sábado, 27 de fevereiro de 2010

Ainda espero

Se ao menos eu houvesse enviado uma carta, haveria a magnífica esperança de ela ter-se perdido no correio. Envelopes selados se extraviam com uma enorme e graciosa facilidade.

Eu, no entanto, moderno e afoito que sou, enviei um e-mail. E-mails, a menos que o endereço esteja errado, o que em absoluto não é o caso, chegam. Ou seja, eu tenho a certeza contestável de que tu recebeste cada letra minha. Se não respondeu foi porque não quis. Ou não pôde?

Não, não vou cair na enorme cilada de te tecer desculpas. Não quero inventar floreios e acidentes fatais para justificar tua não-resposta, teu silêncio obliquo. Ao menos uma carta me daria a esperança de um carteiro tê-la perdido, ou a posto fora, sei lá. Mas um e-mail...

Tecnologias não falham assim, não tão de pronto, não com tanta conveniência. Uma carta envelopada me livraria da cruel sombra dessa rejeição, dessa certeza obstinada de que, se não respondeste, foi porque não quis, foi porque eu não te merecia sequer poucas letras. Nem um vai-te-às-putas, nem.

Eu tolo que sou, inútil e besta de sexta-feira, folheio jornais em busca do teu nome nas tragédias, nas notas de falecimento, nos editais de casamento... Nada, nem migalhas. Evaporaste no ar puramente para não ter o que me responder. Desfizeste tua máscara, deixaste de ser. Tudo para não ter que escrever o que eu preciso desesperadamente ler.

Entre Aspas

 Escrever (II)
(Clarice Lispector)

Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro por que exatamente eu o disse, e com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva.
Não estou me referindo muito a escrever para jornal. Mas escrever aquilo que eventualmente pode se transformar num conto ou num romance. É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação.
Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva.
Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada.
Que pena que só sei escrever quando espontaneamente a "coisa" vem. Fico assim à mercê do tempo. E, entre um verdadeiro escrever e outro, podem-se passar anos.
Lembro-me agora com saudade da dor de escrever livros. 

Fonte: A Descoberta do Mundo.

Da ousadia

Minha ousadia é pequena, domada e quase cabe dentro de uma garrafa. É por isso, e só por isso, que eu espero que você pegue na minha mão. É por isso que eu preciso tanto ser empurrado, coagido, forçado. Porque eu sozinho não vou, nunca saio do meu lugar. Sozinho eu sou uma miscelânea de planos, idéias e ideais. O que me falta é concretude, descubro com pavor que sou quase etéreo.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Não há o que escrever

Se às vezes eu sinto medo é quando penso: “Pronto, já escrevi tudo que havia em mim”. Porque sim, às vezes me invade essa imensidão que é estar oco, vazio. A sensação que tenho é a de que nunca mais voltarei a ordenar letras e as pôr no papel com algum sentido lógico, ou ao menos metafísico.

Os dias em que padeço assim são de intensa melancolia. Procuro no ar qualquer inspiração. Qualquer. Eu forço o nascimento de textos inúteis, mal moldados e escurecidos pelo descuido no forno. Só o que eu preciso é a segurança de que voltarei a escrever algum dia.

Cada vez que as letras me abandonam eu fico só. Não, eu não mergulho naquela solidão boa, aquela que nos permite sermos nós mesmos. A solidão que me invade é aquela que dá medo, aquela que angustia, a de criança presa no quarto escuro. A escrita é volátil. Meu Deus, por que eu caí nessa armadilha?

O dia em que não escrevo é um dia a mais em que não vivo, vegeto. Cada minuto sem uma palavra é a garantia definitiva que nunca mais serei capaz de compor sequer um poeminho do contra.

E de repente me inunda a vontade de escrever. O texto flui cristalino e urgente, implorando que eu me converta em escritor, em poeta, em artista. É nessa entrega que eu fico vivo, mesmo que cada palavra seja uma gota do meu próprio sangue. Gota por gota, eu torno a me esvair inteiro e no instante seguinte já me vejo vazio, oco, inútil e morto. Já não há o que escrever.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

XXII

Um dos meus pés está firme na terra. O outro, no entanto, balança ousado sobre o precipício. Uma parte de mim é rochosa e dura, viciada na imobilidade das certezas e seguranças. Outra parte minha é toda sopro, excitada com o desconhecido.

Meu problema é que essas partes são de tamanhos iguais e densidades diferentes. No embate entre terra e ar, quem sempre vence é a terra. Mas o vento é bom, me acaricia e seduz, a altura me chama, o vôo é incerto, meu Deus, mas é lindo. Quem, porém, pularia do precipício sem a garantia de poder voar?

É preciso coragem demais para abandonar o que se conhece por vida, essa imensa e frágil caixa de pandora. Será que eu tenho coragem para resistir às indecisões do caminho? Será que eu me arrisco a ir, mesmo sem saber se preciso levar guarda-chuva?

Acho que sim, porque talvez o vento grão por grão tenha arrastado a terra. Talvez minha comodidade tenha se desfeito um pouco em cada decepção, tornando as rochas menos brutas. Talvez eu tenha lembrado que anjos têm asas. Talvez eu tenha descoberto que ainda posso voar. E então, então adeus.
 

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Alegoria Verde

Que o cabelo da rainha era verde, todos já haviam percebido, mas quem ousaria falar? Num arremedo patético de A Roupa Nova do Rei, todos permaneciam extremamente mudos, enquanto a majestade desfilava pelas ruas.

É elementar dizer que o Rei ficara viúvo há pouco e, não encontrando no reino esposa à baixeza, foi a Matasquim achar com quem casar. Achou, pois, aquela uma. Era de uma beleza inegável e abrilhantada, digna de fada. O único problema eram suas melenas, tão verdes quanto as couves ao fim da feira.

Em sussurros moleculares, percorria nos becos um burburinho de ratos: “É uma bruxa!” “Feiticeira!” “Que nada, a coitada, só é feia!”. O discurso mudava muito, mas o assunto não: a cabeleira verde da nova Rainha. A majestade é que não se importava. Parecia andar alheia à relva que lhe protuberava do cocuruto. Agia, vejam só, como se fosse ruiva, loura ou morena.

Quando o médico tintureiro sugeriu ao rei que usasse na esposa algumas gotas de uma poção enlourecedoura, foi decapitado por pura injúria. A rainha continuou de cabelo verde, é lógico. O povo continuou a difamá-la, é evidente. Mas o tintureiro, o único a tentar dar uma solução, morreu. Bem feito para ele.

Entre Aspas

Janela sobre as proibições
(Eduardo Galeano¹)

Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar;
Na parede de um aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: É proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem;
Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.

____________________
In: As Palavras Andantes. Porto Alegre: L&PM, 1994.

Escurecimentos ao Público em Geral

E era exatamente sobre isso que eu falava no último texto. Vejam vocês, uma “crônica de costumes”, por despertar certa “polêmica” gerou um boom de visitas nos meus contadores estatísticos.

Desde a publicação de “Aos Artistas Taperenses” meu blog alavancou de modo surpreendente. Isso, ao contrário de me satisfazer, me decepciona ainda mais. Um texto que simplesmente ilustra minha opinião galgou a um sucesso que meus contos e poemas jamais conseguiram alcançar. E isso é triste. Isso é decepcionante. É decepcionante porque só reforça o conceito de que a arte é deixada em detrimento às fofocas e aos barracos.

Se eu agora adotasse uma postura de “metralhadora giratória” e passasse a atirar para todos os lados, sei que em breve passaria das mil visitas diárias. E o que eu ganharia? Popularidade? Popularidade sem méritos e sem feitos de relevância eu estou agradecendo. Realmente obrigado, mas não.

Quem veio aqui para ler o texto comentado, que leia o post abaixo. Quem veio em busca de mais motivos para falatórios, que visite blogs destinados a esse tipo de baixeza. Quem veio apreciar minha singela arte, que fique. Porque não vou mudar minha postura para inflar meu ego de números. Amo tão mais as letras. Logo volto com o de sempre: poemitos, contitos e outras loucuras de pequeno porte.

Obrigado aos de sempre.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Aos Artistas Taperenses

“E ser artista no nosso convívio
Pelo inferno e céu de todo dia
Pra poesia que a gente não vive
Transformar o tédio em melodia”
(Cazuza)

Artista, na minha concepção, é aquele que bem ou mal faz arte, concordamos? Então prossigamos. Quanto menor a cidade, menores as oportunidades de viver da arte porque menor é a mentalidade da população. Concordamos até aqui também? Ótimo.

Por que isso agora? Porque visitando o site de um verdadeiro artista taperense, Marcos Matos, deparei-me com esta tira aqui. Ri um bocado, confesso. Mas depois pensei, como o de costume. De forma geral, não é outro o tratamento que recebe alguém que por aqui ousa simplesmente fazer algo de inútil: a arte.

Inútil em que sentido? (Guardem as pedras.) Inútil na concepção de arte pela arte. Inútil para as necessidades do corpo, vamos por assim dizer. Uma vez que a arte é tudo aquilo que supre a alma. E alma nem todos têm.

Tapera está cheia de artistas anônimos e de outros tantos não-reconhecidos. Isso falando em artes plásticas. Imagine então em artes Literárias. Sim, porque vez ou outra a prefeitura lembra de fazer exposições com pinturas e esculturas locais, favorecendo sempre as mesmas figurinhas batidas.

E a quem faz literatura por aqui, o que sobra? Se à arte palpável não é dado valor, que se dirá do que não pode nem ser tocado? Das palavras? Nós, artesãos dos verbos, sequer ganhamos exposições, porque o que vender não há. É incrível que mesmo os sites de poetas, contistas, cronistas e romancistas taperenses estão perdidos e não divulgados.

Apesar disso, blogs regionais que publicam mexericos e geram tantos outros são visitados em quantia, por leitores ávidos. Sabe o que é pior do que não ter talento? Ter e não ser reconhecido. Ter e ser obrigado a ficar no limbo.

Eu conheço uma meia dúzia de blogs que são geniais, todos escritos por taperenses. Nenhum dos autores publicou livros, no entanto. Então não são escritores? Mas eles escrevem mais do que certos que pagaram para publicar besteiras. E daí?

E daí que o meu mundo não gira e estou entalado com isso desde a última Feira do Livro, na qual houve homenagens para uma meia dúzia de escritores do tipo que rima amor com dor.

Qualquer um que já tivesse publicado um livro de receitas foi homenageado. Escritores de fora da cidade vieram palestrar aqui. E por que nenhuma palestrinha com os blogueiros locais? Sim, com esses escritores virtuais que tem tanto a dizer sobre a arte de criar palavras, a arte de fazer voar pela rede textos cada dia mais belos.

Isso cansa demais. Cansa você ver serem chamados de poetas pessoas sem qualquer talento, porque simplesmente são de Família Tradicional e podem se delegar ao luxo de brincar de escrever. Cansa você só ser admirado fora dessa casa velha. Cansa ver talentos que poderiam desabrochar murchando por falta de uma gota de água.

Cansa as pessoas darem mais importância aos seus televisores que aos seus quadros, como na charge do Boca.

Não quero que isso soe como dor de cotovelo, é mais um desabafo. E no fundo nem é por mim. Estou é cansado de ver tanta gente boa e com talento escondida no fundo do baú. E desculpem o mau jeito.Melhor é vocês lerem o texto ali de baixo, é mais bonito e pelo menos não vai incomodar ninguém.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O leilão da alma de Tita

Como Tita era santa, pura, puta e pecadora, decidiu leiloar a alma. Mandou mensagens por arcanjos decaídos e capetas promovidos, avisou a Deus e ao Diabo, marcando o dia, a hora e o local.

Como cada fiel é muito, apareceram os dois, o das grotas profundas e o das nuvens recém-lavadas. Tita não se enrodilhou com preâmbulos tortos, juntou logo o martelo disposta a ouvir o primeiro lance.

Em quentes baforadas enxofrentas o Diabo foi o primeiro apregoar:

— Pago em cheque ou cartão. Pago a vista e cobro a prazo. Dou fama, dinheiro, riqueza e fortuna, trago a pessoa amada em três dias e devolvo troco.

Tita sorriu. Era o que queria. Antes de bater o martelo, porém, preocupou-se com o que Satã faria da alma, depois de reclamá-la. Indagou ao chifrudo que lhe disse assim:

— Ora, depois de pegar o que me é direito, eu queimo, asso, como e desfaço, pela eternidade e um pouco mais.

Desengraçada, Tita respondeu que melhor era ouvir primeiro a outra parte. O Sr. Deus que se pronunciasse. Para seu espanto, Ele respondeu com o seguinte:

— Não compro alma, só vendo lugar no céu. Sala, cozinha, três quartos, duas nuvens, garagem, banheiro e anjo na portaria. Eternidade sem preocupação e com conforto. Interessa?

Pois interessava. Melhor era do que viver bem em vida e mal na morte. Porque a morte era maior e mais comprida que a vida, Tita sabia.

— Qual o preço, seu Dotor?

Deus riu alto.

— O preço é baixo: caridade, fé, devoção e outras parcelas pequenas, com renúncias altas e juro zero.

Tita pois ficou-se acabrunhada. O que mais valia? Vender a alma ao Diabo ou pagar a Deus para levá-la?

Pensou, pensou, pensou. Por mais que pensasse a moleira não dava de si e nada saía dali. Ou gozava de uma vida plena e padecia no inferno, ou padecia na vida e gozava no céu.

De repente uma idéia se relampeou. Era isso. Confiante Tita passou a mão no martelo de ferro e dando três batinas na mesa gritou assim:

— Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! Vendida a alma para a Tita Márquez!

Pois se era sua a alma, ela mesma comprava. Depois de morta faria o que bem quisesse, afinal, Tita agora se pertencia.

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Conto que me divertiu fazer. Inspirado na frase anterior que foi inspirada na minha leitura atual: As Palavras Andantes de Eduardo Galeano. Recomendo.

Concorrência Desleal

Aí está uma coisa que Tita não entende, quase a ponto de desesperá-la:
Mais vale vender a alma ao Diabo ou ter que pagar Deus levá-la?



Ilustração de José Francisco Borges