quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Para gatos

Havia ratos na casa. Muitos deles. E ratos espertos. Não caiam em ratoeiras, não senhor. Não se deixavam capturar, não senhor. Não chegavam nem perto dos venenos, não senhor. Eram ratos, além de tudo, determinados. Sabiam o que queriam e não se deixavam iludir por pouco.

Se os ratos eram espertos assim, pensou o Sr. Rodrigues, estava na hora de comprar gatos. Pois os gatos não são maiores do que os ratos? Claro que são! Devem, portanto, ser mais espertos também. Resoluto, Sr. Rodrigues comprou logo cinco gatos:

Josefa, logo se viu, não se prestava a caçadas. Era manhosa demais, medrosa demais, melosa demais. Porém, uma vez que já havia feito o negócio, Sr. Rodrigues não podia desfazer-se dela. Era prejuízo certo. Promoveu-se, então, Josefa a animal de estimação. Podia ela ficar o dia inteiro deitada em almofadas recebendo trato no focinho.

Catarina foi outra gata que para a caça não prestou. Avançava em quem chegasse e não se deixou domesticar de modo algum. Usava unhas e dentes em quem fosse preciso. Exceto, curiosamente, nos ratos. Deles, a gata tinha nojo. Deixou-se Catarina em paz, portanto. Quem mexeria com ela? Conformaram-se com o fato da gata aparecer somente para comer e dormir. 

Theobaldo revelou-se um exímio brincalhão. Um artista, praticamente. Dava piruetas, fazia passinhos engraçados e divertia as crianças. Fazia rir tanto o menino da casa, que o Sr. Rodrigues deu Theobaldo a ele. Tinha vocação, oras, e isso não se ignora. O menino que lhe ensinasse novos truques. O problema dos ratos seria para os outros gatos.

Walter era a encarnação do medo. Tinha receio da escuridão de noite e da luz de dia. Tinha sustos terríveis com passos, rangidos na escada, e com silêncios de qualquer feitio. Se ouvia um guincho de rato, Walter desmaiava. Além disso, ele tinha olhos tão esbugalhados, pelo tão eriçado e coração tão acovardado que inspirou pena a todos da casa. Ele passou, assim, a ser protegido e poupado de todas as incomodações. "Coitadinho do Walter", diziam.

Houve um único gato que para as caçadas prestou. Era ágil, esperto e determinado. No primeiro dia, liquidou com uma família inteira de roedores. Era tão eficiente que fazia, além do próprio trabalho, o daqueles outros quatro. O Sr. Rodrigues sorria, satisfeitíssimo com sua própria esperteza. “Não disse que bons gatos dariam jeito nisso? Disse.” E ele pensava mais, pensava assim: “Se sendo alimentado todos os dias, esse gato caça tantos ratos, imagine quantos não caçará se precisar fazê-lo para comer?”

Foi dada a ordem e cortou-se, então, a alimentação do gato. Por uns dias tudo foi bem, o gato encontrava nos ratos mais do que o suficiente para manter-se satisfeito. Os ratos, porém, foram diminuindo na casa. Não demorou para que o Sr. Rodrigues fosse livrado das incômodas pragas. Em seu íntimo, o gato até imaginava a recompensa que ganharia. Se os outros haviam sido recompensados, imagine ele, que fizera sozinho todo o trabalho a que foram chamados.

O Sr. Rodrigues, desconhecendo o íntimo do gato e desejando manter a eficiência do plano, reforçou a ordem: 

— Esse gato aqui não come. Assim, ele pode procurar ratos na vizinhança e nenhum mais se instalará em nossa casa. 

Passados, no entanto, alguns dias em jejum, o gato não tinha sequer como sair de casa. Abrir os olhos já era um esforço. A inanição lhe despontava as costelas e enfraquecia o corpo todo. Ainda assim, em um último ato, ele passou a miar, implorando comida. No segundo dia a ouvir aqueles mios insistentes e contínuos, o Sr. Rodrigues se exasperou. "Mas o que pensava aquele gato? Acaso não viera junto com os outros? Viera. Acaso não fora tratado do mesmo modo? Fora. Acaso não lhe deram casa, funções e cuidados? Deram. Então o que mais ele queria? Nem para caçar já não prestava! Nem para caçar! Pois era mesmo um ingrato, um ordinário, gato que mais valia ter ficado a virar latas."

Aos gritos, para ser ouvido acima dos mios, Sr. Rodrigues gritou à cozinheira:

— O jardineiro, rápido, chame o jardineiro e mande que ele dê um jeito nesse gato. Vou ao clube e, quando voltar, não quero nem sombra, nem pelo, nem fio de bigode desse gato desgraçado por aqui. Me ouviu?

A cozinheira ouviu e ouviu bem, chamou o jardineiro e assim se fez: enforcou-se o gato na goiabeira, um pouco antes das três da tarde, que era, afinal, o horário de alimentar Josefa, Catarina, Theobaldo e Walter.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ódio

Tenho sentimentos de medidas exatas. Amores que arrebatam ou não até onde eu os deixar. Amizades milimetradas, pesares de certo número, felicidades calculadas com precisão absoluta. Só o ódio me escapa. Só o ódio é desmedido em mim. Ele toma força, proporção, desengana réguas, trenas, metros, enlouquece os marcadores de altitude. 

Meu ódio não tem fim ou medida. Não tem começo ou limite. Meu ódio se expande com a mesma constância do universo e agarra até à grama do caminho. Meu ódio é o mais generoso em mim. Ele compreende até o amor e quem ama aquele que eu odeie.

Meu ódio é minha ousadia, é meu olhar mais duro, é meu caminhar objetivo e tresloucado. Meu ódio é o fim em si. É a justificativa de qualquer ato. Qualquer. Meu ódio é minha propulsão para as vinganças que lhe tenham o mesmo porte: desmedidas. No mínimo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Reinventando

[...] a vida, senhores, é uma invenção 
da palavra  e não o contrário.
Nilza Rezende


Às vezes é preciso trocar de palavras. De adjetivos sobretudo. Eu, por exemplo, gostava muito do adjetivo "delicado". O gesto pequeno e manso, de dimensão estreita e sensibilidade aguda. Se eu precisasse concretizar a palavra "delicado", eu o faria na forma de um remoinho que, em pleno outono, gira folhas e agrada crianças.


"Delicado" foi um mote meu por muito tempo, só que não me cabe mais. Não. O corpo cresceu, tomou forma, ultrapassou os limites todos e ameaçou partir meu adjetivo em dois. Eu ainda tentei. Tentei usá-lo sem que me coubesse, tentei esgaçar as mangas, desfazer a barra, abrir as costuras e colocar remendos. Não deu.

Não é que eu tenha aberto mão da delicadeza. Não, ela ainda me pertence. Mas sinto que preciso vestir outra palavra. Uma que se acomode ao meu novo mundo e à minha nova vida. Não tenho mais suporte para redemoinhos. Preciso de tornados, furacões, ventos fortes que assustam tanto quanto encantam.  Preciso já de exuberância!

Silêncio.

"Exuberante"

Testo na língua, na boca, no corpo. E cabe.

Percebo, então, que tentar me encaixar ao “delicado” era como vestir um troll de soldadinho. “Exuberante”. Um adjetivo novo que me compreende enfim. Que faz sentido e que eu posso representar sem medo. 

“Exuberante”, uma palavra para eu despir das aspas e ser, para eu costurar no corpo e me dar, com ela, a medida exata. Uma palavra para transformar em mantra, para justificar a desculpar, para preencher e definir.

Sim, um adjetivo novo, exuberante. Porque somos, afinal, as palavras que escolhemos ser.