terça-feira, 30 de setembro de 2014

Só pela promessa

Continua a chover e eu saio novamente, dessa vez para ir ao correio. A chuva tamborila sobre o meu guarda-chuva e me lembra, estranhamente, o barulho de uma máquina de escrever. Vem, então, a vontade de compor outro texto qualquer.

Prometo a mim mesmo que o farei, quando voltar para casa. Por enquanto, caminho rápido enquanto sacolas de lixo voam para as esquinas, sem que eu veja de onde. No correio, eles já sabem o que me vem por pacotes semanais. Livros.

Eles sabem e os outros todos também. São os livros, sempre os livros. Já sou conhecido, desconfio, como “aquele dos livros”. É isso também um vício? Uma compulsão? Queria ser a metade do nerd que pensam que eu sou. Eu seria rico, então. E espertíssimo também. Não gosto tanto assim de estudar. (Só não contem isso aos meus alunos.) Eu gosto é de histórias para tardes chuvosas. Eu gosto é de saber mais e de viver vidas de tinta e papel.

A garoa, na volta, continua a datilografar sobre o meu guarda-chuva. E, de repente, eu compreendo que ela escreve muito melhor do que eu. Ela escreve poesia pura, do tipo que se sente e não lê. Já vejo de antemão que meu texto não será bom. Que melhor teria sido começar o livro que acabou de chegar. Sou aquele dos livros, afinal.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

As três palavras secretas

Desse lugar, nem a água eu quero levar. Despejo-a fora, na parada de ônibus, com cuidado para que nada me respingue. Lembro-me, então, da frase que ouvi de manhã: nojo é pior do que ódio. Concordo, mudo, balançando a cabeça sozinho, enquanto os que passam me olham, desconfiados. Se eu não balançasse a cabeça, a desconfiança ainda seria a mesma. Aqui eu sou “diferente”. E, aqui, o diferente é ruim. Que me olhem assim, eu não ligo.

De qualquer modo, nojo e ódio se reúnem sobre mim enquanto estou na cidade que deveria, ela inteira, atender pelo nome de uma das suas “linhas”. Ojeriza.

Nem a água daqui eu quero levar. Nem a poeira que tiro de mim com um banho sempre mais demorado. Nem o mantra que repeti ao longo de todo o dia, como uma ode à ignorância, como se minha mente fosse um grupo irrequieto de alunos da primeira série, gozando da coleguinha estúpida. Três palavras que me ensinaram e que, desde então, eu não pude esquecer. Três palavras que não, eu não posso dizer.

(CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO.  CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO. CAAAAAAPIVARA DE LENÇOOOOOOOOOOOO!)

Agora eu entendo o que me disseram. O que me repetiram nas portas, o que me comentaram à meia voz, o que me falaram pedindo segredo. Agora eu entendo o quanto a ignorância não tem limites. O quanto a vontade de aparecer pode ser maior do que a de fazer. O quanto a vida é burra, meu Deus. Mas só às segundas.

Em um cavalete próximo, um candidato a deputado qualquer me olha de soslaio. Em seu terno bem cortado, ele não parece ter alguma vez esperado um ônibus na chuva. Ele não parece ter passado o dia com nojo e náusea, repetindo em silêncio as únicas três palavras que realmente tinha vontade de dizer. As três que eu não pude e não posso contar.

(CAPIVARA. DE. LENÇO. CAPIVARA DE LENÇO.  CAPIVARA DE LENÇO.)

Debaixo do nome do deputado, três palavras também. Família, Fé, Sociedade. Se eu prometesse lutar pela família, fé e sociedade, eu poderia, Senhor Deputado, não esperar o ônibus na chuva? Eu poderia não ter uma vida medíocre em que é preciso passar pela ojeriza todas as segundas? Em seus palácios há ignorância, Senhor Deputado? Se há, então não vou para lá. A ignorância me fere mais do que o ódio. É dela que meu nojo sempre brota.

O deputado continua a sorrir. Se ele vier, terá carro sempre à espera. E pessoas deitadas sobre o asfalto, feito os capachos que são, para que ele os possa pisar. Para mim há o “não” e o ônibus que também não vem. Há ainda a fofoca que tudo domina e as disputas mais bestas que já vi. Minha única vingança é repetir, sem parar, as três palavras que me deram, como se elas fossem um escudo. Como se, ao pensá-las, eu pudesse não fazer parte do que abomino. As três palavras secretas e agora tão minhas.

(Capivara de lenço.)

Uma caminhonete cinza chega e para. Uma salvação. Nem todos os cavalos são brancos. Eu subo e consigo sorrir. Consigo sorrir quando saio dali. A música no rádio é alta e eu fecho os olhos, sentindo o vento no rosto. Quando os abro, o motorista pergunta, divertido: "O que foi?". Eu lhe respondo que sorrio assim porque amanhã é terça. E toda terça a esperança me renasce. Ele sorri também, balançando a cabeça como quem não entende, mas se diverte mesmo assim.

domingo, 28 de setembro de 2014

Só pelo pão

É noite e saio para comprar pão, mais pela possibilidade de molhar os pés. A padaria é do outro lado da rua e chove. Todo domingo chove, como se a chuva viesse para me lavar a frustração antecipada de cada segunda. Lá fora as luzes estão acesas e a rua molhada sempre me lembra da infância. Eu vou, troco umas palavras com o dono da padaria, alguma coisa sobre o time dele ter empatado. Time que eu não sei qual é. Eu não olho jogos. Nunca. Eu antes estava escrevendo, à luz de uma vela verde. Mas isso eu não posso dizer pra ele. Nem pra ninguém, na verdade.

Eu pego o guarda-chuva e atravesso a calçada de volta. Ainda mais lento, com o pão na mão. Eu sempre recuso as sacolas. Na verdade, eles não oferecem mais. Eu ando lento porque imagino como seria ficar ali, na rua, na calçada, na escada de casa. Ficar ali deixando a chuva gelada escorrer pelas minhas pernas, pelos meus pés, o guarda-chuva cobrindo o resto do corpo. É um pouco como desistir. Como encontrar o silêncio que eu não encontro aqui. Há muito barulho. Especialmente por dentro. Lá fora tudo é calmo, tudo é chuva e só a sensação importa.

Lá fora até parece que a segunda não vem. Mas ela vem. Ela sempre vem, com sua falta de promessas e a frustração básica de se ir para onde não se quer. Sim, às vezes vamos aonde nos mandam. Às vezes nos mandam tomar no cu. Segunda é isso. E todo domingo chove. E toda segunda de manhã também. Eu já me acostumei. Já encaro como algo que faz parte da rotina. Assim como eu ser um pouco triste e um pouco só. Faz parte.

Entro em casa, deixo o pão sobre a mesa e volto a escrever. Dessa vez com a vela apagada. Escrevo melhor quando escrevo assim, de mim, não com a vela apagada. Mas isso não importa agora. Eu tenho que fazer com que não importe para poder escrever mais, ainda que pior.

Meus pés secam das últimas gotas de chuva e depois tudo se apaga, como se apagou a alegria da tarde, como se apagou o filme na tv, como se apagou a música que me devorava aos poucos. Tudo se apaga, como um dia se apagarão as segundas-feiras, derretendo como o concreto derreteu no meu sonho, corroendo torres de igreja e prédios inteiros.

Que derreta tudo que é concreto, mas que se poupe o abstrato, especialmente o das minhas palavras. Elas são preciosas. São, porque um dia me tirarão daqui e das segundas-feiras que agora odeio.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Dois detalhes

Sempre foram os detalhes que me importaram mais. Enquanto os outros olhavam o todo, os múltiplos horizontes, minha miopia me fazia olhar de perto. Até hoje, minhas câmeras sempre estão no modo “Macro”. É a insignificância que me encanta. O que os outros não percebem, o fragmento mínimo, é o que me faz dominar proximidades.

Falo disso porque hoje foi um detalhe que me dilacerou o dia. Vi um cachorro ser atropelado, em frente à praça. O motorista não teve culpa e a batida nem foi tão feia. O cachorro simplesmente apareceu, correndo em disparada. E houve, então, o som do freio, o cheiro de borracha queimada e a batida seca. O cachorro rolou uma, duas, três vezes, levantou e mais depressa do que eu consegui me refazer, ele já havia atravessado a praça e novamente desaparecido na primeira esquina.

O pior, como eu disse, foi um detalhe: o cachorro, ou melhor, a cachorra, tinha em cada orelha um tope cor de rosa. Percebem? Era o detalhe que a singularizava e me enternecia mais. Os dois topes me diziam que era uma fêmea, e que tinha donos zelosos, que lhe levavam tomar banho, ser escovada, mimada e enfeitada. Isso explicava o quanto a cachorra era boba, filhotona ainda. Estava, provavelmente, perdida. Não quero dizer com isso que, se acaso fosse um cão "de rua", o fato seria menor. Acontece que, vendo-a bem cuidada, pensei nos meus próprios animais e soube o que alguém, em algum lugar, sentia por ela. Tudo isso eu compreendi por causa de dois lacinhos cor de rosa. Dois detalhes mínimos que singularizaram em mim seu pelo cor de mel, seu ar de filhotona, sua dor pela batida e, a dor ainda ainda maior, por estar perdida. Em dois lacinhos cor de rosa, ainda de manhã, se foi meu dia. Só o que restou em mim foram os sentimentos dela.