quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Chuva!

“Abrirei a janela de meu quarto e receberei nua a água do céu.”



Estou esperando chuva.
Estou esperando chuva, para que quando chuva houver, eu possa mergulhar no ar.
Estou esperando chuva porque só a chuva lava, só a chuva cura, só a chuva redime.
Estou esperando chuva para que ela lave toda lama e toda alma.
É só na chuva que posso pensar na poesia, de forma simples, singela e então natural.
É só na chuva que posso abrir os lábios, beber teu corpo, tomar tua calma.
E quando a chuva vier, quero a água nua das encostas e mananciais. Vou dissolver-me todo, nadar ao lodo, ser o nada, que é ser muito mais.
Eu preciso voar nas águas claras e intranqüilas, por cima das pontes, por baixo dos rios.
Quando eu perder a respiração na doçura das águas, quero encontrar asas e poder mergulhar.
Estou desesperando e chuva não tem.
Há Somente este sol que brilha aloirado com calor sobre-humano.
Ah, Apolo maldito, porque é que chuva não há?

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Na ressurreição da carne

“O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever”

Agora descubro eu também que já não vivo.
Como um homem que perdeu a sombra e continua a andar sem ela, nu ao sol.
Eu sou nu ao sol do meio-dia. Nu porque a palavra me vestia. (Não veste mais?) Nu porque o verbo do qual se fez carne me entorpecia. (Não entorpece mais?) Meu Deus, meu Deus, quanto tempo se passou até que eu notasse. Até que andasse ao sol escuro do meio-dia e fosse ver na margem d’água que vida já não havia.
Sou solitário soneto morto.
Não escrevo. Não como escrevia. Escrevo com tinta, antes era com alma. Mas como escrever com alma se calma já não há? Estamos na lama e cada minuto é um respingo de gosto marrom e amarguento.
Porque escrever era todo meu sonho e todo meu torpor.
Escrever era meu vício, era meu ócio, era meu ósculo infame.
Escrever era estar vivo e sangrar em laios as gotas de vida. Uma vida não é possível longe da escrita. Porque só somos vivos em função do outro. Quando estou sozinho, então, se não escrevo, estou morto.
Simples e fatal como enlouquecer e acreditar na própria loucura. Porque é preciso ficar louco sem perder a consciência. É preciso escrever da morte, sem no entanto morrer.
Mas como morrer se já não se vive? Alguma coisa ainda pulsa dentro de mim, eu sei. ((Ou) Não pulsa mais?). Algum verme intocado se recusa a devorar minha carne, porque sabe que ainda há em algum canto a palavra maldita que vai rebrilhar e preencher de sangue esta morte inútil.
Porque é inútil, meu Deus, como é inútil morrer e ser triste num dia tão belo e com canetas à mão.

sábado, 22 de novembro de 2008

Das Esperas & Desesperos

"que esperar não é saber"



Eu poderia começar por qualquer parte da tarde que se esvai, mas prefiro dar início pelo grito do pássaro. Ele grita, alegre e alheio às minhas dores, do outro lado da janela. O sol nada mais é que reflexos no topo da árvore onde ele se esconde, nesgas laranjadas que penetram pelas frestas da veneziana.
O vento faz soar o correr das folhas, quase com o mesmo som que o correr das horas. Horas de espera, sempre longas, sempre infrutíferas, sempre insinceras.
Que cada um decida com o que vale gastar seu tempo. Que cada um escolha quem lhe merece mais a companhia. Porque sou todo amor em olhares de ouro, sou todo amêndoas no cair da noite, sou todo carinho e estou sozinho.
Sou todo sincero e todo inútil, olhando as cortinas tremeluzirem à brisa. Aproveito a espera e preparo sorrisos falsos, calabouços de amores a aprisionar os sentimentos dormentes de em vão esperar.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Quando o passado passa


"On me dit que nos vies ne valent pas grand chose,
Elles passent en un instant comme fanent les roses.
On me dit que le temps qui glisse est un salaud
Que de nos chagrins il s'en fait des manteaux"



O meu passado todo em duas sacolas gigantes e algumas caixas vazias espera, sorumbático, que lhe carregue o caminhão do lixo.
Meu Deus, dói. Dói como doeria queimar uma biblioteca. Dói como doeria arrancar um coração.
Vão ao pó meus primeiros escritos, meus muitos sonetos em canetas infantis e coloridas, sempre chorando amores que jamais se realizaram.
Hoje vai embora, vai ao lixo tudo que eu senti, todos amores tolos, todas as rimas fracas, todos bilhetes insanos e todas estas cartas que nunca tive coragem de entregar.
Eu poderia ter tido mais calma, ter lembrado mais, ter ensaiado um último adeus, mas não sou tão forte, joguei os papéis na sacola com fúria e teria queimado se o volume não beirasse surreal.
Agora está lá fora, sozinho, o meu passado. Olha para a casa, choque entre a mágoa e a melancolia. Ele sabe que nunca mais, nunca mais, poderá ficar aguardando que eu lhe torne às lembranças. Nunca mais um lugar no armário, nas gavetas, nas caixas. Nunca mais fotografias que eu faço questão de esquecer. Nunca mais bilhetes que eu já deveria ter queimado.
Adeus então.
Sem máculas, sem mágoas, lá vão meus brinquedos de criança, minhas cartas de baralho, meus trabalhos escolares, minhas belas redações. A professora mandou que eu publicasse uma no jornal, agora ela será publicada no lixão. Belíssima redação. As músicas que ninguém jamais soube que compus, anotações estagnadas sobre a magia, as primeiras linhas do meu primeiro livro, tudo escoa, tudo se esvai... enquanto aguarda com calma que passe o caminhão.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Dia

"Desafiei o medo de não aguentar"




O dia é tão lindo que você não sabe o que fazer dele.
Por quantos séculos tudo que você desejou era ter o dia livre e aproveitá-lo? Todas aquelas manhãs vazias, todas aquelas tardes intermináveis, as horas lentas sendo devoradas por papéis de letrinhas miúdas.
Agora você tem o dia, o dia é lindo e você não sabe o que fazer com ele. O céu ainda é de um azul esbranquiçado, típico de quando o sol ainda se espreme belo no horizonte, tentando nascer. O céu é papel esperando o que você vai escrever.
Que angústia não ter onde encaixar um céu assim.
Talvez você pudesse caminhar à tarde no bosque, talvez pudesse experimentar a fotografia, talvez pudesse regar os projetos atrasados, talvez pudesse cuidar da vida que passa, talvez pudesse ir à cartomante grená, talvez pudesse escrever um conto de mágica, talvez...
Você mofa. Lenta e secamente, mas mofa.
O dia é tão lindo, e o que fazer, meu Deus, de um dia tão lindo?
Você esqueceu. Na infância aposto que você sabia, mas já esqueceu.
O dia é tão lindo, todo seu, e você?
Você lê, quem sabe, largado com displicência em uma cama que necessita de ordem. Ah, você deveria deixar tantos livros lá para a velhice. O que vai fazer quanto tiver todos os séculos que a sua mão premune e já tiver lido tudo que se escreveu no mundo? Você lê e você dorme.
Você caminha sobre o muro, olha o sol tão azul que dói. O dia todo, tão lindo, que dói.
A areia passa grossa no furo da ampulheta. Quando você percebe por acaso já é ocaso. Já não há tempo de beber do dia. Vem a noite, noite de dormir...
Mas amanhã será mais um dia....
E o dia será tão lindo que você não saberá o que fazer dele.
Talvez a isso chamem de depressão.

Bad Actress

"Porque o amor e o ódio se irmanam na geleira das paixões
Os corações viram gelo e, depois, não há nada que os degele
Se a neve, cobrindo a pele, vai esfriando por dentro o ser
Não há mais forma de se aquecer, não há mais tempo de se esquentar
Não há mais nada pra se fazer, senão chorar sob o cobertor"



A atriz finge que não ama.
Prefere sempre representar.
Mas eis que ficou sozinha no palco.
Agora
Batam palmas!
Agora
Fechem as cortinas!
É hora de ela ir para o camarim...
chorar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Trapezista

"Porque o show não pode parar!"




O espaço perdido no ar. A incerteza geral do pulo.
No meio do espaço, o trapezista descobre: não há rede de proteção!
Ficar na barra onde estava já não pode. As mãos cansariam e só haveria um destino certo: o chão. Alguém pausou a vida, com tranqüilidade imensa, e o trapezista ficou suspenso.
O frio na espinha parece eterno e como estão distantes suas mãos do próximo trapézio.
É preciso ir em frente, arriscar o pulo, o ar é tudo, exceto imobilidade.
A platéia de respiração suspensa, bocas abertas, olhos abertos, exceto os dois ou três que prevêem a queda e, quase sádicos, chegam a torcer por ela, de olhos bem fechados, não gostam de desgraça.
Esperança, o outro trapézio vem.
Mas vai. Vem, mas vai. Vem, mas vai. Vem, mas vai. Vem!
Mas vai...
Movimento pendular em velocidade decrescente. O trapezista, descrente, já não sabe mais, será que vem? Será que vai? Será que voa? Será que cai?
O dono do circo deveras se preocupa: quem ficará no lugar do trapezista? Pega o celular e liga ligeiro, talvez a mulher barbada ainda não tenha outro emprego.
Dois anjos, um pouco acima da lona, apostam fios de longo algodão doce. Um acha que cai, o outro acha que não.
Cai, cai, balão.
Cai, cai, balão.
Aqui na minha mão.
Não cai não.
Não cai não.
Não cai não.
Cai ali, bem mais no chão.
Quem esqueceu ali da rede de segurança?
Ah, trapezista, seu medo vão de altura não olhou o chão antes de dar o salto?
Agora está lá, preso no ar, teu anjo da guarda apostando que cai.
E se cair, nunca mais saltar? Se saltar, nunca mais cair?
O palhaço, coitado, fecha os olhos assustado.
Que o respeitável público não negue, é boa a sensação. É boa a adrenalina, o suspense, a surpresa.
É boa a emoção de estar vivo, presenciando a morte. Suas cadeiras, mais cômodas que confortáveis os mantém seguros. Mesmo as arquibancadas de pau tosco e público nem tão respeitável são mais seguras que o ar.
Para todos é bom, para todos é alegria, tudo faz parte do epetáculo, como anunciou o argentino.
O trapezista não acha nada bom. Queria fechar os olhos e ao abri-los estar seguro, porém, de olhos fechados não poderia calcular o momento exato de estender as mãos na tentativa de agarrar a outra barra.
Precisa pensar com calma (não há mais tempo). A barra precisa vir (mas vai). Seus dedos precisam fechar (as mãos suam demais). Seu corpo precisa impulso (ele treme e tremendo perde as forças).
É um aprendizado: a Eternidade, o Infinito.
A vida inteira e muito além, na velocidade com que eu digito um ponto: .
Tudo durou menos que isso, menos que um ponto, não haveria espaço sequer para reticências...

Ser

Um mosaico de pedras
Petra, Preto e branco.
Os olhos não dizem
mas o que deveriam dizer?
As palavras perdidas
Pedrinhas banidas
da arte de ser.

À mulher que faz amor com um poeta*

“Menina, tu nunca poderias compreender. Nem tu nem ninguém sabe quanta ternura há em mim. Eu hei de ser sempre para vocês o seu Amaro melancólico e taciturno, o seu Amaro que trabalha num banco e faz música nas horas vagas, o seu Amaro que vai ler os seus livros à sombra dos plátanos, o seu Amaro que não sabe fazer um gesto de amizade nem de acolhimento. Vocês nunca compreenderão. [...] Tudo isso se pode sentir, tudo isso se pode pensar. Mas nada disso se pode dizer. Seria piegas, seria idiota, como seria idiota também eu dizer que te amo. [...] O raio de sol é de um outro mundo. Clarissa, se eu pudesse falar, se tu pudesses entender...”



Você ousou descobrir que os poetas também amam, e em rimas ricas de louca devassidão.
Eu era só um poeta, meio triste, de tom quase melancólico. Um menino de águas paradas (profundas), de olhos nos livros, de alma nos sonhos. Praticamente um querubim. Tímida sombra das sombras, quase sorumbático.
O que haveria por trás daquela boca perfeita, da barba mal feita, dos olhos nas nuvens, dos cílios no céu?
Você me levou para sua casa e, Baby, apagou a luz.
Demônios fervilham debaixo da pele de cada poeta. Fantasias secretas, luxúrias dúbias que fervem em caldo de grosso prazer.
Porque aquela boca, bem desenhada, que de dia ressoa sonetos, à noite lhe mete dentadas, enrubesce a epiderme, arranca gemidos.
Porque as mãos macias, mãos de quem escreve quartetos, percorrem seu corpo com a experiência inundada dos arrepios.
O poeta, minha cara, você foi a única a descobrir. Você foi a única a pisar além da sombra, a tirar o óculos, ver de perto, bem perto, tão perto que de dentro.
O poeta, quieto, quase querubim, é anjo lascivo de carnes quentes e desejos intrépidos. O poeta de cabelo alinhado tem escondido o rosnado de bicho selvagem, à procura do cio.
A cada noite, são os gemidos, a voz rouca escorrendo à nuca, a barba não feita arrancando tremores.
Que sorte tem, quem tem à cama um poeta: são arranhões metrificados e gemidos rimados.
Os outros homens fazem “amor”, os poetas fazem luxúria, tecem lasciva, montam libidinagens, devoram voluptuosidades e ainda por cima, no dia seguinte, te mandam um soneto de amor.

* Porque todos os sonetos que faço (em papel ou em teu corpo) são para ti.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Relevações

"Why can't guys be more like you, Mouth?
I mean, you're loyal, sweet, you bought my dollhouse back for me...
You know what you are?
You are like a really great little brother."

Eu bebia a um canto vinho vermelho em cálice de vidro.
Você bebia vodka pura, direto da garrafa.
Um brinde, querida, à nossa eterna solidão.

Talvez eu pudesse voltar, sentar à sua mesa, brincar nos seus olhos. Elogiar seu vestido, você fica linda com ele.

Mas eu era apenas aquele ugly boy que você insistia em chamar de little brother.
Game Over.

Antigamente eu sangrei mil poemas de amor só para você. Minhas noites, minhas insônias, meus tremores e minhas febres, todas elas tiveram teu nome.
Eu incendiei de paixão, queimei brasa no ódio, mas por todo tempo fui seu.
Sonetos, métricas e rimas ricas, todo verso perfeito, esperança de te encantar.
Te mostrei os poemas, lembra?
Só não disse, por descuido, que eram todos pra ti.
Eu lembro de tua lágrima que rolou e caiu sobre a minha. Bem bonito, disseste.
Foi só o tempo de passar a limpo os meus poemas, riscando o nome, trocando artigos, assinou embaixo e mandou a outro, não eu.

domingo, 9 de novembro de 2008

Estações

“Escute garota, o vento canta uma canção
Dessas que a gente nunca canta sem razão”



Espero que a próxima estação seja a última.
É preciso descer daqui, sacudir a mala e bater na poeira dos vestidos.
Não agüento mais a paisagem mudando ao ritmo da náusea. A insegurança de uma nova viagem... As malas pesadas, quem vai carregar? O bilhete foi aceito sem destino, de remetente desconhecido.
Então é o trem, saindo dos trilhos, a cabine apertada, os jantares com o comandante, os sorriso que falsifico e vendo a preço de um vintém.
Então é meu corpo, é minha mente, minha alma, todos na vitrine, quem quer comprar?
O desconto é módico, eu sei, mas tem mais no pacote completo.
Mudar de cama, mudar de banheiros, mudar de vida?
Quem sabe, desde que seja para uma pior.
Não seja pessimista, diz a francesa, com sotaque carregado de fumaça. Odeio cigarro.

Era tudo isso que eu queria escrever, era bem assim que faria meu desabafo.
Era em alegoria ensaiada que diria estar inseguro com mais uma (já foram tantas) das mudanças de cargo.
Que o próximo cargo seja o último, implorava minha mente.
Daí é que o destino nos dança. Veio a música, voando ao acaso, disse estas frases, quando passou por mim:

It's October again
Leaves are coming down
One more year's come and gone
And nothing's changed at all
Wasn't I supposed to be someone
Who can face the things that I've been running from...

Let me feel, I don't care if I breakdown
Let me fall, even if I hit the ground
And if I... Cry a little... Die a little...
At least I know I lived, just a little...

Espero que a próxima estação seja a primeira, de muitas outras.
Espero que o trem não pare tão cedo, que na viagem eu sinta do prazer ao medo. Porque se eu sorrir, se eu chorar, de qualquer forma, saberei que estou vivo.
Obrigado ao vento pela canção.

sábado, 8 de novembro de 2008

Sexto Ato*

Das saídas de Pseudo

E então ele saía, todos os dias, por outras lojas de mesmo nome, com cartões de mesma letra, quase sempre dizendo assim: Bonito texto, parabéns, passa lá na minha loja ver os meus. Os donos das outras lojas lá iam também, deixavam um cartão igual, um convencendo o outro de que ambos eram bons. Às vezes trocavam cartazes, pendura o meu aí, que penduro o seu aqui.
Na calada da noite escura, onde sequer um verbo era visto no céu, corriam nas lojas mais distantes, roubando uma frase daqui, um verso dali. Depois pintavam tudo de outra cor, colavam a etiqueta da sua marca e exibindo a peça na vitrine, a título de lançamento.
Dava-se grande importância o tal Pseudo. Barão das Letras, Conde das Artes, Duque das Palavras e Marquês de Frases. Adivinhava no espelho a fama, a glória todo júbilo e todo louro que pudesse haver sobre a terra dos homens.
Ia de hora em hora contar o número dos que paravam ver a vitrine. Fazia chamariscos, promoções, sem o talento, tudo em vão.

* Sexta parte de um conto em tom teatral, ainda não publicado.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A Carta Suspensa*

"Hoje estou afim de enlouquecer"



Acalmem-se, danadas, calem-se todas!
O que eu mais queria era poder colocar todas vocês em ordem.
Sentar-me ao trono de rei e chamar à audiência uma de cada vez. Então eu poderia ouvi-las com calma, até que a que fala, não tenha mais nada para me dizer. Só daí, passar para a próxima. Queria esmiuçar uma a uma de vocês, chegar ao âmago de cada questão, decifrá-las inteiras, satisfazê-las.
Mas vocês, heim, tão desordenadas e bagunceiras...
Preferem correr à minha volta, cada uma com um grito, puxando a barra pisada da minha calça jeans.
Fazem tumulto, algazarra, se atropelam, se engatam, engatilham, um terror... um terror...
E eu fico aqui perdido.
Enquanto estou no meio de uma já vem outra, implorando urgência. Largo aquela, socorro esta, caio nas graças de alguma outra...
E ao fim, nenhuma.
Ninguém lhes ensinou? Tenham paciência, ora.
Eu não queria mais esta responsabilidade sobre vocês, juro.
Por mim, jogava metade do que eu sei no lixo. Talvez assim vocês cansassem e fossem importunar algum outro.
Vocês não me deixam dormir, não me deixam comer, até quando ando na rua, vocês me vêm à cabeça, desgraça. Estes cabelos brancos, quem vocês acham que causa? Algumas de vocês são sem noção, tantas outras sem fundamento, todas andam me deixando sem vontade.
E quando as chamo? Quando preciso, de uma só, que seja... Vocês vêm? Não, imagine...
É só perceberem que estou a procurar, pronto, escondem-se todas no meio do jardim.
E eu chamo, clamo, reclamo, imploro e nada. Até ouço os risinhos abafados na grama, malditinhas.
Mas é só eu desistir que lá vêm vocês, às centenas, me trazendo encrencas, desilusões, machucaduras e arranhões.
Cansei.
Se pudesse me livrava de cada uma de vocês, mas fazendo isso, sou eu quem deixo de existir.
Tudo bem, tudo bem, não sumam, meninas. Apenas, por favor, tentem manter um mínimo de ordem dentro da minha cabeça. Sabem aquele mínimo necessário para não ir parar no hospício? Pois é.

* Sobre o título:
Uma delas sugeriu "Às idéias, com amor".
Outra preferiu "Às idéias, com rancor".
A terceira mandou que as outras duas ficassem quietas. Era preciso, pois, criar suspense.
A quarta leu suspensa no lugar de suspense, na frase anterior.
Todas riram e uma quinta opinou: Por que não põe "A carta suspensa"?
Eu tentei dizer que não fazia sentido, mas elas me olharam com uma faca na mão.
Então tá, seja feita a nossa vontade....

domingo, 2 de novembro de 2008

Pesadelos

“Saint Marie, Mère de Dieu, priez pour nous, pauvres pécheurs,”

Eu não gosto quando a casa se impacienta.
Quando ouço perdidos os passos de quem já foi. As unhas, as garras, batem no chão de madeira quando ela passa. Eu odeio quando tudo que deveria estar suspenso se move.
Não gosto dos gemidos, dos bufares, dos corpos pesados que rolam no chão. Os gemidos de angústia não cessam e os passos na escada estão cada vez mais perto.
Quero que se calem as vozes, que durmam os mortos, que caiam as unhas.
Mas eles não calam. Estragam minha música, arrancam meu sono.
Quando tudo acalma é só sinal de que eles vêm novamente. As cadeiras rangendo, as grades da janela gritando porque estão sendo agarradas. As tábuas gemendo por socorro e as nuvens do alto se fechando para não vê-los assim, em casa.
Eles são todos desleais, me olham como se o invasor fosse eu, não respeitam meus gritos, não temem meus olhares, eles me calam.
Eles me cansam.