sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Feliz Ano Novo. Mas de novo?

Você conhece Sísifo? Não, não é uma DST, é um personagem da mitologia grega. Um pobre diabo condenado a carregar uma pedra de mármore montanha acima por toda a eternidade. Tão logo o nosso herói chega ao topo, a pedra desaba e ele precisa começar tudo outra vez.

Você conhece alguém que ficaria feliz com um destino desse? Não?! Então está feliz por quê? Sim, meu amigo, estamos prestes a alcançar o cume, mas, devo dizer, à meia-noite a pedra rola morro abaixo: ano novo. De novo.

Você já passou por isso ano passado, lembra? E o que se seguiu? Outro carnaval, outra páscoa, outros feriados, outras segundas-feiras, outros janeiros, fevereiros e marços, outro aniversário, outro dezembro, outro natal, outro ano novo... De novo.

E aí está você, cheio de esperanças e promessas, escolhendo a cor da cueca/calcinha, separando os sete grãos de uva, se preparando pras sete ondas... Tudo igual – ou com rápida variação – ao ano passado. E serve prá? Você acha mesmo que Deus/ Zeus/ As Forças Cósmicas/ O Unicórnio Cor-de-rosa/ O Universo/ Alá/ Bob Esponja/ Pocahontas/ ET Bilu estão prestes a enviar energias por debaixo da sua roupa e anotar em uma caderneta o que devem enviar para você esse ano, se dinheiro, amor ou paz, de acordo com uma infalível simpatia cromática? Ou quem sabe eles estão conferido se, meio bêbado, você não engoliu oito uvas ao invés de sete. Aí 2011 vai ser pane total...

Acho que não. Tanta preparação é só para a pedra rolar. Eles espocam fogos para não ouvirmos o barulho do mármore nos cascalhos. Tanto ritual é só pra você descer de novo em janeiro e arrastar o peso até dezembro. E então... ano novo. De novo.

Não entendam mal. Eu quero ano novo, esperança nova, oportunidades novas... Mas não queria o mesmo trabalho de fazer tudo de novo, ritualisticamente. Não queria essas datas prontas, já vermelhas de gastas no meu calendário. Não queria outro janeiro engatado em outro fevereiro, enfileirado a outro março. Não queria mais dias dos pais, das crianças, das mães... Chega de Tiradentes e da Proclamação da República. Outra vez tudo isso, feito disco arranhado? Outra vez. Mais um. Bis. De novo.

Meia-noite. Mal enxugamos o suor da testa aflita e já vemos a pedra rolando pra baixo. De novo.

Em todo caso, desejo o mesmo que já te desejaram no ano passado: Feliz Ano Novo.
E aguarde, no fim do ano que vem eu reclamo mais.



PS: Agradeço aos olhos que me leram. Obrigado pela parceria desse ano, tuas retinas lisonjearam meus traços pretos. Espero te ver aqui em 2011. De novo.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Vem II

Vem, tirando os calçados para que teus pés pisem veludos nessas tábuas bem duras. Vem, passo por passo com olhos felinos na escuridão dessa casa noturna. Vem, mansa e tenra, morna e lânguida, esfregando o corpo de cio pelas paredes tão nuas.

Vem.

Vem quando todos já dormem e ressoam, embalados pela serenata dos músicos mosquitos e do maestro grilo. Vem, de respiração trazida na ponta dos dedos, mas vem.

Vem, abrindo a porta ponto por ponto para a fechadura não ranger – mais que o necessário. Vem, cobrindo minha boca com os dedos, depois com um beijo e em seguida com a língua, vem.

Vem!


Vem.

Vem você – a meu convite – entrar pela janela dela, feito sopro de um olho só. Vem você, ver em preto e branco o fim daquela amizade colorida. Vem ver ela abrir os armários e chorar escondida. Vem ver ela juntar roupas, cartas, perfumes, flores, fotos e fitas.

Vem ver ela colocar tudo nas sacolas de plástico e ir dar dois nós. Vem ver ela passar a mão na testa suada e desabar um pouco mais fundo. Vem você. Vem depressa ver.

Vem ver ela rasgar as cartas, os cartões, os guardanapos, vem ver ela vazar a tinta das canetas escritas. Vem ligeiro, senão não sobra nada.

Vem ver ela colocar tudo na lixeira da esquina. Tudo mais uma caixa comprida. Vem você, vem ver que engraçado ela entrar dentro da caixa. Metade do corpo pra fora, esperando o caminhão vir buscar.

Vem, vem ver e também ouvir. Ouvir ela dizer para nós – no ar, que queria se livrar de tudo que era dele. E nada mais dele do que ela.

Vem, corre agora, vem ver o caminhão verde chegando, o lixeiro de trás gritando, o motorista parando, de quando em quando. Vem você, depressa ver.

O caminhão pára, entre ela e nós. Barulho de sacolas, trituradores ligados, não dá pra ver.

O caminhão sai.

Na esquina só sobrou ela. Ainda dentro da caixa.

Pronto, agora pode voltar. Você já viu o que eu queria mostrar.


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A um passarinho

(por Vinicius de Moraes)

Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
Se é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis.

Deixa-te de histórias
Some-te daqui!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Entre cacos

É. Então é assim. Ontem você quebrou o caule das flores, hoje um copo, amanhã será um vaso vermelho. E você não conserta as coisas. Nunca. Passado um tempo, você empilha elas sobre a mesa e finge que estão como sempre estiveram. Como sempre deveriam estar.

Na mesa (quebrada) as flores (partidas) apodrecem no vaso (trincado). E você sorri, me abraçando como se tudo estivesse bem. Como se ruínas fossem belezas ainda frescas.

Não são.

Eu vejo os vincos. Eu me corto nos cacos. Eu sei dos armários abarrotados de louça partida. Dos baús repletos de roupas rasgadas. Fiapos de cortina não cobrem o sol, meu amor.

É. Então é bem assim. Um dia você vai perceber que a única coisa inteira na casa toda é o espelho. Mas, se o espelho está inteiro, minha querida, então somos nós que estamos partidos.


sábado, 4 de dezembro de 2010

Amanhã é 23


sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Tattoo

Eu olho para essa minha mão esquerda e ela se constrange da sua nudez, tanto assim se apegou à idéia de ser marcada. Eu, baixinho, digo a ela que aproveite. É seu último dia livre. É seu último dia limpa. É seu último dia sustentando apenas a pele e a leveza de uma penugem dourada.

Amanhã você será marcada. E tudo muda, então. Amanhã, minha querida, pedirei desculpas pela dor que passarás. Apesar disso, verei extasiado, entre tuas lágrimas de sangue, brotar em linhas negras teu símbolo eterno. Depois de amanhã nunca mais serás só uma mão. Serás signo, serás tela, serás ícone, serás mais minha.

É estranho pensar nisso: última vez na vida que vejo minha mão assim, pura. Mas não há nada que eu queira mais fazer, pra marcar muitas coisas em mim. Porque embora por fora eu esteja incólume, por dentro eu já tenho tatuagens demais. Está só na hora de uma delas vir à tona.