terça-feira, 3 de novembro de 2009

O miserável

É tudo tão igual. A janela mostra a mesma triste luz do fim de tarde. Os pássaros dão os mesmos trinados claros de quando quase dormem. As cortinas balançam a mesma leveza de um novo vento bom. A porta ainda bate, as sombras se alongam, as palavras se formam.

De que eu sinto falta, então? Porque nem tudo é igual. Meu texto, quando leio, é diferente. É fraco, é pobre, é indigno. A experiência, ao invés de acrescentar, me oprimiu sem motivo. Perdi a inocência? Nunca tive. Foi antes uma graça de contar, um balanço de encantar, uma inspiração de envolver.

Porque antes meu texto era perfume denso. Vinha manso, rodeava calmo, invadia sereno e dominava lento. Quando menos se esperava, zapt. Fisgava e não dava chance de escapar. Eu era o sedutor, caçador, devorava vítimas em teias de palavras.

E agora? Agora sou mendigo antigo. Guardo avarento textos velhos, papéis rasgados, tintas desperdiçadas em contos podres. Amarfanho páginas amarelas, inéditas, fadadas ao fracasso desde nascidas. Pedinte que sou, reviro lixo atrás de inspiração usada e disputo com os ratos qualquer criatividade suja.

Antes eu dizia com orgulho, agora é com sorriso débil, com a vergonha imortal dos miseráveis: O que quero ser? Escritor... Junto com a palavra vem uma asquerosa modéstia, um traço de quem reconhece a própria sandice. A tarde ainda é dourada, então ela não mudou. Mas o que eu fiz de mim?

Um comentário:

  1. A escrita, que pode ser em algum momento como um "perfume denso" e chegar de maneira "mansa" pode ser também todo o oposto disso. Chegar na angústia, nos odores mais fortes, na dificuldade de se executar o próprio ato de escrever. De certa forma, escrever consegue ser como uma tarde ainda dourada, mas também pode ser uma disputa com ratos. Isso parece fascinante, mas também cansa.
    Gostei do seu texto. (E tive que me apropriar de algumas palavras suas pro comentário aqui, espero que não se importe, hehe).

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