quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Olhos de ver {À espera}

Há quadros abstratos. Linhas sobre linhas. Dois blocos azuis em toda a tela. Pingos jogados e jogados e jogados. Uma mancha vermelha em um fundo todo preto. Curvas e riscos. Recortes púrpuras sobre tinta grená. Marrom sobre marrom.

“Ridículo. É ridículo que alguém pague fortunas por ‘isso’. ‘Isso’, esses pingos jogados que eu mesmo faria. Essas linhas tortas. Esses rabiscos inúteis que até meu filho, meu filho de cinco anos sabe fazer melhor. Paf. É ridículo. É ridículo que alguém assim se considere um pintor. É vergonhoso. Se é assim até eu! Me deem uma tela! Me deem uma tela!”

Eu passaria dias olhando para um Mark Rothko. Dias abismado. Dias até conseguir me recuperar, até conseguir recolher todo sentimento que tentaria escapar de mim. A consistência da cor, a transição entre um tom e outro. O traçado do pincel. A textura da tinta. O impacto, meu Deus, o impacto de uma tela toda vermelha. A intensidade que emana dela. A ausência de explicação. A imensidão do que não quer ser entendido, do que não quer ser explicado. Do que existe. Eu me sentiria um ponto sem cor, diante de uma tela de Mark Rothko.

“Besteira, besteira, besteira.”

Há pessoas abstratas também. Pessoas com ideias sobre ideias. E dois olhos que brilham sem motivo ou que param, opacos, no meio da tarde. Pessoas que não se explicam, que agem, impulsionam, pensam, falam, criam, derramam tintas sobre telas, luzes sobre palcos, palavras sobre papeis, salsa sobre molhos, esperança sobre desconhecidos e vida, vida sobre o mundo. Pessoas que são como alguns quadros abstratos: curvas e riscos.

“Ridículos. É ridículos o que são. Ridículos com seu afetamento, com suas opiniões que ninguém pediu. Com seus quadrinhos de merda, seus textinhos de merda, seus teatrinhos de merda. Suas paixõezinhas. Seus ‘ai porque eu sinto isso, ai porque eu sinto aquilo...’ Ridículos. Não me interessa! Por que não vão fazer alguma coisa útil? Por que ficar aí, pensando besteira, fazendo besteira, dizendo besteira? Me deem uma arma! Me deem uma arma!”

As pessoas abstratas me fascinam. Intrincadas, complexas, inesgotáveis. Pessoas que surpreendem: Então há ainda mais nelas? Pode haver mais? Pode. Mais criatividade, mais sentimento, mais tramas por baixo das tramas já complicadíssimas de que são feitas. Pessoas de pura intensidade, que me abismam, também por dias. Pessoas que não querem ser entendidas ou explicadas, querem ser sentidas. Sentidas com a voracidade que merecem.

Nem todos os quadros são para todos os olhos. Nem todas as pessoas também. Às vezes, quando tudo parece incompreensão, descaso, desgosto, quando tudo é motivo de queda, de vaia, de repúdio em baixo e mal som, às vezes não está em você o problema. Às vezes o único problema é que lhe faltam olhos à altura. Olhos de ver. Olhos capazes de levar as coisas que veem não ao que é bruto, não ao estômago, não ao fígado, não aos ovários nem aos testículos. Olhos capazes de levar o que veem até a alma. Porque ela também, é toda abstrata em quem a tem.

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Estreio hoje a série "À espera".
Toda quinta-feira uma nova crônica.

4 comentários:

  1. Chapei, Anjo Maldito... ah maldito anjo que descortina as almas...
    Adoro qd vc me surpreende...

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  2. http://prezi.com/ixzoixbglv6k/halloween/

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  3. http://www.youtube.com/watch?v=of8jlv00k0Y

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  4. http://www.youtube.com/watch?v=1Felayg9zys&list=UUMJSbuhMa1xiQ9pHO-AP9Sw

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