quinta-feira, 28 de julho de 2011

À minha primeira professora

— Vocês já contaram a ele sobre a professora?
— Contar o quê?
— Que ela é preta... É melhor contar. Algumas crianças quando chegam lá dão pra trás...
— Mas será que precisa mesmo?
— Eu acho melhor.

- - -

— E daí, Vinícius, faceiro com o começo das aulas?
— Aham.
— Você sabia que o nome da sua professora é Marli?
— Não...
— É sim... E tem mais uma coisa. A profe é pretinha.
— Tá.
— O teu pai teve uma profe assim também. Ela era a mais querida, sabia?
— Aham.

Eu não entendi o cuidado. Eu era criança e não entendia muita coisa. Achava então que não entender era meu modo normal de ser e assim ia inventando as coisas. Hoje entendo, embora ainda invente. Entendo que o preconceito não vinha das crianças de 4 anos, mas dos pais de algumas delas. Foi uma tia que pediu que minha mãe me “preparasse” e minha mãe, embora contrariada, o fez. Eu não via diferença de cor. Ainda não vejo.

Chegou o dia de começarem as aulas. E uma das minhas primeiras lembranças disso, depois da minha mochila colorida e do meu medo de entrar na sala, é da minha professora. Não lembro de ter reparado na cor da pele, mas de ver um sorriso de adoçar um mundo inteiro. Lembro de ganhar um abraço fofo, de dizer meu nome tímido, de entregar a ela minha escova de dentes com cabo de girafa.

Lembro dos trabalhinhos que fazíamos. Coisas para pintar, recortar, colar. Lembro dela sentando do nosso lado, perguntando o que tínhamos desenhado. Lembro de explicar aqueles riscos todos dizendo: “Aqui é minha casa que pegou fogo porque minha mãe esquece o lençol térmico ligado. E aqui é o caminhão dos bombeiros. Ah, essa é a Duda, minha cadela. E essa é a Xuxa. A da TV.”

Lembro dos bilhetinhos que ela colava na nossa agenda. Das estrelinhas coloridas que enfeitavam os cartões. Lembro dela pedindo, no Natal, que presente queríamos, para que ela os escrevesse ao Papai Noel.

Lembro do parque, o imenso parque de areais crocantes e balanços azuis. Lembro dos nossos jogos de descer de pé pelo escorregador, nossas guerras felizes com botões de camélias, nossas músicas de roda e canções de reis.

Lembro da profe Marli, sentada no murinho de pedra, colorindo com canetinhas de invejar desenhos que seriam colocados como capa dos nossos trabalhinhos do semestre. Sempre sorrindo, sempre feita de doçura e carinho. Sempre encantando a nós, os pequenos.

Tempo, tempo, tempo.

Eu já tinha então 16 anos. Estava na escola em uma tarde de bastante sol. Saí para o pátio, e no parque, no mesmo muro, estava sentada ela pintando com suas canetas de colorir. Eram outros pequenos, mas eu me vi também ali. Acolhido pela profe, sentido a segurança e o amor que ela tinha por nós. Ela não me viu. Se tivesse visto, teria me abraçado, como fazia sempre que nos encontrávamos. Não importava que idade eu tivesse.

Queria escrever mais. Queria dizer mais. Mas minhas letras borram em meus olhos d'água. E a voz embarga, engasga num sentimento de lembrar de quem um dia cuidou de me fazer feliz. E que agora não está mais aqui.

“Ó meu pai do céu, limpe tudo aí
Vai chegar a rainha
Precisando dormir...”



Ficção

É manhã. E cedo. Então, faz de conta que você não me conhece. Faz de conta que não precisa falar comigo, através da minha porta trancada. Faz de conta que você não é obrigada a me amar assim, com esse amor pesado, visguento e cheirando sempre à nicotina barata.

Faz de conta que não há nada no quarto fechado. Faz de conta que os barulhos que vem daqui são de alguma assombração que esqueceram trancada na casa. Faz de conta que não existo – porque não existo mesmo para mim.

Faz de conta que você não precisa de mim, que não me quer exibir na vitrine dos méritos teus. Faz de conta que não nos conhecemos, que nos cruzamos nessa casa como dois estranhos nas ruas de São Paulo.

Faz de conta que é tudo uma ficção, mal escrita. Uma história das minhas em que cada um carrega a própria dor. Sem reclamar, sem pedir, sem dar. Cada um enterrado dentro de si, como nas histórias minhas. Faz de conta, por favor.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O livro de Pandora

Passei o dia inteiro debruçado em uma Bíblia, de quase ateu que sou. Explico: preciso dela para analisar o livro alvo de minha dissertação. Assunto do trabalho à parte, noto que cada frase lida desperta em mim duas mil agulhadas. São assuntos infinitos, análises linguísticas, literárias, filosóficas, morais... Tudo me puxa e me prende e me preenche. Por vezes o pensamento corre desvairado, longe do meu foco – a criação – e se põe a analisar matizes insuspeitos.

O uso do plural por Deus, por exemplo: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” ou “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Que “nós” é esse, cara sagrada face pálida? Plural de modéstia?

Também me atraem as idas e vindas entre um capítulo e outro. A ordem da criação se altera, são diversos escritores, cada um com marcas linguísticas específicas, metáforas próprias, versões reunidas ora para favorecer uma coisa, ora outra... E tudo isso só no livro do Gênesis, no qual me deti.

E me perco mais. Se nessa criação estivesse escrito que Deus trabalhou um dia, descansou o outro e assim por diante, seria essa nossa constituição de semana? Tudo tão cheio de possibilidades e questões... Hipóteses e implicações... Que nossa. Preciso parar um pouco para me lembrar do meu objetivo, do meu foco, do meu tema, do meu nome até...

Senhor Deus, tem dias em que eu viajo demais. E a caixa de Pandora não é outra senão minha mente. Sem mais, voltemos (nós?) à dissertação.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Do Aquário

Chove. E por trás da janela, entre cortinas de renda, eu pareço um peixe monocromático a espiar na rua a cascata. A água que desce pelas pedras tem a cor vermelha do barro das estradas que sobem. Estas águas lavaram a terra da frente das casas, lavaram as pedras na beira das gramas, lavaram a alma de quem ia só.

E lavam as roupas de quem passa por aqui, sem qualquer guarda-chuva. Esse alguém que passa e me vê menino à janela, peixe dentro do aquário. O olhar não se detém, passa apressado, molhado, magoado pela água gelada.

E eu todo peixe olho, seco, confortável, apreciando o dia que escurece cedo, xícara de café nas mãos, poesias nascendo do peito, alívio de se estender na cama. Tudo bom e perfeito, como deve ser por dentro do aquário.

No mais, algas de plástico, pedrinhas coloridas e falso baú de tesouro.

Singelo pedido às bruxas do reino

Venho pedir com a humildade digna somente dos membros da corte de sangue anil, que vós, bruxas do reino, precisando em qualquer ocasião transformar-me em algum animal, evitem a escolha clássica: o sapo.

Eu nada tenho contra tão rugoso anfíbio, mas minha princesa tem vertigens terríveis ao ver qualquer um destes animais. Sendo, portanto, impossível que um beijo venha dela para desfazer qualquer encanto.

Ainda hoje a princesa quase foi atropela por uma carruagem enquanto atravessava a estrada, sombrinha em punho, correndo e gritando por ter visto um inofensivo sapinho.

Sem mais, agradeço finamente a compreensão e, além disso, caras bruxas do reino, caso precisem de uma sugestão de animal, indico uma rápida verificação na marca de minha mão esquerda.

Grato.


segunda-feira, 18 de julho de 2011

Do vazio

Pedem-me para explicar o vazio. Mas isso é que eu não posso. O vazio é falta, falta, inclusive, de palavras. No vazio não se existe, como é possível, então, se explicar. O vazio é só isso, a falta do sentido, a ausência da definição, o espaço branco do papel, no qual não se consegue escrever - nem pintar.

O vazio é o peito chiando tonto, a vista perdida no horizonte torto, a boca ligeiramente curvada, a vontade completamente evanescida... O vazio é a incompreensão sem vontade de compreender. É a lentidão da vida implorando a morte. O vazio é o chamado silencioso pelas pílulas de se fazer sentido. E meu vazio, ainda mais grave, é o que se recusa aos prozacs.

Meus olhos parecem vazados no espelho, de tão vazios. Dois imensos buracos castanhos, sem vida, mas também sem mortos enterrados neles. Dois olhos tão ocos quanto o dia. Poços sem água, potes sem mel. E para que água se sede também não há? Para que mel se não tenho lábios a que adoçar.

Vazio, entendem? Coisa que eu não explico. Desperdício do espaço que não se ocupa. Peso do que não se carrega. Transbordamento do que não nos preenche. Vazio, enfim, entendem? Assim:

Vazio que parece vazio,

mas que se preenche pela dor

de se ser.

domingo, 17 de julho de 2011

Aniversário

Ela planejou a festa de Ághata com a mesma delicadeza com que planejaria uma vingança frígida. Comprou as velas cor-de-rosa, os pratinhos e copinhos de papel enfeitado, os balões coloridinhos e salpicados de corações, os chapeuzinhos decorados com motivos infantis... Providenciou, enfim, tudo. Tudo para que a velha se sentisse o mais ridícula possível.

Sabia da austeridade britânica e dos modos contidos de Ághata, de maneira que cada detalhe foi pensado para constrangê-la e diminuí-la. Ela tratou de convidar, pessoalmente, cada desafeto da velha, cada parente pelo qual Ághata nutria qualquer pingo de nojo.

Estando tudo assim, tão premeditado, era impossível ser outro o resultado. No meio da festa os olhos dela cruzaram com os de jasmim murcha de Ághata. Então toda dor se fez. Ali estava a velha, de boca amarga, de pupilas úmidas, desfeita, humilhada, de chapeuzinho rosa sobre a brancura dos cabelos loiros. Ela fizera de tudo para, em mais este dia, machucar a velha. E quem se doía inteira agora era ela. Doía pelo que havia se tornado, pela amargura que havia herdado, por ter virado, ela própria, Ághata.

sábado, 16 de julho de 2011

Mergulho

Só há o ar salgado em volta de mim. Mas eu posso imaginar que há água. Sim, eu posso. Posso me imaginar submerso numa piscina funda, funda de tão turquesa. A água cobrindo todos meus poros, meus cabelos flutuando em ondas calmas, a respiração suspensa no tempo, tudo leve, aquaticamente leve.

Posso imaginar meu corpo suspenso, flutuando na transparência do azul. Sou capaz de quase sentir o gelo molhando curando minhas dores, as menos amenas. Posso sentir a lentidão de cada movimento, mergulhado que estou, livre que estou, leve que estou. Voando é que estou, num céu subaquático, de estrelas marinhas pintadas e peixes falsos de fundo de aquário.

Posso abrir os olhos e ver tudo turvo, as gotas da chuva começando a ondular a superfície da água, uma folha de bergamoteira que se desprende e vem, rodopiando, servir de barco para qualquer formiga náufraga.

A chuva fica mais forte e cada gota soa como um tambor surdo dentro de mim. Imaginando eu esqueço. Eu lentamente esqueço que existe ainda o ar e que respirar é preciso. Respiro – fundo – e volto. Volto ao ar escuro do quarto. Ainda chove lá fora. Ainda anoitece aqui dentro. E não há, eu sei, nenhum mergulho possível.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Sobre escrever (ou seria sobre viver?)

É assim: eu olho para ver como eles fazem e tento, então, fazer igual. Igual não sai. Não sei moldar do mesmo barro, fazer tudo seguir o fluxo certo, criar a história, tecer o fim. Não sei.

Perco-me no caminho e nas suas beiradas, escorro pelos rios que só cuidam de fluir e fico assim, meio terra, meio nuvem de se caminhar por cima. Porque a mim não interessam os finos seres de papel etéreo. Não interessam enredos nomenclaturas tempos cenários espaços. A mim só interessa o que escorre por dentro (de mim). Interessa o sentimento, nomeá-lo, dissecá-lo e expressá-lo, enfim, seja bicho ou árvore.

Porque o que eu sinto não tem história. Não cabe nos dias normais, no conto cotidiano, na crônica modesta. O que eu sinto é poesia líquida. E a expresso por prosa lânguida. Não sei fazer de outro jeito. Não sei fazer como eles fazem, ou como eles mandam fazer.

E assim perco tempo, buscando caminhos que levarão a prisões de ferro e de concreto apodrecido. Engaiolo os adjetivos e com eles perco a estabilidade das nuvens de giz. Domo a imaginação e, assim, perco a selvageria da palavra não dita. Enquadro tudo nas regras medindo com réguas a gramática certa, só para perceber que no fim, não disse o que sentia dizer. Cuido para não fazer rimas e perco as meninas dos olhos de quem me lê.

Não sei. Não sei ser senão eu escrevendo. E tortura máxima é sentir que eu eu não poderia ser. Porque está errado pelo que Eles fazem, e errado pelo que Eles dizem. E eu só queria minha prosa padrão, capaz de enganar e ganhar concursos de curta duração. Mas não sei fazer conto, não sei fazer poesia. Sei fazer isso que fiz. E não sei que nome tem.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Olhos de ver

Não.

Ela não era uma vira-lata marrom e velha, era uma princesa capturada.

Não.

Aquele não era um canil de tela furada, era um castelo com uma passagem secreta.

Não.

Aquelas não eram bergamoteiras em flor, eram guardas de cem olhos brancos.

Não.

Aquilo não era um cabo de vassoura quebrado, era uma espada de prata.

Não.

Aquela não era uma toalha de mesa xadrez, era a capa de um príncipe valente.

Não.

A vizinha não era só uma senhora velha, era uma bruxa que fazia poções e capturava indefesas princesas.

Não não.

Aquele não era apenas mais um menino solitário brincando de faz-de-conta.
Aquele, caríssimos, era eu.


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Inspirado no que vivi, despertado pelo que vi:

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Poema de águas turvas

Derrama-me fora, meu bem,
assim como derramas a água apodrecida
dos teus penicos de louça azul

Derrama-me no barro da casa
debaixo da tua janela, para que eu respingue
nos beijos e trevos de três folhas só

Derrama-me com cuidado medonho
para que eu não salpique teus nervos histéricos,
para que não molhe tuas patas sagradas

Derrama-me de vez, entornando-me todo
misturando-me ao lodo (voraz)
e abrindo as valetas do chão

Derrama-me com o gozo de fatalidade,
com o mais puro tesão, irmão do êxtase
que transforma-se em dor.

Derrama-me fora, meu bem,

pra lamber-me depois.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Os comerciantes

Por entre sulcos e sucos de limão azedo, a tarde desvanece e mercadores torpes tentam me vender suas meias verdades. Um me diz que a sua tem desconto, outro, que a dele hoje está em promoção. Sorriem dóceis enquanto tentam me obrigar a pagar pelo que é alheio.

Vejo facas nos seus olhos quando lhes digo: “obrigado, mas já tenho minha verdade própria”. Eles não gostam e a simpatia aguada se derrete em qualquer coisa ácida, de ligeiro amargor. Recolhem rápidos o sorriso, dobram os panos sujos e um deles ainda escarra nos meus pés, enquanto xinga minha mãe e outras três de nossas gerações.

Ele fala nomes feios em línguas mortas, faz caras tortas e deixa ainda mais azedo qualquer limão. Tudo porque me recuso a seguir verdades – que não as minhas. Tudo porque lhe nego o valor de seus conselhos falhos. Tudo porque ele não admite que juventude possa ser outra coisa que não burrice, que não imaturidade, que não a falta de discernimento.

“Mas é, meu amigo”, argumento ao vento que sua passagem deixa na areia seca. “Juventude é só sinônimo de coisa ainda não vivida, de oportunidade na esquina próxima, de possibilidades infinitas”. O contrário de juventude é velhice, não burrice. E maturidade não depende de números, mas de vivências, reflexões e filosofias agudas.

Falo mais, mas ele não quer ouvir. Já foi empurrar a algum tolo suas verdades velhas, seus pensamentos baços, sua meia alma já pequena e um tanto torta.