pisada no assoalho, virávamos vívidos, pensando que pudesse ser ele: o anjo retornando em pessoa.
Outras duas semanas correram e nada de diferente aconteceu. A coruja, tranqüila, era a única que dizia com ar supremo:

— Acalmem-se... Ele volta...

Voltou. Na quinta semana exata o anjo nos apareceu, todo feito de carne rosada e com mais de metro e meio. Ele ria contente e mostrava a mobilidade que lhe garantiam os ossos humanos. Disse que sim, que era mesmo verdade, que depois de quebrar, ele foi levado a um lugar de muita luz e, quando deu por si, estava humano já.

Ficamos em silêncio estarrecido. À noite fez-se o debate. Que faríamos agora? Concordavam quase todos que a melhor opção era virar humano. Assim, um a um, lançaram-se para o chão.
A coruja ficou, dizendo enigmática que melhor mesmo era ser coisa. Gente é muito confusa, tem muitas necessidades e, quando quebra, não vira nada. Porque a coruja disse, eu acreditei. Também fiquei aqui, fiel ao menino que me comprou em seu décimo aniversário...

Bem....

Preciso confessar. É mentira. Queria dizer que fiquei por esperteza, por lealdade, por vontade...

Mas é mentira.

Só fiquei porque sou de pelúcia. Pelúcia não quebra.

Um comentário:

  1. Comentando meu próprio texto...

    Só falando de alguns aspectos dele... O narrador, por exemplo, é um Sonic de pelúcia que eu me comprei quando fiz 10 anos. Mas preferi não especificar isso no texto.
    Uma curiosidade: quando comecei a escrever o final deveria ser outro. Os objetos quebrados iriam para o lixão e pronto. No decorrer da escrita, no entanto, percebi que isso era o mais lógico e, portanto, esperado. Resolvi extrapolar então... Fiz os objetos virarem pessoas realmente.
    Gostei de produzir este texto (feito como exercício) porque permite ver tudo com outros olhos. A coruja sábia e dona de um espaço só dela, por exemplo. A santa com labirintite porque vive a cair da estante... As xícaras e suas neuroses...
    Não ficou nada nem perto de "Um apólogo" do Machado... Mas valeu como exercício.

    Quem quiser pode criar algo semelhante na comunidade Casa do Escritor:

    http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=96776679&tid=5430941220438786385&start=1

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