sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Cartas na mesa

À sua frente sentada Olívia.
Vá embora, Olívia! Mulher insana, não perdeu nada aqui.
Pele negra de lustro, olhos esbugalhados de gula, boca aberta de sede.
Toda caçadora pronta, prestes a saltar e devorar o futuro aberto e colorido que a tenta sobre a mesa.
Afinal, que tu queres aí, mulher?
Eu já disse, vá embora, porque a cartomante é charlatã e tu não tens futuro.
O que exatamente, Olívia, esperas que ela te diga? Pensa comigo, um pouquinho só.
Se a mulher predissesse um amor no teu caminho, o que farias deste amor?
Talvez ele nem viesse, então estarias condenada a viver uma espera vã. E se, por descuido, ela estivesse certa? Aí tu lembrarias daquela carta com o desenho de um moço de cabelo escuro. Mais novo, bem moço, como ela mesma disse!
Reponda: Tu larga teu marido e foge com ele? Deixa aqueles dois ranhentos esperando em casa? Dá adeus ao teu lar nem sempre doce?
Ah, larga, é? Então me mostra, onde está a caixinha alabastrina em que escondeste tua coragem?
Ela previu dinheiro, muito ouro, apontando a unha vermelha para as rodinhas amarelas da carta. Tu gostas de amarelo, né? Cor tão pobre, Olívia.
Nisso ela está certa, tu poderias ganhar mais, um salário descente, plano de saúde, vale transporte até. Mas só depois de deixar o escritório do Almeidinha.
Está disposta ao risco?
Não está, Olívia. Porque tu és fraca, como eu.
E se ela apontasse doença, em uma das lâminas, a mais afiada.
Tu procura um médico, faz exame completo, previne a tempo?
Não, previne nada. Se a doença vier, será uma coisa a mais para reclamar, tola Olívia.
Vá embora, que assim poupamos teu tempo e o meu.
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PS¹: Texto antigo, mas acredito que inédito por aqui.
PS²: Tenho imunidade poética para assassinar a gramática (ou seja, não usem esse texto na escola como exemplo de conjugação dos verbos na segunda pessoa do singular).

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Garras

As unhas grandes já acumulam a sujeira das eras, mas ele gosta. Gosta porque agora já poupa a ponta dos dedos. Apenas as unhas compridas interagem com o mundo. Ele não quer dar sua maciez ao mundo, ele quer arranhá-lo, com sua dureza frouxa e seus ares de bicho com garras.

Tamborila as unhas na mesa de madeira, apreciando o barulho seco. Raspa o tampo, chiando firme, sentido mais as reverberações do que os toques. Nos plásticos finos ele deixa marcas, descascando os livros. Risca a perna e vê uma linha branca se firmar na carne. A pele arde e ele sopra.

Na máquina de escrever, as garras tamborilam doloridas, porque é preciso muita força para elevar o pino de letra, gravando a fita forte no papel desvirginado. Quase se descolam, desprendem, e ele força mais, em êxtase puríssimo esperando quebrá-las uma a uma. Aguardando a vertigem do sangue, os redemoinhos que sempre dão os pingos rubros na água da pia.

Imagina, então, as torturas chinesas. As unhas sendo arrancadas, por alicates, um gozo. Porque ele quer ser agredido, de qualquer forma. Acorda no meio da noite querendo dor, lunático que é. Amanhece torcendo por um desastre, qualquer um, que o jogue na confortável posição de vítima. Porque ele quer um mundo algoz, quer ser mártir, penitente, quer é escorrer em sangue quente.

Engraçado, pensa de repente, como as unhas dos mindinhos crescem mais depressa. Lembra então do asco que sente pelos homens de unhas longas, especialmente as do mindinho. Ele sabe, usam para coçar o ouvido. Unhas pretas de cera podre. Homens felizes, não sabem o quanto são miseráveis. Ele sabe. E corta as unhas, então.

Arrumação

Segundo os adeptos do Feng Shui, desordem no quarto gera desordem na vida. Concordo. Mas não se trata de uma questão energética, a coisa é mais simples, é uma questão de lógica. Se uma pessoa não é capaz de manter em ordem alguns metros quadrados, imagine a vida, que é toda redonda.

Eu estou incluído aí, nesses desordeiros. Minha vida é uma bagunça. Sim, e meu quarto também. Eu tenho a mania das velhas: guardo tudo. E é dificílimo eu conseguir me desfazer das coisas. Eu fico grudado nas lembranças dos papéis de bala. Crio afinco pelos santos de gesso que quebrei. Fico preso ao cheiro de perfumes que já viraram álcool. Eu guardo cadernos sem folhas,. carrinhos sem rodas, pilhas sem carga, meias sem par, caixas sem sapato, jogos sem peças, ursos sem olhos... A lista é infinita, meu Deus.

E a minha vida segue assim: abarrotada de coisas inúteis, estagnada por falta de espaço, entulhada mesmo. Mas hoje, hoje enlouqueci. Panos e vassouras, sacolas e lixeiras, gavetas e prateleiras. Coloquei ordem o quarto todo. Sim, o quarto, porque organizar a vida me exige demais.


quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Era uma casa...

Tenho inveja, porque na sua casa ninguém entra, então ela é tão Sua. Essencialmente Sua. Ela te pertence, como poucas coisas jamais te pertencerão. Na minha todos entram, pés enlutados, trazendo a poeira da rua. E há guardas, e há armadilhas, e há alarmes, tudo só para casa não ser minha demais.

Na minha sala todos sentam, conversam alegres, das próprias vidas. Quase esqueço que não sou um móvel. Uma poltrona estranha e decorativa sobre a qual ninguém sentou. Eles bebem chá e deixam marcas sobre o tampo da mesa. Marcas que eu não posso tirar. Nem com lustra móveis, nem com cera ou com verniz. A sala nem mais é minha, é deles.

E é para eles que eu penduro as cortinas bonitas, tiro os pêlos do tapete, arrumo as almofadas no sofá. É pra os outros que eu me fervo todo, junto às folhas de laranjeira, que depois entronarão com o chá. Quando vão embora me deixam as migalhas de bolo, os farelos de pão, a terra das botas. Os restos, enfim. E eu quase me alegro com isso. Satisfeito que sou em chafurdar o lixo alheio.

Se minha casa fosse minha, minha e só, então eu... Ah, que besteira... Eu não saberia o que fazer com a imensidão de uma sala sequer que me pertencesse. Mas a sua casa é tão bonita, e tão Sua, desde a escuridão da noite até o findar do dia. Sabe... Às vezes eu venho aqui escondido, só pra fingir que a sua casa ainda é também a minha.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Tecidos de TCC

De TCC¹ não se morre. Está certo. Não se morre, mas se enlouquece. Talvez não todos, mas é que tenho em mim essa predisposição a ensandecer. Não preciso de muito para me roubar o pingo de juízo. Minha cabeça dá duas voltas, rodopia e então vira essa festa de demônio alado.

É que estou com pontas soltas de todos lados, costuras somente alinhavadas, pontos mantidos com alfinetes, peças de tecido ainda por cortar, moldes por fazer e Deus, vocês já querem o vestido pronto? Não me venham dizer que o baile é amanhã!

Sim, eu sei, eu sei. Se tivesse feito a costura antes... Se tivesse arrematado enquanto cosia... Mas agora é tarde. E é porque sou assim mesmo, meio bagunçado e aleatório e artífice e amador. Demoro para encontrar a escrita certa, o tom exato, a combinação perfeita para estes botões tão pálidos.

É porque quando não estou apaixonado eu me espeto os dedos, enonzo a linha, arrebento o ilhós. Minha tessitura, mesmo acadêmica, precisa advir de crime passional. Não consigo pensar no que fazer destes tantos retalhos. Como compor essa peça de pano? Como transformar tecido em vestido? Como? Como? Como?

Ah, mais um pouco e me canso. Clarice que vá ao baile pelada!

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1 - TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), ou Monografia.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Papéis... Papéis...

Então agora, para receber um papel que diz que estudei, preciso entregar (de novo) cópias de todos meus outros papéis? Sim. E já estou fora do prazo. Preciso entregar a prova de que fui incluído no Registro Geral e documento que ateste minha inclusão no Cadastro de Pessoa Física. Preciso provar que já fui registrado, cadastrado, catalogado e numerado. Ah, e preciso comprovar também que o exército não me quis e que voto desde os 18 anos. A barbárie maior é ainda provar que nasci.

Mas não é lógico? Se tive que me registrar, cadastrar, dispensar, votar, pois não é lógico que nasci primeiro? Sim, porque em cada fase tive que provar de novo, com papel escrito errado (nele consta Ibirubá, onde deveria estar Passo Fundo) que algum dia fui parido.

I was born, tá legal? Juro! É que para mim, papéis não tem importância, a menos que tragam escrito algum poema ou história. Então extravio meus documentos e nunca, nunquinha (digo isso com orgulho) encontrei minha certidão de nascimento sem antes revirar a casa toda.

Eu sei, sei sim, onde está aquele poema que escrevi na 7ª série, na última folha riscada do caderno de matemática. Mas a certidão não faço idéia de onde se escondeu desta vez. E preciso dela com urgência, caso contrário não me dão o outro papel, ao qual devo confessar que também não dou importância.

Um diploma (ou a falta de) não atesta nada do que passei, nada do que aprendi, nada do que me inspirei, nada do que vivi. O fascínio do que conheci está documentado nos meus cadernos rotos, está gravado no brilho de neurônios gastos e isso ninguém me tira (com ou sem papel).

Quando eu for Rei, farei a abolição de todos papéis. Chega de documentos com números infinitos para provar que nascemos, estudamos, casamos ou morremos (sim, porque um dia terão que fazer outro documento atestando que não sou mais nascido). A palavra de um homem deve bastar, ou então que cada um escreva um poema dizendo quem é, o carregue no bolso e que isso sirva por todos os outros papéis. Tenho dito! Agora... Bom, agora vou voltar à busca da minha certidão. Santo Antônio que me ajude de uma vez.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Me dê motivo

Me dêem motivos para ficar, porque os para ir embora eu mesmo invento. Nem as flores se dão de graça. O sol precisa aquecê-las, a água precisa molhá-las. Então porque eu, logo eu, que nem sei repartir, preciso me doar inteiro por puro e grato prazer? Não. Eu quero mais, eu quero motivos.

Eu não estou aqui para atravessar os dias, para respirar da vida, para secar ao sol. Eu estou aqui porque. Por quê? Não, não entendam mal como sempre fazem. Eu não estou querendo ir. Pelo contrário, quero desesperadamente ficar aqui. Mas como posso ficar se começo a sentir que lá fora é que se vive? Como posso ficar se no lugar de sol minhas folhas estendem-se na escuridão? Como posso ficar se ao invés de chuva, minhas raízes chafurdam nas grotas da terra seca?

Motivos. Vamos, me dêem motivos! Digam bem alto porque vocês me merecem. Porque eu não vejo vocês fazendo nada para que eu fique. Não vejo em quê tentam melhorar para mim. Não vejo olhos gratos por eu estar por perto.

Motivos! Eu quero motivos que me impeçam de fugir solene durante a noite. Razões para permanecer afundado onde estou. De graça, nem as flores! Me mostrem agora as vantagens de ficar, porque senão eu vou. Vou de vagar, vou sorrateiro, cabeça baixa e pés descalços...

Provem. Provem por pelo menos um dia que ainda me querem. Provem que não estou aqui por comodismo, estou por opção. Me convençam disso, porque eu preciso desesperadamente ficar. Mas sem motivos... está ficando impossível.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O miserável

É tudo tão igual. A janela mostra a mesma triste luz do fim de tarde. Os pássaros dão os mesmos trinados claros de quando quase dormem. As cortinas balançam a mesma leveza de um novo vento bom. A porta ainda bate, as sombras se alongam, as palavras se formam.

De que eu sinto falta, então? Porque nem tudo é igual. Meu texto, quando leio, é diferente. É fraco, é pobre, é indigno. A experiência, ao invés de acrescentar, me oprimiu sem motivo. Perdi a inocência? Nunca tive. Foi antes uma graça de contar, um balanço de encantar, uma inspiração de envolver.

Porque antes meu texto era perfume denso. Vinha manso, rodeava calmo, invadia sereno e dominava lento. Quando menos se esperava, zapt. Fisgava e não dava chance de escapar. Eu era o sedutor, caçador, devorava vítimas em teias de palavras.

E agora? Agora sou mendigo antigo. Guardo avarento textos velhos, papéis rasgados, tintas desperdiçadas em contos podres. Amarfanho páginas amarelas, inéditas, fadadas ao fracasso desde nascidas. Pedinte que sou, reviro lixo atrás de inspiração usada e disputo com os ratos qualquer criatividade suja.

Antes eu dizia com orgulho, agora é com sorriso débil, com a vergonha imortal dos miseráveis: O que quero ser? Escritor... Junto com a palavra vem uma asquerosa modéstia, um traço de quem reconhece a própria sandice. A tarde ainda é dourada, então ela não mudou. Mas o que eu fiz de mim?