terça-feira, 27 de setembro de 2011

Da cópia

Outro dia cunhei a seguinte frase: "Escrever é isso, no fim, encontro de dores. Da dor de quem lê, na dor de quem escreve". Nada tão inovador, nem muito diferente do que Pessoa já dizia na sua Autopsicografia, apesar disso, verdadeiro.

Eu me identifico com tantas dores alheias... Muitas delas escritas. Às vezes o outro consegue condensar tão bem o que sentimos, em palavras, que é como se elas tivessem saído de nós. Daí vem a vontade imensa de ter escrito aquilo, cada letra, porque não é de outra coisa que fala, senão de nós. Eu mesmo queria, por exemplo, ter escrito metade dos livros da Clarice Lispector. E quase todos os do Caio Fernando Abreu. Não escrevi.

Não escrevi, mas posso ler, posso me identificar, posso encaixar minhas dores nas deles e posso, sim, copiar. Copiar para guardar, para compartilhar, para dizer com as palavras deles como eu me sinto aqui.

O fundamental, porém, é o que se faz nessa cópia.

Em primeiro lugar, não posso jamais mudar um texto que não é meu. É como se, diante de uma pintura, eu decidisse pegar um pincel e adequar qualquer cor a outra que mais me agradasse. Não. Não é assim. Alguém sentiu suas dores, sentou, pensou, escreveu, releu, corrigiu, refez para que tudo se encaixasse desse ou daquele modo... Que direito eu tenho de mexer no que não é meu? Princípios fundamentais. Daqueles que se aprendem na educação infantil.

Em segundo lugar, é imprecindível dar a César o que é de César. Ou seja, o nome de quem escreveu aquele texto PRECISA aparecer ali. Apropriar-se do que não é seu - seja dinheiro, um objeto, um quadro, um texto - é sempre roubo. Não é porque são imateriais (e são mesmo?) as palavras que elas podem pertencer a qualquer um.

Magoa ver uma coisa sua, tão íntima - porque toda escrita minha é diário íntimo - servindo de palco ao agrado de qualquer um. Falo isso porque hoje vários textos meus estavam espalhados por aí, ao vento. E se eu perguntar a quem os copiou/roubou quem é a Ághata, por exemplo, de que falam os textos, eles não saberão. Para eles é um nome. Para mim não.

Entendem? Poucos compreendem a grandiosidade do que escondo ali, nos meus escritinhos pequenos. Meus códigos, meus traços, meus segredos. Coisas que para outros podem não fazer sentido algum, palavras e nomes que são enfeites alegóricos podem ser, em mim, o centro de tudo mais.

Não sou contra a cópia, muito pelo contrário. Eu copio os textos de que gosto. Mas não os altero e sempre dou crédito a quem os escreveu. É preciso entender que isso não desmerece ninguém. Muito pelo contrário. Colocar o nome de quem desenhou aquelas letras não só demonstra sua integridade e caráter, como também enaltece suas leituras. Culto não é aquele que "escreve" palavras bonitas plagiando o que é alheio. Culto é quem reconhece o valor dessas palavras e de quem as escreveu. Culto é aquele capaz de mostrar as leituras que têm e as fontes nas quais se inspira.

Perdão, enfim, pelo desabafo todo. Mas dói. Dói como doeria você ver uma coisa sua - e da qual você gosta muito -, sendo exibida nas mãos de outro. Eu só não queria cair no abismo de bloquear esse blog todo. Seleção, clique com botão direito e teclado com o seu Ctrl... Penso que certas coisas são mesmo desnecessárias. E no fundo, mesmo, nem que seja de bobo, eu acredito no melhor das pessoas. Acredito em quem copia e dá créditos. E acredito, acima de tudo, em quem corrige os próprios erros.

Valeu.

Paixão de Avalon

Olhos. Ele se resumia a dois grandes olhos vivos e arregalados. Sempre. Seus olhos eram, na verdade, dotados de uma divina gula por mundo, tudo ele queria que coubesse ali. Na casa nada se dava longe daquele par de olhos. De cada barulho, ele capturava por eles o motivo. Cada coisa nova era devidamente registrada. Feito uma coruja muito arrepiada e arregalada, o gato passava a vida a olhar as coisas.

Foi de repente.

De repente não o entendemos mais. Tinha os olhos sempre semi-cerrados, sonhadores e sedutores; felinos. Como se alguém lhe houvesse matado a curiosidade, sem ter matado o gato. Tudo se tornou insignificante. Teria ele comido o mundo por aqueles seus globos verde-amarelados? Teria saciado sua fome de ver, enfim? O comportamento também mudou. Ele, que sempre fora dado à hábitos quase caninos de brincadeiras e saltos, agora se mantinha lânguido, aéreo, pouco dado a qualquer realidade.

"Mas que doença tem esse gato?" Ághata seguia-o na esperança de diagnosticá-lo, como faz com tudo mais que lhe escapa. Até que um dia o flagrou. Estava metido em carinhos ternos com um abandonado gato siamês, ainda mirrado. O siamês fugiu, pulando o mesmo puro pelo qual entrara no pátio.

Ainda bobo e hipnotizado, Avalon demorou-se a perceber o que havia. Até se dar por segui-lo, o outro já ia longe. Tristeza. Dos olhos quase fechados vertia tristeza. Minutos depois apareceu neles a esperança. Ele voltaria. Os amores sempre voltam.

Plantou-se o Avalon, então, com todo seu porte de leão negro, a esperar pacientemente sobre o muro antigo. Cada farfalhar de folha, cada ciscada de passarinho, cada fruta caída do pé, era um susto. O coração disparava a todo ínfimo barulho: Era ele! Não, nunca era. Naquele dia o outro gato não voltou. E nem o Avalon desceu do muro.

Eu olhei e sorri. Entendia bem o que era aquela espera dos apaixonados. Eu me via refletido no gato. Lembrava bem de estar na janela alta, esperando. De me encher de esperança e alegria e glória a cada barulho equivocado. Benditas as esperas dos apaixonados. Benditos os que tem a quem esperar.

Depois Ághata sentenciou: "Tu viu teu gato? Coitado! Apaixonado por outro gato..." É. Avalon está mesmo apaixonado. A ele não importa que o outro seja também macho. Tampouco sua própria castração importa muito. Ele ama. Ama por. Ou ama apesar de. Na verdade, não importa. Nunca importa. Ele ama. Isso é tudo. Ama e é correspondido.

Desde então temos outro gato aqui, embora outro do mesmo. Nada mais daquele Avalon espoleta, curioso e quase cão. Agora temos um gato de passos trocados e leves, de olhos sempre sedutores, de pausas demoradas e observações sutis. Temos, enfim, um gato felino. Tão felino quanto se pode ser apaixonado.

Agora, todas as tardes, enquanto Ághata dorme e eu me deixo invadir pelo meu próprio infinito, um gato espera pelo outro encima do muro. E o outro vem, religioso. Entre os beijos e os trevos de três folhas só, passam pintados de sol trocando carícias e lambidas e afagos. Tudo enquanto ninguém os vê. Criaram seu próprio paraíso no jardim em que impera qualquer coisa de uma loucura de primavera.

Eu queria amansar o outro gato, caso seja mesmo abandonado. Dar-lhe inteiro ao meu Avalon. Mas talvez ele não gostasse disso. O proibido das flores tem muito mais razão de ser. Se fosse também meu o outro, seria menos dele. Entendem? Além disso, não haveria mais o milagre da espera, do sofrimento de cada barulho não feito, e menos ainda da glória de vê-lo chegar com seus olhos azuis.

Então deixo tudo assim. Deixo porque é primavera e porque sei que, por enquanto, há amor no meu jardim.



sábado, 24 de setembro de 2011

Apoc. 10:4

De repente não entendo.
O mundo explode pelas plantas
em bombas vermelhas e roxas
de fumaça doce tóxica.

Os pássaros gritam de pavor histérico,
atormentando o dia azul.
As abelhas se preparam, fazendo estoque
de mel em bunkers.

O gato, tão preto quanto apaixonado,
espera no muro a última chegada
do amante nu.

Quando beiro a queda,
vejo que tudo já é notícia.
Na capa dos jornais,
apocalipse tem outro nome.

Acima das fotos das explosões
em caixa alta e imprensa alarma:
CHEGOU A PRIMAVERA!

,

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Boneca Russa

O corpo não. No corpo sou tão inevitável quanto todos vocês. Estrutura de ossos, músculos vermelhos, sangues, sêmen e outros fluídos, um emaranhado de nervos, veias e outros trapos. No corpo não há distinções, exceto pelo gato da mão esquerda e pela mancha na panturrilha, também esquerda, há muito coberta pelos pêlos das pernas.

Mas a alma, pressupondo e aceitando que possuo uma, essa é uma boneca russa. Sim, uma daquelas que quando abrimos sempre há outra dentro, e mais outra, e outra e ainda outra, ad infinitum. Só o centro, o gérmen inicial, a boneca mais pequenina, não pode ser aberta ou partida, desconfio. Desconfio porque nem mesmo eu cheguei a ela. E, se acaso chegasse, não escreveria mais. Estaria mudo ou morto. O que, em suma, é o mesmo.

A primeira boneca, a maior, tem olhos insignificantes, insossos até. Olhos de peixe fora d'água. Às vezes, em uma ousadia, ela parece ansiar pela petulância dos eleitos. Não consegue. Na primeira boneca até a petulância é um arremedo tosco. Mas ela se abre.

Quem chega à segunda boneca pode ver que eu sei coisas. Coisas que digo, que reparto, que facilmente dôo a quem pedir. Na segunda boneca estão as escritas, as fotografias, os planos e os afagos mínimos. Tudo que há de se admirar está pintado no colorido dessa madeira.

Mais fundo.

A terceira boneca é uma pândega. E só se chega à ela depois de algumas trancas. Essa tem cores berrantes, um colorido surreal e pinturas de macacos e flores e borboletas de lapela. Essa boneca faz festa e farra a quem vier. Ela é dona do riso bobo, da besteira dita, da besteira feita. É a boneca da graça e de fazer rir. É nela que se perde a pose, os óculos, a inteligência e a cultura. Nessa boneca ainda há qualquer coisa de criança. E de criança arteira. Quem só conhece as outras, nessa boneca nem acredita. E eu a escondo, bem calmo e soturno. Não é digno do tesouro quem não sabe da senha certa.

Quando se chega à quarta boneca encontra-se a ira. Ela foi toda entalhada e pintada pela loucura azul de Ághata. Nela tudo fere como espinho. É a boneca desvairada, a que não se cala. A que implora por briga e só dá tapa de luva. É aquela que chega quando invocada e parte depois do estrago já feito. É minha boneca de vingança e sangue alheio no chão.

Já a quinta boneca é toda preta e branca. Tem uma lágrima pintada debaixo do olho esquerdo. Quase imita um daqueles arlequins que por muito tempo assombraram meu quarto de infância. Essa boneca é de arrepios e quando nela há respingos vermelhos, eles são de puro sangue meu. Essa boneca é adoradora de coisas mortas e uiva pra lua sempre que lhe solto as cordas. É uma das mais finas. Aqui a madeira quase se parte ao menor sopro de vento. É a boneca dos silêncios que não se explicam, das escuridões em dia claro, das masmorras e dos calabouços frios. Não gosto dela, mas ela existe independente do meu gostar. E quase a venero por isso.

A sexta boneca, e aí já é querer ir fundo demais, só uma pessoa conhece. É uma boneca toda tingida de encarnado. É a boneca dos sussurros de dar arrepio bom. É a boneca de mordidas leves no pescoço. De voz rouca e grossa, de puxões e arranhões com unhas de gato. É a boneca que sabe francês, a única delas, e ainda melhor, sabe usar do francês. É a boneca de olhos agudos, de seduções altas, de sensações, de roçar de peles. É ela a aranha responsável por tecer todas as teias, venenosa a ponto de se desejá-la. Vinhos, luares, sabores, bocas e dentes, toda ela é só isso. É força e puxão, é pegada e o sexo no que há de animalesco. E ela tem mesmo traços de bicho. É a que não escuta e que urra, que não toma consciência da própria força, do próprio porte. É aquela a quem nada mais sossega, senão o próprio gozo.

Quando se parte o que é rubro, desponta a sétima boneca. E aqui meu medo já aumenta. Dessa eu mesmo sei pouco. Sei que tem segredos. Sei que age como se fosse Pandora, ou antes sua própria caixa. É ela quem tem lábios costurados, atados nas coisas que não conta, nas coisas que só insinua, nas coisas que poderiam ferir - ou matar. A sétima é a única que realmente chora e não sei a quem ela deixa ver suas lágrimas. No meio dela há a cola. Dela não passo. Nem ninguém passou ainda. Na sétima a aventura minha termina. Mas balançando-a bem, eu sei, é possível ouvir mais. Dentro dela há outras. Muitas até chegar ao cerne que esgota tudo mais.

Eu paro. Temeroso e fiel, eu paro. Mais uma e meu medo seria grande demais. Paro em Pandora e no que ela contém. Paro para minha própria sorte. Deixo ainda dormir aquilo que quer dormir. A boneca menor - e a mais perigosa - ainda reside no ventre de todas as todas. E que assim seja até o seu momento chegar. E que ele demore. E que eu resista. E que alguém assista, nem que seja para contar de toda beleza e horror que pode haver escondido no fundo de mim.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

E chove em Tapera VI

— Se ele não parar de tocar isso, vou tacar uma pedra naquela janela.
— Não vai nada. Pára com isso. A música nem é ruim.
— Eu sei. E não é esse o problema.
— E qual é o problema então?
— O problema é que desde antes de vir eu estava me preparando. Me preparando pra não estender essa mão aqui, pra não tocar tua pele, pra não sentir o calor, pra não chegar mais perto...
— Pára.
— Não. Deixa eu falar. A distância às vezes é foda demais. E a distância entre nós é de alguns centímetros só e, mesmo assim, eu precisaria passar abismos pra poder ultrapassá-la. E essa música. Esse é o problema. Ela está me dando asas. Ela está me dando motivo, coragem, coragem de pular o abismo. De chegar meu rosto mais perto do teu. De tocar teu pescoço com a minha boca. De deslizar, de te beijar. Que droga. Eu não queria ter dito nada disso. Eu só queria ter dito que vou sentir sua falta agora que você se vai. E depois eu queria ter ido embora, chorando na chuva pra que ninguém visse ou risse. E agora estou falando sem parar. E a música vai começar de novo. E eu não sei o que fazer.


Detefon, almofada e trato

Quando por conta, já estava no carpete roxo. Não sei. Não mãe, não outros, só os gigantes de falar nhénhénhén. Cheira leite. Parece leite. Tem gosto leite. Não tem leite. É um disco frio. Dizem bebe, gatinho. De fome eu bebo. De pura fome. Queria mãe.

Cresço e fico porque me passam a mão de quando em vez. Durmo deitado no sentador. Ouço a chuva e a vejo da janela sempre. Deito no sol, lambo as patas e fico, vou ficando.

Do pacote saem carnes e legumes e peixes e vegetais, tudo em pedacinhos secos. Os pacotes saem das sacolas de quando eles saem de casa. São bons. Eu entendo. Entendo e fico.

Depois veio ele. Injeção na coxa. Tentei dizer que.

Quando acordo não sou o mesmo. Fico.

Fico. Fico. Fico. Bem comum, eu fico.

Mas um dia eu noto as unhas debaixo das patas minhas. Fofinhas as patas. O menino sempre brinca com elas. Dentro das patas tem unhas. É só apertar que elas saem pra fora. Afiadas elas.

Tento nas árvores. Esticadinho eu as afio. As unhas. É bom arranhar os troncos. Tirar as lascas, sentir tração. Força.

As patas cada vez fortes mais. Eu posso. Logo logo logo eu posso. Eu posso passar a cerca, pular os jardins pra além dos muros, subir e descer e depois tropeçar no mundo. Não é assim. Do jeito todo, não fico mais. Por enquanto fico. Mas depois, eu é que não fico mais. E quando desficar, não volto. Nunca mais gatinho vermelhinho de lacinho pescocinho. Nunca mais.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

De porcelana

Sou perigosamente distraído, eu sei. E às vezes me descuido todo. Meu coração, por exemplo, em algum momento deixei ele cair no chão e nem me dei por conta. Na pressa, devo tê-lo ajuntado de qualquer jeito, espanado a poeira um pouco e colocado-o de volta, sem perceber as rachaduras fininhas.

Com as viagens e andanças, os tremores internos e os terremotos pequenos, ele foi se rachando mais e mais. Bem silenciosamente, sem os ruídos que denunciariam as pequenas raízes que se abriam na porcelana vermelha e dourada. Mansamente ramos se abriam em outros ramos e, sem que eu esperasse, o coração todo me caiu em cacos.

Talvez viesse o desespero, não estivesse eu tão acostumado a quebrar coisas. Botei tudo no lugar, aquele amontoado de lascas e cacos e pedaços que não se encaixam mais. Estou vivendo com isso, com essa confusão de pedaços pontiagudos. Tudo em mim agora dói e emociona e apaixona e alegra e entristece, ao mesmo tempo.

Veja, nesse caco você. Naquele a dor do meu vô. Nesse a loucura de Ághata. No maiorzinho a alegria que me dão meus maus adolescentes. Naquele outro, de ponta fina, uma solidão. Naquele ao lado, um prazer. Nesse saudade. Naquele desejo. No outro tristeza. Em algum a esperança...

Cacos meus, sem unidade, sem cola que me permita ter um coração inteiro de novo. Ainda assim, eu tento. Vou encaixando os pedacinhos, desfazendo meus enganos, desistindo de alguns deles, procurando outros que não devo ter recolhido, moldando peças novas. Tentando, enfim, ter um coração de novo inteiro, como o seu e o de todo mundo.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

No meu divã, com Dr. Rilke

"[...] Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples "Preciso", então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso.

[...] Por isso, resguarde-se dos temas gerais para acolher aqueles que seu próprio cotidiano lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a crença em alguma beleza - descreva tudo isso com sinceridade íntima, serena, paciente, e utilize, para se expressar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas;" [grifo meu]

De: Rainer Maria Rilke em Cartas a um jovem poeta

sábado, 10 de setembro de 2011

XII - O Enforcado



No meu tornezelo, amarrada está a corda vermelha. Não vou longe. Quando penso demais em vôos e voltas, a corda fica tesa e me derruba de pronto. No tornozelo direito, tudo que há de racional em mim, todas as coisas concretas, as contas, as canetas, os livros comprados, os textos empacotados, os sentimentos guardados, tudo amarrado na outra ponta da corda.

Às vezes tento roer a corda, esfiapo alguns centímetros, encho meus caninos de fibras vermelhas. Em vão. Eu mesmo remendo a corda depois, reforço, dou mais um nó, prendo bem, testo a distância e a encurto mais.

E se não há corda suficiente, corto as pontas das asas, como fazem com os pássaros verdes. Ou arranco minhas penas de cera - as mesmas que me impedem de chegar junto ao Sol.

Sou todo refém de mim e de minhas próprias armadilhas. Traço planos de liberdade à noite e reforço a segurança no dia seguinte. Eu me prendo porque tenho medo de onde poderia chegar caso fosse livre demais. Medo da loucura de me encontrar ao extremo. Medo de gostar da insanidade. Medo de realizar meu sonho de infância: o hospício.

Nestes medos eu penso que me prendo para minha própria segurança. E no fim não é. Eu me prendo pela comodidade, pela preservação da espécie, pela imobilidade que só tem aquilo que se prende. Para evitar os arranhões, as marcas, as cicatrizes.

E me prendo também para poder sonhar ao invés de viver, pra poder cantar e ter alguém para ouvir. De besta, me prendo de besta mesmo. E sei que estou assim, sei que estou errado, sei que queria muito mais do que minha cordinha vermelha. Mas não sei onde encontrar coragem para prosseguir. Não sei onde encontrar tesoura afiada o suficiente para eu não me arrepender. Não sei onde me desencontrar. Perdão, não sei.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Ameixas úmidas

Antes de sair ele pediu. Pediu ou mandou? Ando tão esquecida que agora não sei...

Torta de ameixas.

Mas é que eu não sei fazer. E os livros são tão confusos para uma mulher. A receita de torta de maçãs, por exemplo, serve se eu substituir maçãs por ameixas? Eu não sei fazer, mas também não disse a ele que não sei. Eu sorri, concordando, porque o amo mais que tudo e preciso dele para mim. Eu sou feliz. De verdade. Mesmo. Alguém não acredita em mim? Não acredita? Não acredita? Por quê?

Torta de ameixas. Ele adora. Por ele tudo.

Ameixas frescas ou em calda? Ameixas roxas ou vermelhas? Amarelas, quem sabe. Quem sabe? Anabela sabe. Mas ele não gosta que Anabela venha à nossa casa. Diz que ela é vulgar. Anabela não é vulgar, é linda, especialmente quando está com o vestido de veludo escuro, cor de ameixa. Qual ameixa?

A louça está lavada, lá em cima as camas suspiram a limpeza dos lençóis, as roupas se espreguiçam no varal, o gato dorme no sol da janela. A cozinha brilha e tudo está suspenso. Ovos, manteiga derretida – ele não gosta de margarina – farinha, açúcar, canela. A torta de maçãs leva canela, mas e a de ameixas, leva?

Se Anabela vier ele não tem como saber. Ele volta só quando a noite já é alta. Até lá a torta está assada e Anabela na casa dela. Na parede o telefone arde, chame Anabela, ele diz. Eu chamo.

Anabela vem, delicadíssima. Fuma qualquer cigarrinho mentolado, que segura com graça. Quando ela anda, ela anda toda inteira, dos cachos do cabelo ao negror das pernas, tudo faz graça. Anabela tem uma boca que não se vê em qualquer lugar. É uma boca cheia, vermelha de batom. Batom que ela mesma vende. Anabela se sustenta e não tem homem. Por isso ele a acha vulgar.

Ela me cumprimenta afetuosa, beijos no rosto, quentes, demorados, entorpecentes como seu perfume que lembra a floração das ameixeiras. Meus olhos se fecham, delicados. Fecham de quê? De delicados. Já os olhos de Anabela nunca são completamente abertos. Ela olha entre os cílios. Como se sorvesse do ar um prazer que a deixasse levemente embriagada. Anabela é pantera. E eu me arrepio.

Torta de Ameixas. Ela sabe fazer? Sabe.

Sabe, mas diz que precisa de mel. Eu tenho mel. No balcão, em cima. Deixe que eu pego. Eu pego. Eu derrubo. Eu quebro. O vidro corta meus dedos, mel e sangue escorrem nas minhas mãos em um vermelho dourado, pleno, farto, forte, doce. Anabela vem ao meu socorro. "Pobrezinha, ela diz, machucou?" Sua boca se abre. Tão carnuda a boca de Anabela. E a minha tão fina. A Língua de Anabela toca o sanguemel da minha mão. Tão vermelha a língua de Anabela e tão eriçada toda minha pele.

Mel sangue Anabela. Torta de ameixas.

Quando ele chegar não haverá o que comer. Eu já terei sido comida toda por Anabela. Até o caroço.

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Inspirado em: What's the Use of Won'drin'? , que por sua vez remete ao Banquete , de Eduardo Baszczyn

O susto essencial

Eu me junto pouco aos homens. Sigo a imagem austera do escritor na torre de marfim, perdido na sua própria faiscante loucura. São raros os momentos em que, por exemplo, eu desço ao centro da Cratera. E quando o faço, sempre tenho destino certo: a biblioteca. Por isso, mesmo que eu ande na maior solidão do mundo, sempre tenho as mãos dadas com alguém.

Hoje andávamos de braços Hermann Hesse e eu.

O susto essencial se deu na saída do teatro, para onde fomos depois que eu o peguei na estante. Antes do término, passou por mim uma senhora amiga, a quem eu não via de longa data. Cumprimentou-me cordialmente. Comentei:

- Quanto tempo...

Disse-me ela:

- Quanto tempo para ti. Eu não perco um texto teu. Todo dia entro no facebook para ler o que tu escreves. Parabéns.

Antes de eu me recompor inteiro ela já se fora. Dos meus olhos meio perdidos Hesse riu. Ele sabia o que era sentir isso. Eu não. E o susto talvez não houvesse se dado ali e tão imenso, se pouco antes de eu sair de casa, outra senhora a quem eu sempre admirei a distinção, a sabedoria e a elegância não tivesse me feito elogio maior.

Segui perplexo. Cabeça baixa a pensar. Convidei Hesse para irmos ao mercado. Ele aceitou. No caminho andávamos quietos. Eu pensando naquilo tudo, ele respirando a luz que já não via desde 82.

Eu pensava nos elogios feitos porque por todo tempo eu escrevi sem ser notado. Eu tinha leitores do meu blog (que já está com 7 anos) em todas as partes do país. Leitores que até hoje me seguem com uma devoção desmerecida. Liam-me, sobretudo, as meninas adolescentes, com quem eu me comunicava nas minhas dores melosas e meus amores sensíveis demais. Eu era lido e respeitado pelas minhas letras tontas, mas sempre fora, sempre longe daqui, sempre distante do meu (quase) berço, da minha Cratera (não) querida.

De repente aquelas mulheres haviam descortinado facetas minhas que eu não podia supor. Especialmente lá do alto da minha torre branca. Então eu era lido aqui. Aqui. Aqui. Aqui.

Aqui, onde eu achei que minhas letras jamais alcançariam, apesar das iscas que eu teimava em jogar. Aqui, onde eu vivia bem comum e bem banal, só esperando o casulo romper, as asas se abrirem. Aqui, de onde eu queria (e quis e quero) fugir pra sempre. Então aqui, enquanto eu vivo, elas me lêem. E eu faço parte da vida delas de alguma forma estranha, mesmo que elas não me enviem suas respostas.

Alguém aqui gasta os minutos e me lê sem compromisso. Não só porque me conhecem, não para mexericar, não para agradar. Lêem porque querem. Porque alguma coisa encontram no que eu escrevo. Logo eu, que pensava escrever difícil demais, intrincado demais, pra dentro demais. Logo eu que tive crises, pensando que minha escrita ainda era a do adolescente bobo.

E não é?

Vocês me lêem, então não é.

No mercado eu já começava a me aceitar como coisa lida, como palavra impressa na tela e propagada para longe, respingando tão perto. Ia eu me recompondo, enquanto Hermann escolhia alguns chocolates. Na fila do mercado, a terceira senhora. (E pelas minhas leis tudo que acontece em três tem força a mais). Cumprimentou-me sorrindo com uma intimidade que não experimentamos e disse ser minha fã. Disse que acompanha tudo que eu escrevo e que acha um máximo.

Pasmo novo. Tudo que eu refizera até ali fora perdido. Fiquei apalermado. Hesse rindo sempre, disfarçado, embevecido de presenciar meus sustos. Então assim? Então mais uma?

Em uma cidade como Cratera, tem qualquer coisa de glória em ser reconhecido por uma arte feito a escrita. Ser um expoente (?) de cultura aqui é tão complexo quanto querer ser um artista de cinema - ou um elfo mágico. Impossível praticamente. Por isso que UM reconhecimento aqui é uma coroação de louros. Três, em pouco mais de uma hora é o quê? O nirvana?

Não estou dizendo que sou ótimo por isso. Não estou mergulhado no orgulho besta. Eu sou mesmo o que menos acredita em mim. E se compartilho isso aqui é porque estou surpreso. De verdade. Estou surpreso porque não suspeitava ser lido assim, ou melhor, não suspeitava ser lido Aqui.

Agradeço de imenso a essas três mulheres (que talvez me leiam agora) porque me deram alguma esperança, alguma fé em mim e, melhor ainda, alguma fé na Cratera.

De coração, esse texto é para você três. Obrigado.

domingo, 4 de setembro de 2011

Luffa

Os outros frutos se inchavam com o sumo doce que suas plantas lhes injetavam por dentro. Não ela. Dentro dela tudo era de uma secura fibrosa e áspera, ela toda preparada para machucar quem lhe acariciasse demais.

Na casa da avó velha havia, atrás, trepando a cerca com suas indecentes flores amarelas. Foi pisando nas pedras tortas, caindo sem se importar, que ela chegou. Abriu o portão e não o fechou atrás de si, o deixou caído, despencado, meio morto. A avó talvez dormisse naquela hora. Talvez morresse. Ela não bateu à porta para saber. Deu a volta na casa e as avistou.

Pendidas e tristes, feito pepinos que secaram demais ao sol, que torraram e morreram ali. Ela escolheu uma. Uma que os pássaros não alcançaram para quebrar-lhe a casca e comer-lhe as sementes. Sim, porque ao menos suas sementes eram comida.

A dela era inteira.

Virou-se, deu a volta na casa, passou pelo portão morto e subiu a rua enfiando as unhas bem fundo, quebrando a casca como se fosse a de uma ferida seca. Sentindo os dedos se enterrarem nas fibras duras daquele fruto hirto. Deixou nas pedras a trilha da coisa esfarelada.

Chegou ao portão da própria casa e depois de entrar o bateu bem forte. Ouviu a cerca toda bater e reverberar como que em protesto. Dissessem as grades os palavrões que quisessem. Nada mais feria.

A roupa ela abandonou pelo caminho, completando a última trilha. Entrou no banheiro, o chuveiro quente demais. Passou a água pela polpa seca. Deixou-se cair nos ladrilhos gelados. Começou pelas mãos, esfregando até que ficassem róseas, depois vermelhas, depois até que começassem os arranhões, depois até que os filetes de sangue surgissem. Passou para os braços segundos antes de expor das mãos as veias, os músculos, os tendões, os ossos.

Sempre arranhando, sempre ferindo, sempre sem gemidos ou lágrimas que denunciassem uma dor. Quem sabe sem dor.

Esfregava. E enquanto esfregava a espuma vertia e enquanto vertia se tingia de um rosa algodão doce. O pescoço fino, o vão dos seios, os seios, o abdômen, as costas, até onde alcançassem as mãos. O rosto e os cabelos compridos e pretos demais. Os pés, as pernas, as coxas. O sexo de menina.

Toda ela se acariciando até a carne com a bucha dura. Toda ela esperando para descobrir que também por dentro não havia polpa doce, só aquelas fibras entrelaçadas, unidas, perplexas e que não serviriam de alimento. A mais ninguém.


sábado, 3 de setembro de 2011

Le fate ignoranti

Os diários de repente se enchem, transbordam, pingam no tapete e estragam os fios grossos do tramado azul. As coisas já não cabem só nas páginas, elas se infiltram no assoalho e apodrecem o porão de terra. Meu nome já escorre em toda parte, evaporando com o calor e mofando as paredes do quarto, apodrecendo a madeira branca e desenhando raízes no teto.

Minhas verdades se liquefazem e descem visguentas fazendo manchas no piso - cuidado para não pisar nelas quando você chegar. As tintas se soltam e, como benção, minhas letras podem se diluir e enfim livrarem-se do eterno. O papel se pinta em cores, feito obra abstrata. Só quem chegar bem perto poderá ver que ficaram cicatrizes - e perdão por isso; eu sempre escrevi forte.

As agendas, as páginas finais dos cadernos, os guardanapos, os cartões, os bilhetes, aquele crachá de papel cartão, tudo perde o que foi por mim escrito. Tudo se esvazia, tudo se solta, tudo se desfaz para ter algum alívio. Para poder se livrar, enfim, de mim.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Um entre aspas sobre ser entre parênteses

"[...] Era uma mulher entre parênteses.

Fazia parte do universo, mas vivia isolada em seus próprios pensamentos e emoções.

Era como se ela fosse um sussurro, um segredo. Como uma amante que não pode ser exibida à luz do dia. Às vezes, sentia um certo incômodo com a situação, parecia que estava sendo discriminada, que não deveria interagir com o restante das pessoas por possuir algum vírus contagioso.

Outras vezes, avaliava sua situação com olhos mais românticos e concluía que tudo não passava de proteção. Ela era tão especial que seria uma temeridade misturar-se com mulheres óbvias e transparentes em excesso. A mulher entre parênteses tinha algo a dizer, mas jamais aos gritos, jamais com ênfase, jamais invocando uma reação. Ela havia sido adestrada para falar para dentro, apenas consigo mesma.

Tudo muito elegante.

Aos poucos, no entanto, ela passou a perceber que viver entre parênteses começava a sufocá-la. Ela mantinha suas verdades (e suas fantasias) numa redoma, e isso a livrava de uma existência vulgar, mas que graça tinha? [...]"

Texto: Martha Medeiros em Feliz por nada.
Imagem: Logo da banda Pouca Vogal.