segunda-feira, 9 de junho de 2014

Carta aberta

Minha irmã,

Nem sei se ainda posso chamá-la assim, já que nem amigo eu tenho conseguido ser. Mesmo assim, digo, minha irmã, não é você. E, por incrível que pareça, também não sou eu. Não do jeito como costumava ser. Eu explico: não estou triste, não estou mal, não estou em uma das minhas incontáveis e sazonais crises. É mais o contrário. É mais o contrário...

Sabe, gestações requerem tempo e recolhimento. E estou assim: em plena gestação. Por isso o silêncio, as cartas esperando na caixa de correio, os bilhetes sem resposta colados nos meus cadernos. Por isso o afastamento, a mudez, a ausência. Eu estou gerando um novo eu.

Não sei como ou quando começou. Se foi com a mudança de casa, de emprego, de perspectiva, de ideias. Não sei se foram os filmes, as séries, as músicas, as pessoas, os gestos, os gostos, tudo tão diferente e, de algum modo, em um ritmo / rito de encantamento.

Só foi acontecendo.

Estou vendo, aos poucos, surgir um novo eu. Um eu que ri mais alto e bebe Campari doce enquanto te escreve (não é um hábito, acredite. O Campari, digo, rir o é.). Tenho tomado minha própria forma. Pela primeira vez eu caibo inteiro em mim.

As imagens, por exemplo, antes, como Peter Pan, eu escolhia sempre um menino para me representar. Não mais. Hoje é com o mundo dos homens que me identifico. Não sou mais menino sem amparo. Sou o homem barbado que escolhi ser. 

E tenho ouvido de novo a minha voz. Lembra de como falávamos do quanto nos havíamos perdido? Pois ouço, agora, minha voz. Ainda sutil e errante, feito o espírito que se agita sobre as águas, mas é a minha voz, e está cada vez mais clara. Tenho visto mais, também. Olhos de escritor. Olhos que, ao avistarem, por uma janela aberta, um quadro não veem o quadro, mas como ele veio herdado da casa de uma avó e toda a história que ele tem.

Tenho estado feliz, tenho estado bem, tenho estado comigo e me sentido, pela primeira vez, bem acompanhado. Por isso o silêncio, mana minha. É silêncio de gestação. É silêncio de árvore crescendo, silêncio bom de se transformar.

E quando o novo eu surgir, será você a ser chamada para me batizar e benzer, para brindar e beber. Minha irmã, toda nova do mesmo modo, porque sei que também é tua a longa gestação. Só não somos gêmeos por detalhe. Detalhe, erro de sangue, pais, ano e hora (De data não. De data não!).

Amo tu.

2 comentários:

  1. Há tantos que pensam que qualquer parada é deixar a vida seguir, passar, perder. Mas vivê-la sem encontrar si mesmo primeiro é que é o grande vazio. Faça a gestação sem pressa.

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  2. ola, gostei muito de ler as coisas que escreves-te, espero que escrevas mais
    bjoo
    carina santos
    olhar com coraçao
    http://olharcomcoracao.blogspot.pt/

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