domingo, 11 de agosto de 2013

Pai não é quem cria. É quem faz.


Hoje é dia dos pais e vou precisar discordar de uma máxima bastante popular. Para mim, pai não é quem cria. É quem faz. 

Tenho observado nos contextos pelos quais transito, que “criar” uma criança é relativamente fácil. Envolve algum grau de alimentação e outras necessidades básicas. Não implica em mais do que isso. As crianças se “criam” praticamente por si. Pai, pai de verdade, é quem faz.

Quem faz companhia para o filho quando ele está doente. Quem segura na mão, quem ensina a andar de bicicleta, quem fica a noite acordado, esperando o filho voltar.

Quem faz o impossível pela felicidade de seus filhos. Quem faz serão, hora extra, trabalho pesado, para ajudar que o filho se forme, que “seja alguém”, que “tenha o que eu não tive”.

Pai é quem faz.

Pai é quem faz carinho, quem faz o almoço, faz companhia, faz ligações no meio da tarde quando sabe que o filho não está bem. Pai é quem faz vistas grossas às vezes, faz o papel de mãe, de juiz, de motorista, de segurança, de advogado, de contador de histórias, de médico, de psiquiatra, de instrutor, de conselheiro, de amigo...

Sim, criar qualquer um cria. Agora fazer de uma criança um homem honrado, direito, pleno, feliz, isso não é para qualquer um. Isso é só para um verdadeiro pai. Para alguém que faz, fez e sempre fará sempre o seu melhor.

Sou adotado. Mesmo assim – eu sei – foi meu pai adotivo quem me fez. 

Feliz dia dos pais, pai.


terça-feira, 6 de agosto de 2013

Situação de calamidade

No celular, um aplicativo passou a manhã me avisando sobre o risco de temporais.
Lá fora, o céu azul passou a manhã me dizendo que o aplicativo mentia.
Agora, eu sei quem estava mesmo certo.

Hoje o dia nasceu para desabar. Dia daqueles em que os trovões arrebentam, o vento devasta e o granizo destrói. O aplicativo estava certo. Ele só esqueceu de mencionar que o temporal seria por dentro. Por dentro.

De repente eu ali, criança de novo, enquanto me olhavam e estudavam minha reação. Enquanto eu buscava na tela da televisão, no prato de comida, na cortina da cozinha, a reação certa. A reação que não está em nenhum dos livros que eu li. A reação que não está nos filmes que eu vejo. A reação que, talvez, só esteja nos dramas das novelas mexicanas. Novelas que eu sempre me recusei a ver. Talvez eu devesse ter visto. É nisso que eu consigo pensar. Se eu tivesse visto, poderia substituir o choque e o pasmo por algo mais descente.

Consternação? Revolta? Compaixão? Curiosidade?

Qual é a emoção de se vestir pra isso? Penso que começar a chorar seria o caminho. As lágrimas estavam ali mesmo. Eu só as controlava pela profundidade da respiração. Sinto que nas novelas  jamais vistas, alguém gritaria entre lágrimas. Alguém Perguntaria um “Por quê?” sofrido, pungente. Alguém se atiraria no chão, rasgaria as cortinas, abriria a porta e sumiria no mundo, em busca.

Eu ouvi e ponderei. Eu esperei saber o que fazer. Eu quis abraçar alguém, mas estamos tão longe disso. Tão longe. Eu quis confortar, quis fazer um afago, quis dizer que perdoava, mas como perdoar o que não é crime? O que mal se compreende? Eu não posso perdoar o que não posso julgar. E eles esperavam perdão.

Eu esperava que eles fossem logo embora. Eu não queria condená-los, mas também não podia absolvê-los. E eles queriam qualquer coisa minha. Qualquer reação. Qualquer lágrima. Logo eu, que tenho tanto medo das lágrimas, tanto medo de não poder controlá-las. Eu não lhes dei nem uma lágrima. Eu não lhes dei nem um sorriso. Eu não lhes dei um grito sequer. Eu não deixei sair do meu peito o temporal anunciado.

Mudo, eu vi ventos devastando anos, chuvas afogando lembranças, granizo destelhando mentiras. Mudo. Eu deixei os raios iluminarem os cantos, os trovões balançarem as paredes e os meus muitos eus gritarem por socorro, com as bocas enchendo d’água.

Mudo, descubro agora. É assim que se fica quando a pergunta que mais fazemos nos é respondida.

Mudo, porque não sei o que fazer da resposta. O que fazer da pergunta. O que fazer de mim mesmo. Mudo. Mudo porque o temporal não deixa espaço para a fala, enchendo tudo de escombros e corpos na lama. Mudo porque não vejo qual é a alternativa agora. Prosseguir? Reconstruir? Deixar? Ignorar? Mudo. 

Finalmente um modelo de reação: a mudez.

É assim que aparecem os homens depois de perderem tudo nos temporais. Mudos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Olhos de ver {À espera}

Há quadros abstratos. Linhas sobre linhas. Dois blocos azuis em toda a tela. Pingos jogados e jogados e jogados. Uma mancha vermelha em um fundo todo preto. Curvas e riscos. Recortes púrpuras sobre tinta grená. Marrom sobre marrom.

“Ridículo. É ridículo que alguém pague fortunas por ‘isso’. ‘Isso’, esses pingos jogados que eu mesmo faria. Essas linhas tortas. Esses rabiscos inúteis que até meu filho, meu filho de cinco anos sabe fazer melhor. Paf. É ridículo. É ridículo que alguém assim se considere um pintor. É vergonhoso. Se é assim até eu! Me deem uma tela! Me deem uma tela!”

Eu passaria dias olhando para um Mark Rothko. Dias abismado. Dias até conseguir me recuperar, até conseguir recolher todo sentimento que tentaria escapar de mim. A consistência da cor, a transição entre um tom e outro. O traçado do pincel. A textura da tinta. O impacto, meu Deus, o impacto de uma tela toda vermelha. A intensidade que emana dela. A ausência de explicação. A imensidão do que não quer ser entendido, do que não quer ser explicado. Do que existe. Eu me sentiria um ponto sem cor, diante de uma tela de Mark Rothko.

“Besteira, besteira, besteira.”

Há pessoas abstratas também. Pessoas com ideias sobre ideias. E dois olhos que brilham sem motivo ou que param, opacos, no meio da tarde. Pessoas que não se explicam, que agem, impulsionam, pensam, falam, criam, derramam tintas sobre telas, luzes sobre palcos, palavras sobre papeis, salsa sobre molhos, esperança sobre desconhecidos e vida, vida sobre o mundo. Pessoas que são como alguns quadros abstratos: curvas e riscos.

“Ridículos. É ridículos o que são. Ridículos com seu afetamento, com suas opiniões que ninguém pediu. Com seus quadrinhos de merda, seus textinhos de merda, seus teatrinhos de merda. Suas paixõezinhas. Seus ‘ai porque eu sinto isso, ai porque eu sinto aquilo...’ Ridículos. Não me interessa! Por que não vão fazer alguma coisa útil? Por que ficar aí, pensando besteira, fazendo besteira, dizendo besteira? Me deem uma arma! Me deem uma arma!”

As pessoas abstratas me fascinam. Intrincadas, complexas, inesgotáveis. Pessoas que surpreendem: Então há ainda mais nelas? Pode haver mais? Pode. Mais criatividade, mais sentimento, mais tramas por baixo das tramas já complicadíssimas de que são feitas. Pessoas de pura intensidade, que me abismam, também por dias. Pessoas que não querem ser entendidas ou explicadas, querem ser sentidas. Sentidas com a voracidade que merecem.

Nem todos os quadros são para todos os olhos. Nem todas as pessoas também. Às vezes, quando tudo parece incompreensão, descaso, desgosto, quando tudo é motivo de queda, de vaia, de repúdio em baixo e mal som, às vezes não está em você o problema. Às vezes o único problema é que lhe faltam olhos à altura. Olhos de ver. Olhos capazes de levar as coisas que veem não ao que é bruto, não ao estômago, não ao fígado, não aos ovários nem aos testículos. Olhos capazes de levar o que veem até a alma. Porque ela também, é toda abstrata em quem a tem.

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Estreio hoje a série "À espera".
Toda quinta-feira uma nova crônica.