terça-feira, 31 de maio de 2011

Janelas

As minhas tem grades. Todas elas. Não deixo ninguém entrar, nem pedindo, nem batendo, nem implorando. Sou todo fechado, trancado e lacrado. Nos olhos há placas de aviso. Ninguém vem.

Grades de ferro. Bem fortes. Parafusos escondidos. Nunca se sabe quão astuto é o ladrão. Cortinas também. Por trás das grades há cortinas. Não podem entrar. Nem ver lá dentro.

Área privativa. Cães raivosos. Cercas eletrificadas. Quem tem coragem? Quase ninguém.

Mas quem tem... Quem tem descobre coisas.

Os sentinelas contam segredos. Os cães são dóceis. As grades são falsas. As frestas são grandes. E as cortinas, quase sempre, transparentes.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Fuja-me

Hoje é daqueles dias em que eu queria me ver bem longe de mim. Mas como fugir-me? Onde quer que eu vá, lá estou eu, com a mesma cara velha, os mesmos mugidos de lamento, a mesma boca entortada em um esboço de praga triste.

Tento abstrair. Tento dormir, mas me persigo nos sonhos. Nem por lá sou diferente. Abro um livro qualquer e não encontro nada diverso de mim, nenhum labirinto de letras no qual me perder. Vou assumindo, aos poucos, minha desistência febril.

Jogos, analgésicos, psicotrópicos, vícios de nenhum pudor já não me afagam nem me afastam desse eu cansado. Há os a fazeres, as coisas que gritam, chamam, imploram por uma atenção medíocre. Não me interessam as coisas. E pessoas já não há.

Queria me mandar para longe de mim. Queria me pedir que eu fosse ao México, procurar-me numa esquina borbulhante de pimentas e arcos vermelhos. Que por lá eu ficasse, bebendo tequilas e cantando La Llorona até o dia esmaecer, até a noite se aceder, até, quiçá, esse eu morrer.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Perdição

Entre dias, tias e correrias
não perco o bonde.
Perco o aonde
e qualquer algum porquê.

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Esse 'poema' nem postado era para ser. Apesar disso, como segue a mesma linha do Humildade de Cecília e do Sabotador meu, vem à baila também. 
Só um adendo: perder o "aonde" é sempre pior do que perder o bonde. E mais não digo, porque não gosto de explicar poesia minha.

Humildade (Cecília Meireles)

Tanto que fazer!
Livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.


Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.


E os pássaros detrás de grades de chuvas,
e os mortos em redoma de cânfora.


( E uma canção tão bela ! )


Tanto que fazer !
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.

Clarissa

não queria alguém para amar. Ela Precisava de alguém por quem sofrer.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

O Sabotador

“Tinha medo. Se algum dia se mostrasse inteiro, cegaria os próprios olhos. Por isso vivia sempre pelas beiradas, por isso existia pela metade”

Todos os dias eu consigo me sabotar um pouco. Corto fios importantes, esvazio fluídos essenciais, transformo princípios de combustão em faíscas ínfimas. Todos os dias eu misturo um pouco de água no combustível, diluo mecanicamente com a esperança gasta de um dia pifar o motor. Todos os dias eu afrouxo os parafusos, solto as porcas, quebro os dentes de alguma engrenagem malfadada.

Todos os dias eu arrebento alguns barbantes, resseco a graxa preta que faz alguma coisa girar, derramo sal para que benção da ferrugem chegue. Todos os dias eu faço nós nas correias sujas, sempre tentando estragar mais uma parte minha.

E é por simples medo. Medo de onde eu poderia chegar se o maquinário todo funcionasse bem. E esse texto mesmo não é arte. É a mais pura sabotagem. Tecendo essas palavras aqui eu evito de tecer outras ali, outras mais essenciais, outras das quais eu dependo, outras que podem me elevar e me levar mais adiante na estrada pela qual eu teimo em querer e não querer ir.

No fundo, bem o sei, eu me saboto porque sou apegado demais aos Meus sonhos. Eu quero que eles continuem sempre como Meus sonhos, não quero vê-los jogados por aí, feito realidades nuas. Quero-os tecidos em nuvens e embebidos em mel, como se os visse em paisagem distante. Tenho medo de chegar lá, nos sonhos, tenho medo de que todo aquele horizonte seja só um desenho em papel pintado.

Por isso evito a chegada, evito o caminho rápido, crio desvios, falhas mecânicas, empecilhos. Por isso me desfaço em armadilhas torpes, por isso me convenço de que tudo é distante, tudo é vão, tudo é difícil. Por isso recuo, por isso quebro, por isso saboto cada pequena vitória que poderia, por direito, conquistar.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Vital

Como se a tristeza precisasse lhe escorrer bruta por dentro, lubrificando as engrenagens de joalheria.