sexta-feira, 24 de abril de 2009

Simplicidade

"Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba. E que ninguém a tente complicar, porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer."

Já não é possível viver assim, entremeio a soberba e o luxo. Mas por que será que a simplicidade me é impossível. Eu a admiro enquanto beleza alheia, mas não a consigo conquistar. Será herança do berço roubado?
Explico: Eu cansei de tanto luxo antiquê, béle époquê e vintagê deste blog.
Minha escrita está indo por caminhos que não podem ser tão coloridos e adornados. Minha escrita está nua e o quarto é rico demais. Não quero. Eu a quero em folha branca e letra preta. Mas como, por Deus, se meu vício é delicadear? Se pego a folha logo imprimo um floreio, se pego a letra, logo acrescento uma graça, se me pego em branco, já me tinjo de magenta. Sou impossível, como sou impossível.
Eu quero a simplicidade divina, quero palco de pau. Mas mal me distraio de mim e a cortina que peguei é de veludo encarnado. Assim não me posso mais. Talvez a isso chamem estilo pessoal, mas como livrar-me deste meu? Alguém o quer todo dado?
Porque para mim até o simples vai se tornando complicado, adepto de arabescos que sou. E isso na vida, na arte, na mente. Parece que nada do que pode ser explicado me atrai muita coisa. Nada do que pode ser compreendido detém minha atenção.
Agora eu queria algo assim: simples, elegante, sereno, clean, nu. Mas e consigo? Não. A criação é uma tentação, é um pecado e eu peco pelo excesso. Nada do que faço pode ser sem entrelinhas, nada pode ser terminado sem mais um toque.
Não sei não, não, não sei. De repente esta minha ânsia em sempre enfeitar mais esconda o medo de jamais criar de novo. Esconda a vontade de tornar cada trabalho eterno...
Lá vou eu complicar mais o que queria explicar simples.
Cansei. Por hoje, nem complicado, nem simples.
Uma noite de folga para o desenhista, um banho para o palhaço, uma água para o pintor, uma noite para o poeta e uma cama para o artista.

sábado, 18 de abril de 2009

À Felicidade Clandestina

"Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."

A mim também, querida, entenda, a felicidade foi sempre clandestina. Quando ela vinha, contiguamente fugida, arrombava a porta e entrava ligeira. Quando eu era feliz, meu Deus, era um susto. Depois de ela entrar, primeiro trancava a porta com móveis, cerrava as cortinas e ouvia se não vinha o barulho. A felicidade acalmada, por estar quase segura, só então se atirava aos meus braços com faina de mãe apartada ou amante longínqua. Ela tinha nos olhos sempre umas coisas que não ousava dizer, que eu só adivinhava, passando os dedos nas olheiras e secando lágrimas silentes. “Esta vez pode ser a última”, ela não-dizia.
De minha parte, sempre tão seco, eu a recebia com sofreguidão. Eu a recebia como se fosse uma criança daquelas da televisão: africana, pobre, preta, seca de tudo. Como um menino da África que, de repente, encontrasse no faminto deserto uma manga madura. Eu me atravaca todo em dentes e gula àquelas gotinhas de felicidade. Nem me importava o sabor ou o motivo. O que eu queria era lambuzar-me inteiro de ser feliz. Perdia poses e composturas, sozinho com uma felicidade só minha e fugitiva, eu deixava lambuzar as mãos, melar a boca, enfiava o caroço inteiro na boca.
Assim eram nossos encontros, ávidos e intensos, tanto quanto rápidos. Logo Ele vinha. Arrobava novamente a porta, invadia com sua presença o quartinho de aluguel e levava-a embora, pelos cabelos, sempre pra longe. Deus é o marido da felicidade, um marido ciumento demais.
Eis que desta vez ela avisara que vinha sob a forma de livros. Uns livros que uma boa amiga pegaria emprestados em uma biblioteca de outra cidade. Era boa e era amiga, só por isso não posso dizer que fui submetido a igual tortura chinesa. Era, bem o sabia, levemente distraída. Levemente, porque sua distração não chegava a gerar perigo. Era leve, mariposa avoada que quando vê luz nada pensa de mais.
Fato é que a cada noite ela esquecia dos livros. Passasse eu no dia seguinte, que talvez ela os teria.
Não foi maldade, nem crueldade. Ela só não sabia. Ela não sabia e eu por medo de ser fraco, infantil, descuidado e bobo, não avisei. Se eu houvesse avisado que destes três livros me dependia uma felicidade clandestina. Ah, ela os teria lembrado. Ou não, mariposa que era.
Mas um dia veio o sábado. Era manhã e nem bem cedinho era, eu já estava lá, esperando de sorriso armado. Ela puxou os livros com uma displicência de quem carrega brilhantes por cacos de vidro. Eu os avistei de longe e um leve disparinho se acusou no meu coração sonolento. Eram três, os mais coloridos e mais grossos que eu ousara imaginar. Ela passou para minhas mãos, que tremelicas farejaram as folhas. Olhei capas, contracapas, fotos, orelhas, letras, títulos, índices. Eu os comeria inteiros, ainda ali.
A mariposa lépida ainda acrescentou: Podes ficar pelo tempo que quiseres. O tempo que eu quiser? Ela renovaria quando necessário. Eram meus pelo tempo que eu quisesse? Metafórico, eu sei, mas por mim seriam meus pela eternidade, até depois da morte, todos os livros cobrindo meu caixão. Não seriam pelo tempo que eu quisesse, mas agora isso não importava.
Guardei. Guardei na minha pasta de professor, com cuidado extremo. Guardei para disfarçar a afobação sentida. Agradeci sorridente demais, e me fui. Fui aos saltinhos, pelo menos em minha mente. Mal sai dali, abri a pasta e os tirei ao sol. Mostrei à rua: Os livros de Clarice, Dona Rua. Os livros que eu queria meus.
Os braços eram longos demais para abraçá-los todos. Sobravam mãos. Eu já era um homem, e um homem grande que podia carregá-los todos na mesma mão. Mas não queria. Eu queria sentir o teu calor ao peito. Peguei com as duas mãos e os coloquei em frente ao peito, aqueciam-no, como no conto.
Cheguei em casa e os levei à cama. Por qual começar? Como decidir qual felicidade é mais importante? Qual é mais imediata? Deus, como rejeitar a uma em detrimento das outras?
Naquele dia acho que não comi, e se comi foi sem fome, como que para cumprir o ritual do meio-dia. Se dormi foi sem sono, pra respeitar à meia noite.
Era sábado e que graça tinha aquele dia abençoado. Era sábado e o sábado era meu. Só meu. Foi então que, pela primeira vez, o dia todo, trancado no quarto, revirado na cama, entreguei-me a ela sem pressa.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Poesia Concreta


quinta-feira, 9 de abril de 2009

Chamada perdida

"Vou desligar, não me ligue mais. A obrigação da tua voz é estar aqui."

Primeiro você olha no celular, mas não tem nenhuma chamada perdida. Daí você espera ele ligar. Por que você não pode ligar para ele? Porque é ele quem deve ligar para provar que pensou em você.
Ele não liga.
Então, você espera mais um pouco, que é para ter certeza de que ele não vai ligar. Olha de novo no celular, de repente pode estar com defeito. Minutos depois, você já se põe a inventar desculpas pela falta da chamada. Talvez ele esteja em uma reunião, quem sabe sofreu um acidente, quiçá tenha sido abduzido por extraterrestres.
Você tenta ligar de um outro número para o seu celular, só para garantir que não está com defeito. A música toca. Ok, o aparelho está em perfeitas condições de receber chamadas. Aí então você pensa “vou ir tomar um banho, quem sabe esqueço”. Não esquece, porque você já está sem roupa quando percebe que deixou o celular no quarto. Volta buscar porque ele pode querer ligar justo nesta hora.
O banho termina e você seca os cabelos demoradamente.
E se o telefone tocou e você não ouviu por causa do barulho do secador? Verifica as ligações perdidas, nenhuma.
“Vou ligar”, você pensa. Então manda o orgulho às cucuias e procura o nome dele na agenda.
Primeiro toque.
“O que vou dizer?” No mínimo deve estar na casa daquele amigo. Sim, porque ele precisa ir na casa do amigo TODOS os dias, sempre com uma desculpa diferente.
Segundo toque.
Se fosse você, ah se fosse você a ir TODOS os dias (exceto domingos, é verdade), na casa de uma amiga, meu Deus, o barraco estaria feito.
Terceiro toque.
Será que ele ainda não entendeu que você se sente em segundo plano quando ele faz isso? Se ele estiver lá, você desliga na cara.
Quarto toque.
E se não estiver? Por que ele ainda não ligou?
Você começa a pensar que não deveria ter feito isso.
Quinto toque.
Será que o celular dele está no silencioso?
Ou quem sabe perdeu, ou foi roubado...
Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa de mensagens...
Você desliga o telefone. Ele não atendeu. Você não acredita, mas ele não atendeu.
O sangue ferve, desferve e nada do celular tocar de volta. Você não vai insistir, afinal, onde está sua dignidade?
Mas... e se de repente se você mandasse uma mensagem... Mas que mensagem? “Onde você está?” Será que transmite bem nas entrelinhas o que você está sentindo? Não, nem chega perto. Que tal “Você ainda lembra que tem namorada?” Muito duro. Ele pode se magoar.
Ele pode se magoar? E você? Como você está se sentindo?
Respire fundo agora. Talvez você esteja fazendo tempestade em copo d’água.
Tudo bem que ele ainda não deu sinais de vida. Tudo bem que já tenham se passado mais de duas horas. Tudo bem que no mínimo está com o mesmo amigo de SEMPRE. Tudo bem que tenha esquecido que você existe e provavelmente nem vá lembrar até ver sua ligação. São só mais de duas horas em que você não consegue pensar em outra coisa. Duas horas de angústia e aflição. O motivo é besta, não? Não quando é com você que isso acontece.
Besta, é assim que ele diria se soubesse do que você sente agora. Ele diria que sua atitude é besta, infantil, imatura e só reflete sua insegurança.
Mas e se fosse o contrário?
Você lembra das vezes em que ele telefonou e você estava na casa ou no trabalho daquela sua amiga? Você lembra o tom de reprovação? Você lembra da cara amarrada no outro dia?
Então... Se fosse o contrário?
Se fosse ele a estar se sentindo sempre de lado? Se fosse ele tentando ligar para alguém que não atende? E se fosse ele, meu Deus?
Talvez precise ser.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Tubérculos

“Antes disso era proibido consumir batata, cenoura, beterraba, tudo que vinha de debaixo da terra. Estes eram considerados alimentos do demônio.”

Se pudesse te falar, Madrinha, diria do quanto sou uma beterraba.
Porque embora o viço triste de minhas folhas, debaixo da terra tenho a explosão de um roxo inusitado. Os caules meus expostos ao céu, mas as raízes, ah as essências, estas escondo entrançadas na terra, nas profundas, de onde só os demônios podem espiar. Deus não me vê, porque os demônios não deixam.
É tanto talento guardado, escondido, vibrando açúcares e saladas, compotas e tinturas, que jamais poderias vislumbrar de olho nu.
Meu essencial eu escondo, eu dedico e devoto à minha legião. Fiquem com as folhas que murcham neste sol que tudo cega. Meus tubérculos mais ricos as grotas da terra ninam.
Para quem me cerca sou mais um, mais folhas no esparramar do canteiro, mais ervas a estragarem o jardim. Para quem me vê por aqui, posso ter um talento que beira a único.
Assim, quem deveria me chover apoio, renega meu nome. Quem não me deve nenhum sussurro, bate palmas à minha inusitada presença púrpura.