sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Feliz Ano Novo. Mas de novo?

Você conhece Sísifo? Não, não é uma DST, é um personagem da mitologia grega. Um pobre diabo condenado a carregar uma pedra de mármore montanha acima por toda a eternidade. Tão logo o nosso herói chega ao topo, a pedra desaba e ele precisa começar tudo outra vez.

Você conhece alguém que ficaria feliz com um destino desse? Não?! Então está feliz por quê? Sim, meu amigo, estamos prestes a alcançar o cume, mas, devo dizer, à meia-noite a pedra rola morro abaixo: ano novo. De novo.

Você já passou por isso ano passado, lembra? E o que se seguiu? Outro carnaval, outra páscoa, outros feriados, outras segundas-feiras, outros janeiros, fevereiros e marços, outro aniversário, outro dezembro, outro natal, outro ano novo... De novo.

E aí está você, cheio de esperanças e promessas, escolhendo a cor da cueca/calcinha, separando os sete grãos de uva, se preparando pras sete ondas... Tudo igual – ou com rápida variação – ao ano passado. E serve prá? Você acha mesmo que Deus/ Zeus/ As Forças Cósmicas/ O Unicórnio Cor-de-rosa/ O Universo/ Alá/ Bob Esponja/ Pocahontas/ ET Bilu estão prestes a enviar energias por debaixo da sua roupa e anotar em uma caderneta o que devem enviar para você esse ano, se dinheiro, amor ou paz, de acordo com uma infalível simpatia cromática? Ou quem sabe eles estão conferido se, meio bêbado, você não engoliu oito uvas ao invés de sete. Aí 2011 vai ser pane total...

Acho que não. Tanta preparação é só para a pedra rolar. Eles espocam fogos para não ouvirmos o barulho do mármore nos cascalhos. Tanto ritual é só pra você descer de novo em janeiro e arrastar o peso até dezembro. E então... ano novo. De novo.

Não entendam mal. Eu quero ano novo, esperança nova, oportunidades novas... Mas não queria o mesmo trabalho de fazer tudo de novo, ritualisticamente. Não queria essas datas prontas, já vermelhas de gastas no meu calendário. Não queria outro janeiro engatado em outro fevereiro, enfileirado a outro março. Não queria mais dias dos pais, das crianças, das mães... Chega de Tiradentes e da Proclamação da República. Outra vez tudo isso, feito disco arranhado? Outra vez. Mais um. Bis. De novo.

Meia-noite. Mal enxugamos o suor da testa aflita e já vemos a pedra rolando pra baixo. De novo.

Em todo caso, desejo o mesmo que já te desejaram no ano passado: Feliz Ano Novo.
E aguarde, no fim do ano que vem eu reclamo mais.



PS: Agradeço aos olhos que me leram. Obrigado pela parceria desse ano, tuas retinas lisonjearam meus traços pretos. Espero te ver aqui em 2011. De novo.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Vem II

Vem, tirando os calçados para que teus pés pisem veludos nessas tábuas bem duras. Vem, passo por passo com olhos felinos na escuridão dessa casa noturna. Vem, mansa e tenra, morna e lânguida, esfregando o corpo de cio pelas paredes tão nuas.

Vem.

Vem quando todos já dormem e ressoam, embalados pela serenata dos músicos mosquitos e do maestro grilo. Vem, de respiração trazida na ponta dos dedos, mas vem.

Vem, abrindo a porta ponto por ponto para a fechadura não ranger – mais que o necessário. Vem, cobrindo minha boca com os dedos, depois com um beijo e em seguida com a língua, vem.

Vem!


Vem.

Vem você – a meu convite – entrar pela janela dela, feito sopro de um olho só. Vem você, ver em preto e branco o fim daquela amizade colorida. Vem ver ela abrir os armários e chorar escondida. Vem ver ela juntar roupas, cartas, perfumes, flores, fotos e fitas.

Vem ver ela colocar tudo nas sacolas de plástico e ir dar dois nós. Vem ver ela passar a mão na testa suada e desabar um pouco mais fundo. Vem você. Vem depressa ver.

Vem ver ela rasgar as cartas, os cartões, os guardanapos, vem ver ela vazar a tinta das canetas escritas. Vem ligeiro, senão não sobra nada.

Vem ver ela colocar tudo na lixeira da esquina. Tudo mais uma caixa comprida. Vem você, vem ver que engraçado ela entrar dentro da caixa. Metade do corpo pra fora, esperando o caminhão vir buscar.

Vem, vem ver e também ouvir. Ouvir ela dizer para nós – no ar, que queria se livrar de tudo que era dele. E nada mais dele do que ela.

Vem, corre agora, vem ver o caminhão verde chegando, o lixeiro de trás gritando, o motorista parando, de quando em quando. Vem você, depressa ver.

O caminhão pára, entre ela e nós. Barulho de sacolas, trituradores ligados, não dá pra ver.

O caminhão sai.

Na esquina só sobrou ela. Ainda dentro da caixa.

Pronto, agora pode voltar. Você já viu o que eu queria mostrar.


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A um passarinho

(por Vinicius de Moraes)

Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
Se é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis.

Deixa-te de histórias
Some-te daqui!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Entre cacos

É. Então é assim. Ontem você quebrou o caule das flores, hoje um copo, amanhã será um vaso vermelho. E você não conserta as coisas. Nunca. Passado um tempo, você empilha elas sobre a mesa e finge que estão como sempre estiveram. Como sempre deveriam estar.

Na mesa (quebrada) as flores (partidas) apodrecem no vaso (trincado). E você sorri, me abraçando como se tudo estivesse bem. Como se ruínas fossem belezas ainda frescas.

Não são.

Eu vejo os vincos. Eu me corto nos cacos. Eu sei dos armários abarrotados de louça partida. Dos baús repletos de roupas rasgadas. Fiapos de cortina não cobrem o sol, meu amor.

É. Então é bem assim. Um dia você vai perceber que a única coisa inteira na casa toda é o espelho. Mas, se o espelho está inteiro, minha querida, então somos nós que estamos partidos.


sábado, 4 de dezembro de 2010

Amanhã é 23


sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Tattoo

Eu olho para essa minha mão esquerda e ela se constrange da sua nudez, tanto assim se apegou à idéia de ser marcada. Eu, baixinho, digo a ela que aproveite. É seu último dia livre. É seu último dia limpa. É seu último dia sustentando apenas a pele e a leveza de uma penugem dourada.

Amanhã você será marcada. E tudo muda, então. Amanhã, minha querida, pedirei desculpas pela dor que passarás. Apesar disso, verei extasiado, entre tuas lágrimas de sangue, brotar em linhas negras teu símbolo eterno. Depois de amanhã nunca mais serás só uma mão. Serás signo, serás tela, serás ícone, serás mais minha.

É estranho pensar nisso: última vez na vida que vejo minha mão assim, pura. Mas não há nada que eu queira mais fazer, pra marcar muitas coisas em mim. Porque embora por fora eu esteja incólume, por dentro eu já tenho tatuagens demais. Está só na hora de uma delas vir à tona.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Um amor conquistado

(Clarice Lispector)

"[...] Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: "mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?" Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas: "que tenho afinal? que me falta? sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia? que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço? [...]"

sábado, 20 de novembro de 2010

Vórtice

Ontem tive uma crise do que, por falta de definição melhor, chamarei de loucura. O resultado disso se amontoa em seis páginas manuscritas em tinta escarlate, todas produzidas em um banco de praça.

Não vou publicar tudo porque seria excessivo e desnecessário. Além disso, fazê-lo seria invocar para mim uma internação compulsória, coisa que não preciso por hora. Apesar desses avisos e ressalvas, seguem alguns trechos, frases soltas. Se não as entender, não pense que isso é devido ao caráter fragmentário da publicação. Tampoco alguém entenderia se eu publicasse aqui o texto inteiro.

“Eu não te entendo-me. E isso me dá medo.”

[...]

“Chorei copiosamente – como bem se diz – embora umas poucas lágrimas secas. E aí eu quis mesmo entender: eu choro escondido por vergonha ou pelo intenso medo de ser consolado? Eu não sei. Chorei num banco escondido, nos muitos lugares de se esconder choro na UPF. Depois tive vontade de ser profético, poético e um pouco vândalo e escrever assim: ‘V. Linné chorou aqui’. Não escrevi.”

[...]

“Peguei o ônibus extasiado, tomado do meu pior torpor ruim. De perigosamente distraído desci errado e fui parar numa praça, longe de onde eu queria.”

[...]

“Devo dizer que Passo Fundo tem praças boas de se chorar enquanto se espera uma tempestade”

[...]

“Foi nesse momento que tive medo. Tive, porque não me conheço, só me adivinho. E, adivinhando mesmo, me aterrorizo. Sim, porque naquele atravessar de ruas eu era capaz de seguir para os becos da nunca mais saída. Eu era capaz, também, de me jogar fatal em frente a um carro qualquer, desde que branco.”

[...]

“Os fiéis estavam de bocas escancaradas, gritando os seus ‘hinos de glória’. Nas escadarias da igreja, uma bugra de tetas enormes postas pra fora, dando seu rico leite a um bugrinho de colo. Na calçada um velho sujo vinha passando e escarrou grosso no mármore escuro. E eu os invejei a todos. Aos fiéis por terem o Deus. Ao bugrinho por ter um leite que eu mesmo não tive. E ao velho sujo – principalmente ao velho sujo . Ele é o dono do mundo. Afinal, não se pode cuspir no que não nos pertence..”

[...]

“Eu queria letras nas quais eu pudesse despejar o sumo grosso dessa minha vertigem”

[...]

“Bolas de isopor. Bolas coloridas de vermelho e prata, tão surreais, penduradas no ar... Bolas? Eu quase quis tocá-las, como criança faria, mas não pude. Senti que elas se desfariam, ou me desfaria eu”

[...]

“Por isso essas páginas, porque só escrever me salvaria. Porque escrever eu conheço. Escrevendo eu me sei, eu me aceito, eu quase me entendo. Escrever é antídoto.”

[...]

“Voltei à mesma praça. À missa no fim. Ao bugrinho vomitado. Ao cuspe já ceco.”

[...]

"Às vezes o motivo é tão pequeno... mas se morreria por ele, do mesmo jeito."

[...]

“Escrevi com dor e libertação. Escrevi até não poder e um pouco além. Escrevi me psicografando. Escrevi enquanto o calor virava frio morto. Escrevi alheio aos que passavam e me viam, despudorado, em pecado de mortal salvação. Escrevi louco e só. Escrevi. E a tempestade não veio.”

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ira

À Ághata, com amor.

Às vezes a raiva é tanta que não consigo moldá-la em palavras. Sejam longas ou curtas, impossível sublimar nelas a besta-fera sentida. Não é raiva de se escrever pomposa. É ira de grito transfigurador, é sede de morder a carne e estraçalhar com os dentes os vermelhos nervos humanos. É fúria de quebrar os cristais centenários da sala verde, de jogar os livros e com eles estilhaçar vidraças. É ganas de destruir o humano e a máquina, sem julgamentos ou culpas ou distinções. É ódio azul e cego, de matar com as mãos e depois limpar tranqüilo o suor da testa. “Pronto. Foi-se. Acabou”.

É raiva de erguer tempestades cinzas de poeira e raios. É raiva que não permite, sequer, a pujança da chuva. É ira de abrir buracos no estômago, de estourar os tímpanos de pressão, de escurecer os olhos com venda negra. É ódio. É raiva. É fúria. É ira.

É revolta tamanha a ponto de me fazer até, por fim, chorar.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Pós-contemporânea

Eu quero ser tua obra de arte. (moderna).
Que embora não se entenda,
se venda como um bom monte de entulhos bonitos.
E baratos.
Porém por preço bem caro, de mercado.

Quero ser tua obra de arte. (moderna).
Pela pura satisfação da não compreensão
do teu olhar.
Pelo puro gosto sentido da tua boca escancarada
em absoluto, abismada.

Ser tua obra de arte. (moderna).
Ser o não compromisso do belo, do puro e do são.
Ser tua louca, inexplicada, tentadora, enagadora,
Ser, enfim, tua, em vão.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Dane-se.

Dane-se a hora, se é cedo se é tarde
Dane-se a capa, a foto, o encarte
Dane-se o mundo, o raso, o profundo
Dane-se nada,
Dane-se tudo


Digo-te: não importa o esforço, é impossível ler o “Memorial do Convento”, do Saramago, em dois dias. A linguagem é complexa. Não pelas palavras, mas pela maneira portuguesa de formar as frases. Além disso, a pontuação em nada ajuda. Alguns parágrafos imensos são formados sem que neles apareçam pontos, só vírgulas. Não bastasse, os diálogos não tem marcação, estão imbricados no texto, adivinhe se puder de quem são aquelas palavras. Queres mais? Então tente acompanhar o fluxo narrativo. As tramas se entrelaçam umas nas outras e o irrelevante se ata mortalmente com o essencial. Não bastasse, detalhes históricos (para mim sempre chatos) são, justamente, o alvo da minha análise. Da teoria até o nome assusta: Metaficção historiográfica, simplificando: o novo romance histórico.

Apesar de tudo, o livro é riquíssimo. Tem passagens de uma criatividade impagável e é um primor de linguagem, desde que se possa absorvê-la delicadamente. Leitura apressada nenhuma dá conta de um décimo da obra toda. A quem eu estou querendo enganar então?

Não. O que me irrita não é a dificuldade de ler a obra, o que me irrita é o pouco tempo. É não poder ler Saramago como ele merece. É saber que estou fazendo mal e bem porcamente o que me propus a fazer. Em suma, Eu me irrito. O livro, confesso, é fascinante, desde que dele se possa usufruir.

O problema é que preciso dele lido todo para amanhã, e mais as teorias resenhadas. Impossível, e por isso o “dane-se”. Ainda faltam páginas e mais páginas de trama tão densa quanto o aspecto das letras. Ainda faltam teorias que se esconderam em algum lugar desse universo que habito e chamo de quarto. Ainda faltam os meus olhos não estarem incendiados de fogo. Então chega.

Sabe a vontade imensa de sentar e chorar? Ela veio. Veio porque eu não vou conseguir. Veio porque eu sou responsável com o que me comprometo e não vou conseguir. Veio porque eu me cobro demais e não vou conseguir. Não vou conseguir. Não dessa vez.

Eu tenho limites e cheguei a eles. “Faça sempre o possível. O impossível não se pode fazer”, já dizia uma grande mestra minha. Então, por fim, “Dane-se”.

Droga. Dane-se ainda mais por eu saber que vou sair daqui, tomar um banho, dois cafés e continuar tentando dar conta de tudo para amanhã. O que posso dizer? Eu sou assim. Alguém poderia me ensinar a ser fútil, irresponsável e leviano, por favor? Ser desse jeito é meu maior sonho de vida.

Enfim pássaro

Entre uma tontura e uma tortura, 
enfim 
fiz um twitter só pra mim:

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Projetos que não nascem

Biblioteca é um ambiente que me encanta. E é de dentro de uma que eu escrevo agora. Estou na UPF, atormentado como de costume. Nada de questões existenciais ou filosóficas. O problema agora é de ordem prática: meu projeto de Dissertação não se faz sozinho. De jeito nenhum.

Eu retirei livros, xeroquei artigos e revistas, empilhei tudo em um mesmo monte e... voilà. Nada aconteceu. O projeto simplesmente se recusa a brotar daquele emaranhado de folhas fofas. Duas semanas e nem uma mudinha despontou de minha pilha de papéis. Começo a desconfiar que, mais cedo ou mais tarde, vou precisar colocar minhas mãos ali. Penso que será necessário ler as letras miúdas, resenhar, confrontar, citar, analisar e fazer mais desses verbos todos que muito bem se prestam a objetivos específicos.

Qual o problema? Tempo, minto eu. Ando ocupado com o design de álbuns, com as leituras do mestrado, com as escritas, enfim, com todo um mundo tão prático quanto fictício. Sim fictício, imaginário, porque quando me espio no computador me vejo a fazer desnecessidades, eu me surpreendo supérfluo e fútil, a jogar coisas de pensar.

Vontade, falta então? Também não é bem isso. E estou sendo sincero nesse texto. Meu tema me empolga, a pesquisa me instiga, a leitura me fascina. Por que o hiato? Eu não sei. Apreensões, preocupações, macaquinhos no sótão...

Não sei. Mas enquanto tudo se demora, vou ir ao xerox ver se está pronta a cópia de mais um livro, dessa vez vou colocar Austin para fertilizar meus montes. Talvez dali nasça alguma coisa. Tenho até janeiro. Temo até janeiro.

PS: Falando em janeiro, agora talvez eu tenha conseguido um relâmpago de resposta: não consigo fazer porque não estou em cima do prazo. É isso. Eureka. Eu, que só funciono quando pressionado, não consigo me inspirar o suficiente. Liberdade demais sempre me foi problema...

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Compras & Mulheres

No sábado fui a Passo Fundo para reabastecer meu guarda-roupa... Fiquei pensando: mulheres acham mesmo graça nessa coisa de "fazer compras"? Às vezes eu acho que não; acho que toda essa história é só mais uma coisa para refletirmos no quão impossíveis elas são.

Entrar em lojas labirínticas, encarar vendedores sorridentes-porém-hostis, ir a provadores mínimos (nos quais a cortina não fecha totalmente), tirar a roupa num lugar estranho e vestir uma roupa que – tecnicamente – não é sua, descobrir que você subiu um degrau na história do P, M, G e dois no número da calça, ver roupas horrendas e apaixonar-se por uma decente, mas que custa mais do que o seu salário, tentar se esquivar dos outros tantos que decidiram comprar a mesma coisa que você, tentar respirar apesar da vendedora sorridente-porém-hostil ficar sempre tão próxima a ponto de te sufocar, ficar coberto de sacolas e não saber onde colocá-las, derrubar roupas dos cabides, voltar para casa quase sem dinheiro... Ah, Deus, tudo isso é “desestressante” e “terapêutico” para elas?

Se alguém entender a graça, por favor, deixe aqui uma explicação.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Exposto

“De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante. E ele: Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção. Entendi, aceitei, e disse-lhe: Não vou tomar nenhum calmante. E vivi o que era para ser vivido.” (Clarice Lispector)

Outro dia escrevi um texto chamado “Sertralina”, falava ele, de forma sutil, sobre como me sinto quando faço uso dessas drogas antidepressivas. Eu me sinto, realmente, daquele jeito: no fundo de uma piscina. Todos meus sentidos e sentimentos parecem amenizados, como submersos em água funda. Nada me comove muito, nada me fere demais. E é essa, ao que suponho, a intenção das pílulas.

Angustia-me, no entanto, esse “não sentir”. Quando morreu um gato meu, muito querido, eu tomava Fluoxetina. Não chorei. Não expressei nada. Senti muito e rendeu-me esse sentimento metade da minha monografia, escrita com contida fúria, como espécie de vazão/distração.

Eu sou dos que tem pele exposta. Eu sou dos que sentem demais. Tudo em mim é exagero, nada é sutil demais. Por isso as drogas. Elas me mantêm numa normalidade apenas anestésica. Elas fazem com que eu soe apático, portanto, normal. Há no mundo gente assim, sensível em exagero. Gente com os nervos do lado de fora, a quem simplesmente viver gera uma dor insuprimível.

Agora, depois de alguns dias mergulhado em Sertralina, parei com o medicamento. E acontece que hoje tudo deu para me comover. Na vinda para Passo Fundo, vi uma coisa de uma beleza singela e isso foi o suficiente para fazer com que em mim vibrassem cordas insuspeitas. Vi uma lebre marrom correr para um campo de trigo maduro. Imagem idílica, poética, coisa de sonho. Uma lebre de pêlo marrom-avermelhado, orelhas bem arrebitadas e pés enormes. Gorda de satisfação viva, saltitando apressada para se esconder no trigo dourado. No mesmo instante, entrevi, nas minhas ilusões de pesadelo, a lebre ser ceifada e moída toda em cacos de sangue por uma máquina moderna dessas. O trigo há de ser colhido. Os homens precisam farinha. O Pão nosso de cada dia, ainda que nos custe a lebre – talvez gorda de prenhe.

Com custo dissipei tudo isso de mim. Vi outros campos, alguns verdes, outros não. Chegando aqui e esperando outro ônibus, dessa vez para ir à universidade, entrevi um grupo de crianças embarcando em excursão de escola. Entre risos de pura excitação e pais munidos de máquinas digitais, os pequenos embarcavam, travesseiros em punho, rumo à alguma aventura. Ficou em mim latente os sentimentos de ser criança e viajar. Veio ainda uma paternidade apenas adivinhada, um sentimento de precisar ser amado por um pedaço meu. Ana Mel me sorriu da esquina.

Chegado o ônibus e dissipadas as novas emoções, entrou nele uma menina, de quem nem o rosto vi, mas cujo perfume era o mesmíssimo de minha amiga-irmã. Aquela, que foi para os Estados Unidos e a quem eu prometi não ficar triste com isso. Afinal, como eu disse em outro texto aqui, seria egoísmo meu. Essa viagem era o maior sonho dela. Apesar disso, nas despedidas, eu me engasguei inteiro, tamanho choro represado – Sertralina.

Temos nos falado por MSN. Ela prometeu ligar qualquer dia desses. Mas nem toda fala virtual do mundo eu trocaria por um abraço hoje. Livre dos grilhões medicamentosos, aquele simples cheiro no ar me fez as lágrimas brotarem fartas, em um ônibus municipal qualquer. Chorei, contido, porque assim sou; silente, mas chorei. Chorei por lembrar o quanto passamos juntos, chorei por pensar em tudo que ela fez por mim, chorei por sentir uma falta imensa daquela mariposa que voa em volta da luz.

Mas agora chega. É preciso — com ou sem antidepressivos — botar ordem em tudo por aqui. Sorrir à toa e não chorar por nada. É preciso que eu erga meus muros de contenção, represe lágrimas, enrede nervos. É preciso viver, apesar de sentir.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Sentimentos Primavera-verão 2010

Eu, que já gostei das noites e das profundas tempestades, agora me aprazo todo num dócil sol. Eu, que já falei dos sangues e dos cemitérios vãos, agora me consolo numa brisa morna e mansa. Muda-se, com prazer e dor.

Não consigo mais ser soturno e sério e sorumbático. Não consigo sair à rua sem sentir a benção da luz na pele. A tarde é quente e me faz bem. Meu corpo inteiro se umedece numa sombra fresca e isso me regalia inteiro.

Sol, modorra, coloridos, borboletas e até varejas coloridas me encantam. Dois passarinhos espiam meu livro inútil e fofocam trinados entre eles. Que dizem? Já os gatos, tontos de sono, espiam-lhes por entreolhos. Vale então à pena levantar, correr e caçá-los para comê-los? Pois não vale... Fecham os olhos e voltam ao sono bom. Os dois pardaizinhos ciscam sementes de girassol, bicando galhofeiros entre as pedras sujas. E logo são três. Depois quatro.

Há música ao longe, há risos ao longe, há crianças na rua. A via explode e recria minha infância noutros rostos, refaz minhas delicadezas de pequeno noutras vidas amornadas. Hoje viver é bom. Hoje a primavera, com seu calor que autoriza picolés, é boa.

Sangues, cemitérios e igrejas góticas ao luar, hoje não mais me fazem sombra. São figuras feias de uma representação torta. Período bom, mas período morto. Eu quero é a mansidão dessa vida clara, quero me fascinar com os entardeceres de um ouro líquido, quero respirar o ar de uma noite-estrela.

Quero sorrir, até o choro.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Do diário:

Me faz falta sangrar no papel, cortar os dedos nas arestas finas e brancas. É que eu não posso. Eu represento tanto e me censuro mais ainda. Então eu não sangro, eu pingo água da torneira na folha e fico bem feliz com isso. Foi maculada! Foi maculada, ao menos! A água – que triste – evapora. No papel não fica nada, nem de mim, nem em mim.

Mas... se eu fosse sangrar, escreveria o quê? Lamentos? Tormentos? Ventos vazios? Acho que já não sei escrever em vermelho.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Sertralina

Do fundo da piscina, a luz da tarde azul até parece baça. Não é. Eu sei. São meus olhos, ambos cricrilam ao sabor do cloro. A água é gelada, mas a vida já não me dói. Era o ar. O ar é capaz de intoxicar uma vida toda exposta. Eu morreria, eu sei, envenenado pelo ar e suas toxinas de mortal compaixão. Por isso o fundo da piscina. Agora o que me envolve é a água, água de um branco transparente. A água me é boa.

Dentro de mim ainda resta um pouco do infecto ar. Muito pouco. Um ar que teima em me fazer emergir. Um ar que conseguiria, se não fossem as correntes. Eu espero um pouco mais. Eu sei que a água também se pode respirar, mas uma só vez. Eu espero. Apenas imóvel. Talvez em água mais limpa eu visse o céu em sua complexidade azul. Mas o céu é reino do ar. Logo, mau.

Começo a desprender o ar que trago por dentro. Abro a boca. Ele sobe em bolhas que me lembram um pouco estrelas. Lá, na superfície, ele vai espocar, eu sei, contando ao grande ar o sufoco que passou, no fundo d’água. Lá, ele vai dizer assim: “zoloft”.

A água toma o lugar do ar. Com uma liquidez incrível, escorre macia, já não tão gelada e ligeiramente brilhante. À água. A água é boa. A vida é boa. Brindemos, pois.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Criança

Hoje achei ele numa gaveta, o Vinícius, loiro. Os olhos como grandes pontos negros, a boca desenhada desde então, alguma coisa insondável no semblante que parece calmo, indomável, bravo e intenso, tudo ao mesmo tempo. Quantos anos ele tinha? Em que coisas acreditava? Como ele imaginava o Vinícius este, o que escreve agora, o moreno?

Eu não sei. Eu não o conheci. Ele não conheceu. Nós não nos tocamos, nunca.


segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Tarde Pobre

A tarde toda se esparrama em tafetás azuis e broderis de verde-mar. Vocês sabem, o céu, o arvoredo, os pássaros, essas coisas. Toda ela implora para ser fotografada, pintada, descrita, escrita, registrada, rascunhada, eternizada. O vento é suave para ninguém, ainda assim, bate na porta, como se não pudesse entrar pelas frestas. O ar chama, as borboletas explodem às flores de um colorido lascivo, púrpura.

O sol esquenta na medida exata, desenha sombras na grama crescida. O cheiro de tudo é verde e o gosto de tudo é novo. As nuvenzinhas voejam frescas, como recém-criadas. Os cachorros bocejam lentos, plenos de modorra. Libélulas ensaiam os primeiros cantos, ainda em desalinho. Um sapo qualquer se infla de ar e o solta tenro, piscando um olho e o outro depois. Os gatos se esparramam debaixo das laranjeiras e as formigas, em filas descompostas, passam ao lado deles, ocupadas com seus pontos verdes.

A folha que se solta de um galho não cai sem antes fazer no ar o seu ballet.A poeira se deixa varrer lenta, fazendo inveja às pedrarias. As abelhas zunem em uníssono, bêbadas de néctar doce. Enfim, tudo vibra, tudo vive, tudo voa. E o menino sente-se pleno trancado em um quarto - ainda que azul, vendo o que disse Freud sobre a natureza - ainda que humana.

domingo, 10 de outubro de 2010

Tema

Diante do novo eu estremeço. 
E assim adio a inexplicável coisa de viver. Vou empurrando tudo adiante, tudo adiante, como se o adiante não chegasse, relógio em punho, tal coelho desvairado de uma Alice tresloucada. Atrasado. Atrasado. Atrasado. Eu sou sempre assim, cumpro os prazos à beira das noites não dormidas. Crio desculpas, urgências insignificantíssimas, atrasos mal cerzidos, leituras insuspeitas, tarefas inexatas. Tudo para jogar no "mais depois" o que me estremece, a tarefa, a obrigação, o tema de casa. Só mais um minuto e eu faço. Amanhã, sem dúvida. No final de semana, quem sabe. Mês que vem, droga! O quê? Não é possível? Não? Então se faz na hora, em cima, por cima, mal-rascunhado, mal-acabado, mal e mal assombrado pelos tiques do relógio. Tema borrado, tema amassado, tema todo errado, mas tema feito, enfim. Ou não.

Outono

Entre folhas amarelas
eu redescubro amantes velhas.
E ainda me deixo seduzir.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Bullying

Quantos anos ele tinha
(quando lhe ameaçaram bater com a cabeça na parede até sangrar?)

Quantos anos Eles tinham
(quando desferiam os socos que deixaram hematomas de muitos dias?)

Quantos anos eu tinha
(quando me interpus com cegueira imensa e consegui ampará-lo?)

Quantos anos eu tinha
(quando passei o braço em volta dele e o carreguei pra casa?)

Quantos anos ele tinha
(quando explicou para a mãe o que acontecera?)

Quantos anos eu tinha
(quando dias depois levei boladas da escola até perto de casa?)

Quantos anos Eles tinham
(quando riram e chutaram, riram e chutaram, riram e chutaram?)

Quantos anos eu tinha
(quando a Sra. P. me levou até em casa, desacordado?)

Quantos anos eu tinha
(quando precisei ficar uma semana sem ir à aula para que sarassem as feridas?)

Quantos anos Eles tinham
(quando, obrigados pela direção da escola, fizeram um cartaz com um pedido de desculpas?)

Quantos anos eu tinha
(quando rasguei aquele maldito papel?)

Quantos anos nós tínhamos?

Não sei.
Mas éramos só crianças, meu Deus.

sábado, 2 de outubro de 2010

Constatações (ou Bliss)

Entrei em depressão, o que é ruim.
Logo,
Parei de comer, o que é ruim.
Logo,
Emagreci, o que é bom.
Logo,
Caiu minha imunidade, o que é ruim.
Logo,
Peguei gripe, o que é ruim.
Logo,
Acho que também peguei conjuntivite, o que é péssimo.

Apesar de,
Chegou hoje para minha coleção o baralho que eu queria desde que era criança, o que explica o bliss do título e faz com que eu fique feliz, mesmo inchado, espirrando, de olhos infectos e nadando em coriza. :D

PS1: Isso não é um poema. (Talvez seja efeito da mistura de antidepressivos com anti-inflamatórios com antigripais com medicamentos para a febre e descongestionantes nasais - nem sei como vejo as letras no teclado... se bem que elas estão... dançando hula?)
PS2: Talvez eu não esteja tão doente assim... é que sou sagitariano, exagerado e tão hipocondríaco quanto minha mãe, minha avó, minha bisavó...
PS3: Só vai entender a beleza e a simbologia do meu "baralho que queria desde que era criança" quem conhece o tarot "original". Uma dica: veja as coisas pelo outro lado. ;)
PS4: Eu usei mesmo emoticons de letrinhas?
PS5: Não faça como eu. Não use descongestionante nasal com vasoconstritor. Sério. Isso derrete seu cérebro - caso você tenha um.
PS6: O tarot é mais bonito do que eu imaginei pelas imagens. \o/

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Boneca de Pano

A vida como se fosse uma boneca torta, de pano.
Sempre precisando de um remendo.
Sempre soltando uma costura.
Sempre embolando os flocos do recheio.
Sempre caindo o olho de botão azul.
Sempre enozando os cabelos de lã.

E a gente remendando, cosendo,
desembaraçando,
pregando botão,
desenozando a lã

E quando a gente termina (enfim),
a boneca nunca parece mais nova.
Nunca melhor.
Sempre mais trapo.
Sempre mais lixo.
Sempre assim, ó.

sábado, 25 de setembro de 2010

O vôo da mariposa

Textos e escadarias e cruzes. Quando eu a conheci, ela era ainda lagarta. Sobrancelhas largas, óculos de aros pretos, cabelos sem corte e moletons bem largos. Alguma coisa no brilho daquele sorriso, no entanto, me fascinou. E como não se deixar fascinar? Havia nela uma nuança de timidez, um coração capaz de abarcar o mundo e uma bondade de criatura santa. Por esses jogos que não se explicam, senti por ela um carinho imensurável. Eu soube, já de início, que seria sempre amigo daquela menina.

Destinos e rodas e ventos. Nos perdemos por um tempo. Tempo esse, em que ela ficou no casulo. Quando voltei a encontrá-la, por ocasião de uma ida minha ao jornal, a encontrei já mariposa. Mulher crescida, lentes de contato, cabelos bem cortados, sobrancelhas bem finas e o mesmo modo de sorrir. Por essas coisas de acaso, achei o blog dela na internet, ainda o Crazy Lidi. No blog o msn e por lá ressurgiu nossa amizade.

Letras e jornais e Nelsons. Foi por ela que consegui o emprego no jornal. E, apesar de todos os estresses, que não foram poucos naquela época (acreditem), fomos imensamente felizes. Nossos risos ecoavam nas tardes vazias. Nossas reflexões apaixonantes e mordazes tinham espaço no empacotamento de jornais, aos sábados de manhã. Pelo msn, as tiradas inteligentes e hilárias voavam de uma sala a outra, com ela sempre tendo que prender o riso: o chefe estava de olho! Emessenadas à parte, foram aprendizados, alegrias e algums incômodos bem repartidos. Foi por incentivo dela que mudei de curso minha vida. Abandonei o Jornalismo e encontrei a área das Letras.

Anjos e nuvens e borboletas. Foi através dela, também, que conheci aquela menina do guarda-chuva vermelho, que veio na porta e me cumprimentou docemente. Foi pelos vôos dessa mariposa que se encontraram um anjo e uma borboleta (post do dia 02/04). E se amaram. E se amam. Foram tempos de risos tríplices e inocentes menages a trois virtuais. Ríamos até a dor, bêbados de amizade, como na festa de São Cristóvão, ou naquela noite na portaria do edifício Zanetti.

Tempos e chuvas e ruas. Coisas tantas aconteceram desde aquele tempo. Nem todas boas. Houve momentos de sol, sim, mas também foram muitos os céus de chuva. Perder-se, para quem voa, é mais fácil. Apesar disso tudo, a amizade continuou, com contatos mais ou menos intensos.

Mariposas e luzes e céus azuis. Mariposas, como é sabido, voam para a luz. Talvez haja nelas algum mecanismo que da luz se alimente, que do brilho se nutra. Na escuridão, essas lepidópteras somente murcham suas asas, fenecem em seus vôos. Por isso, é tempo da mariposa sair da Cratera, seguir um halo de sol e encontrar céus azuis. Ela vai para longe, para outras terras, voar entre outras gentes, mas leva cada segundo nosso impregnado nas asas, eu sei. Ela vai e leva no peito os sorrisos, os olhares, as palavras, as borboletas, os anjos, os nelsons, as cruzes... Ela leva tudo que foi, tudo que viveu, e a isso ela vai colocar novas cores, novos espaços, novos seres que voam, novos bichos que rastejam, novos sons, novas glórias e novas lágrimas. Tudo para ser ainda melhor, ainda maior, ainda mais bela.

Lidita.
Querida mariposa.
És minha irmã por tantas, tantas coisas. Somos tão iguais em muito, até no número da identidade (só os três últimos dígitos mudam), que não sei me despedir de ti sem dizer que perco um pedaço meu. Só não fico mais triste, porque seria egoísmo demais, diante da felicidade que vejo em ti. Tu realizas agora um sonho há muito nutrido, voas para teus céus azuis. Tenho certeza que de vais encontrar neles toda luz necessária para fortalecer tuas asas e revigorar tuas cores. É um movimento natural, tua alma alada já não cabe nos vincos e escuridões dessa Cratera. Eu te desejo toda felicidade e toda sorte que puderes encontrar. Eu te desejo bons ventos, boas aventuras, boas amizades e boas descobertas. E pode ter certeza de que, quando você precisar, vou estar aqui. Pode ter certeza também de que a cada momento importante estaremos pensando em você, eu e minha borboleta. 
Lidi, nós estaremos aqui esperando ansiosos o dia de te rever, de te abraçar de novo, de ouvir tua voz e fazer coro com teu riso. Mas, enquanto esse dia não chegar, estaremos torcendo a cada momento para que tu sejas imensamente feliz. Afinal, tu mereces.
Com amor,
Vini - teu terno e eterno mano.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

1º Dia. Manhã

Eu já estava no chuveiro enquanto ela ainda escovava os dentes. Nosso primeiro beijo foi assim, comigo molhado, com ela cuidando os respingos. O segundo foi quando eu já colocava as calças e ela saía para o trabalho. Ao sair ela deixa meu guarda-chuva sobre a cama. Ela sabe que eu não vou levar. Me conhece.
Na esquina a dúvida: ia direto para a rodoviária ou passava antes na Padaria? O barro no caminho para a padaria me fez decidir.
Na rodoviária três velhas sentadas no banco, esperando, enquanto discutiam animadas a possibilidade de uma delas fazer carteira de motorista. Duas das três eu conheço desde pequeno. Elas, no entanto, não lembram de mim. Não me reconhecem como o menino de quem apertavam as faces coradas. Eu sento com elas e espero, mudo.
O ônibus chega e o motorista é a cara do Sérgio Loroza. Embarco. Embarca uma das velhas a fazer coro com as demais já dentro do ônibus.
O motorista dá partida e seguimos. O asfalto parece um amontoado de buracos, o ônibus parece querer virar a todo custo. As velhas gritam e riem, felicíssimas, como se fossem morrer. Tenho a impressão de que estou dentro de uma coqueteleira, sendo jogado para todos os lados. Sério. Alguém poderia fazer sexo aqui dentro ficando imóvel, e ainda assim teria a transa mais intensa da vida.
Ainda em Tapera o ônibus para. Sobe uma "jovem senhoura" toda de rosa, dos tênis à fita de cabelo. Na bolsa da mulher a explicação: Pedagogia, em letras garrafais. O moço que a levou até a parada é alto, loiro, não mais de 25 anos. Parece estar olhando para uma musa.
Vamos. Agora que acostumaram ao balanço de terremoto e perceberam que não morrem hoje, as velhas se fecham em caras amargas.
Em Victor Graeff entra uma coquete, acompanhada do pior tipo: o galã de rodoviária.  Ele tenta ser sedutor e engraçado a viagem inteira. Como se ela fosse transar com ele por isso.
Chegamos em Passo Fundo. A primeira coisa que acontece é chover. E o guarda-chuva na cama.
Desembarco na rodoviária. Agora é esperar.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Drops

Foto de Valérie Gautier

Como se as duas meninas, vizinhas, decidissem que hoje é dia de faxina. Como se elas fossem aos fundos, na bica, e enchessem d'água os baldes. Como se elas esparramassem a água no chão (já limpo) e empurrassem, com rodos, tudo pra fora. Como se eu tentasse falar da chuva, da umidade, do dia horrível para se lavar a casa. Como se elas não me escutassem. Drops, drops, drops. Como se eu escutasse cada gota caindo, inevitável. Como - quase como - se eu estivesse chorando.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Post Confuso

(ou aquela coisa que acontece quando eu não consigo me ordenar)

Fac simile: eu simplesmente odeio ser copiado, em qualquer sentido. Ultimamente usurpam-me as palavras. Eu as uso - ou invento - num dia e no seguinte elas estampam (garrfais) as páginas dos teus jornais. E tu queres o quê delas? Parecer que tem graça, criatividade, qualquer traço de alguma coisa? Gris. Quem usa? Cansado em imenso disso. Preciso dizer também de um rapaz que vi na UPF. O chiripá dele tinha mais broderis que o vestido de noiva da minha mãe. Não entendo. Andar de pilcha na Semana Farroupilha é tão útil quanto sair nu na rua em época de carnaval. Tradição é uma coisa, ir na onda é outra. Comportamento de rebanho fica horrendo em símios. A propósito, se tu admiras uma pessoa completamente vazia, mais vazio ainda és tu. E disso vem o meu: "diga-me a quem tu amas e eu te direi quem és". Mas triste, triste, triste: há uma avenca que estará partindo muito em breve, ela precisa de uma luz, de uma água, de uma terra, de um xaxim que não encontra aqui. Por conta dela, estou misturado entre a euforia e a tristeza nossa. Bliss & Gris. É melancólico ver que coisas importantes acontecerão sem um abraço nela. Ao mesmo tempo, é bonito ver os sonhos brilhando nos olhos da avenca. Please, bliss e gris. No mais, estou em temporada de desconstrução, como aquela menina lá que a cada inverno desfia um casaco para fazer outro novo. Sem mais, então. A lã é marrom. Hora de ir.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Reino em Caos

Outro dia andava eu por aqui a procurar Agosto. Verdade, ele me sumiu bem no meio do ano. Eu tive Julho e agora essa coisa de Setembro. Não me lembro, juro, sequer de ter escrito nos cadernos o mês 08. Fiquei eu sem Agosto, então, como se isso fosse coisa muito normal.

Agora quem me sumiu foi a Arte Poética. Não, não a inspiração, mas aquela escrita pelo Aristotéles [sic]. Ontem mesmo ela estava lânguida e pequena sobre a minha cama. Hoje não está mais em parte alguma. Eu desconfio que ela tenha batido asas junto com os pássaros do "prazer da leitura" de que falei ontem.

Ou talvez ela tenha levado as coisas muito ao pé da letra, correndo casa afora em busca de qualquer tragédia. Tragédia terei eu, amanhã, na aula de narrativa, sem saber as partes da dita. Bem, talvez eu lembre de alguma coisa, de tanto que já li a maldita, me sinto íntimo do Aristotéles - que fumava altos baseados antes de escrever, segundo minha ex-inimiga Caroline.

Então tá.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Cá entre nós

É interessante entrar no Mestrado em Estudos Literários por amar a Literatura. De repente você nota que estão fazendo tudo ao contrário do que ensina a teoria. Ao invés de tornar a leitura agradável, resenhas obrigatórias tratam de tornar tudo um imenso fardo.

Como é possível ler sobre “o prazer de ler” de forma rigidamente imposta (e não seduzida, diga-se de passagem)? Depois de páginas e páginas e mais páginas ou você pretende mudar o mundo, fazendo com que todos leiam Machado de Assis, ou você mesmo desiste de ler qualquer coisa, porque seus olhos ardem mais do que braseiros.

Não há, vejam só, tempo (ou disposição) para a minha leitura “prazerosa” e “descompromissada” de que me falam as teorias. É tudo sempre hipócrita assim? É. A gente deve mais é acostumar. Minha pior professora, até hoje, era a que na graduação nos dava didática, vejam a incongruência.

Não sei. Talvez as pessoas se deixem bitolar tanto por teorias que esqueçam o lado prático da coisa. Talvez pensem que estamos em outro patamar, que temos a obrigação de gostar de ler. Não temos. Tampouco temos a opção de não ler (Rogai por nós, Santo Pennac), a menos que uma nota ruim seja aceitável. E não é.

Voltemos então à leitura superficial e à pior resenha que já escrevi em todos estes anos. Voltemos a criticar práticas que obrigam os alunos a leituras que não lhes interessam. Voltemos a falar das maravilhas causadas por páginas escritas. Voltemos a cinco folhas de mentiras mal-lavadas. Voltemos.



"Burn this house
Burn it blue
Heart running on empty..."

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Valium

Ela se debruça na janela e vê a vida chover. Um livro morto nas mãos, uma carta desperdiçada dentro dele. Um motivo para ser triste: o menino não tem mais bicicleta, portanto, nada de flores perdidas na varanda. O menino nem é mais menino, paciência de ser sozinha, então.

Ela pensa e lembra de outro tempo, em que havia ao menos a promessa de estatelar. Hoje não há. Ela olha as lágrimas no vidro, escorrendo e formando imagens embaçadas. Ora uma flor, ora uma caveira, ora um peito aberto e com um urso dentro.

Na rua, um homem vai lento, cobrindo a cabeça com as notas da semana, não funciona. Ele se molha de qualquer jeito. As manchetes escorrem feito negro fluído pelas macilentas mãos. Se ele corresse, pensa ela, talvez não se molhasse. Como é inútil pensar por ele.

A água, que desce lamacenta, carrega, de repente, uma cabeça, de porcelana. Labiosinhos vermelhos, olhinhos azuis. Aparece e, no momento seguinte, afogou-se. É isso. E outro outono já pode chegar. Não faz diferença.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

(des)Classificado

Procura-se um agosto perdido. Quem encontrar, favor entrar em contato.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Cão

Ele andava pela rua, branco e preto. Não pedia nada, também em troca não oferecia perigo quase nenhum. Quando rosnava, coitado, era para as pulgas próprias.

Cheirava uma pedra mijada aqui, uma sacola rasgada ali... Se alguém lhe gritava ele olhava humilde, tapando as intimidades com a cauda. Ainda assim, se necessário fosse, empenhava os varetos das pernas a correrem de pronto.

Gritavam muito com ele, sem que ele soubesse entender. Cuidava tanto para não mexer em coisa alheia, para não chegar perto daquela gente feia. E eles vinham com berros que falavam em “suma”, “caminha” e “casa”. Ele não assimilava tudo; entendia que era para correr e então corria.

Naquele dia, foi bem perto do meio-dia que cruzou a viela da Boa Esperança. Andando embalado por algum cheiro de carne fritando, ia de olhinhos fechados, focinho alargado, inebriado o pobre cão.

Veio então o barulho esquisito, que de tão distraído ele nem pensou em checar. O sol era bom e o cheiro prometia delícias escorrendo na boca. Por que ele ligaria para o som de alguma coisa cortando o ar? Além disso, não era estranho o barulho, ele só não consegui lembrar. Se concentrasse um pouquinho, desviasse do torpor do sol, da carne...

Pedra, de repente ficou todo ele desperto e lúcido. Pedra! Mas não deu tempo dos olhos pretinhos se abrirem de todo. Metade de um tijolo de construção já estava voando perto demais da sua cabeça...

E a rachou em duas partes.

Textinho interpretativo

Palavras. Eu, como pseudoquaseescritor acho incrível o poder de criação delas. “Faça-se a luz e a luz se fez”. Não só a palavra escrita pode estruturar reinos, castelos e reis. Também a palavra falada é capaz de maravilhas. Minha mãe, por exemplo, não me pariu. Tampouco foi ao me adotar que ela se tornou mãe. Ela foi assim por mim criada quando eu disse pela primeira vez “mã”. Mas este texto não é para ela.

Verbos performáticos – disse Benveniste de dedo em riste – safadinhos vocês, aiaiai. E assim se deu mais uma criação, pela denominação. (E o homem só domina o que denomina, sabe?) Quando eu disse sim e você disse sim, aconteceu de alguma coisa no nosso universo mudar, se construir, explodir em criação de átomos e prótons de pura luz. Big-bang.

Mas, ah, palavras. Também de destruir elas são capazes. De quebrar, de trincar, de rachar, de matar. Só um punhadinho de vento que não se pode pegar na mão. Palavra.

— Tem dias em que é difícil te aturar.

Viu? Palavras. Textos, contextos, leituras e interpretações de Santa Ieda Linck. Se há dias em que é difícil me aturar, nos outros todos é fácil. Em todos eles, no entanto, você me atura. Eureka, tenho más novas para você. Eu não preciso ser aturado. Sabe, eu pensava que precisava ser amado, mas acho que não também. No fim o que a gente precisa é ser. Só. Estar também, mas disso eu não tenho certeza.

Um fardo precisa ser aturado. Um peso. Um incômodo. Uma sina. Um câncer. Um furúnculo. Um vizinho barulhento. Uma pena de prisão. Um barulho de construção. Um vazio. Um pesar. Um verme. Uma perna quebrada. Uma morte da vida qualquer.

Mas eu não.

Um dicionário me diz que “Aturar” é verbo transitivo. E me diz que “Aturar” vem do grego. E me diz ainda que “Aturar” é sofrer, suportar. Mesmo quando é fácil, (me) aturar é sofrer, suportar.

Eu, então, exijo teu sofrimento. Eu, então, exijo que me suportes. Oh, alma boa, faça-se livre, então, de tamanho desgosto. Desaturar, se não existe, a gente cria, inventa. Uma palavra a mais, o que custa?

Só sei que repito:  não sou pessoa que precise ser aturada. Ninguém é, aliás. Agora ature-se com isso. Durma bem com um barulho desse.

Não sou fardo, peso, incômodo, sina, câncer, furúnculo, vizinho barulhento, pena de prisão, barulho de construção, vazio, pesar, verme, perna quebrada e nem morte de vida qualquer.

Não sou.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Cratera

Na entrada há uma placa “Bem-vindo à Cratera”. E, de fato, passado o trevo se desce ao buraco. Quem passa por aqui é enganado, facilmente. Temos flores nos jardins. Uma colega de Luz Alta me disse isto uma vez: “Que cidade adorável, tão bonita e aparentemente hospitaleira.”

O acerto da frase? “aparentemente”. Nós, craterenses, vivemos de aparências. Por dentro somos ocos, mas plantamos flores e isso nos redime de vez em quando. Ocos, vazios, ovos pintados ainda sem o recheio de amendoins. O importante é o colorido de papel crepom.

Para cada acerto há um motivo, talento não. Quem enriquece, por exemplo, é traficante de drogas. Mulher solteira que se veste bem é bancada por homem rico. Quem consegue emprego é parente do empregador. Ou amante. Ou parente & amante.

Os pássaros cantam tanto em Cratera... Mas por baixo dos trinados há um sussurro ininterrupto. Tão acolhedora a cidade... pra quem vem de fora. Pra quem não está, permanentemente, à mercê dos ovos ocos.

Em época de eleições... mais um pedindo voto.


Tem design meu concorrendo por lá.
Sendo assim, VOTE!
(ou não)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sedução

Eu me dedico, então, essa noite, 
esse blues, esse vinho branco 
e essa solidão sem
 tristeza alguma.

Essa noite.
De lua.
De vento.
Vento devagar.
Bom vento.

Faço laço dos meus braços e assim me abraço lento.

Esse blues.
Blues blue.
Blues bom.
Blues de divagar.

Fecho os olhos com suavidade e assim trato de me conquistar.

Esse vinho.
De uva branca.
De gosto suave.
Doce de embriagar

Derramo na minha boca a fim de me inebriar.

Essa solidão.
Solidão escolhida.
Solidão desejada.
Solidão sem pejo.

Nela sinto a mim, nela me dou meu beijo.

______________
Ao som de: Duke Ellington and John Coltrane

Tesouro I

A sineta toca e todos correm cansados, cabelos colados num misto de suor, poeira e a água das mãos mal-lavadas. A fila se forma em algazarra de gritos e empurros. Meninos de um lado, meninas de outro.

Quando a professora entra no saguão quase todos se calam, olhos em gula. Ela traz debaixo do braço uma caixa enfeitada. Papel colorido e laço de presente. Vozes de “É pra mim? Não, é pra mim!” tomam os meninos. Ninguém tem coragem, mas todos anseiam perguntar: “Para quem é, professora?”

Seguem mudos pelos corredores, crianças expectantes, olhos fixos no que conseguem fisgar da caixa. É grande, como uma de sapatos. Será de caramelos? Será daquelas bonequinhas e daqueles carrinhos de balão surpresa? Será de bom-bons? Será de mamutes malteses?

Entram na sala. Os olhos secam na falta de piscar. A professora calma, porque sabe o segredo, pega no giz e escreve, logo abaixo da data e da frase de do dia: “O Tesouro”. E a coisa toda começa.

Então é você, olhando cada um ir até lá, receber a caixa enfeitada, abrir uma fresta e espiar lá no fundo...

Então é você, vendo eles sorrirem uns aos outros com cumplicidade medonha, por saberem também o segredo da caixa. É você a ver todos se perfilando lá, na frente das classes, dizendo o nome do próximo a quem dão O Tesouro.

Então é você esperando que a Patrícia, ao menos a Patrícia, a penúltima, indique você, mas ela não indica ninguém. Então você é o que sobra.

Então lentamente é você, sentado na última classe da última fila, fingindo não ter notado que ninguém escolheu te dar O Tesouro.

Então é você que a professora chama, sorrindo com brilho de mortal compaixão. É ela quem diz “Vinícius, o tesouro por fim é seu. Só seu”.

Então é você andando com 27 pares de olhos filmando cada passo em vacilo. É você pegando a caixa nas mãos e fazendo da boca o que é para ser o arremedo de um sorriso torto.

Então é você o último a abrir, o último a espiar, o último a saber o segredo do tesouro.

E então, no fundo, o tesouro é você refletido de dentro da caixa, no espelho colado.

Agora, quando todo mundo já sabe e já viu, a professora manda voltarem aos lugares e explica toda em tons de magistério : “O Tesouro de cada um, é cada um”.

É isso? É só isso?

Então é você que, por ter sido o último, volta para casa com a caixa de espelho nas costas, carregando na mochila o que parece ser apenas ouro de tolo.


terça-feira, 24 de agosto de 2010

Das coisas que chamam amor

Como se por decorrência da morte lhe aflorasse qualquer traço amorístico lacônico, pegou com dificuldade o celular e, mesmo estirado no cimento da rua, sangrando, apertou o 8 e o yes.
— Oi.
— Oi. Só liguei pra dizer ainda mais uma vez que te amo.
— O que aconteceu com você?
— Estou morrendo.
— O quê? Como? Onde?
Numa golfada de sangue que atinge o asfalto ele ainda balbucia algum lugar.
— Mas o que você está fazendo próximo à praça da Sé? Com quem é que você está aí? Olha, se você está me traindo, seu desgraçado, eu juro que mato você. Eu mato, ouviu? Porque você pensa que é muito especial, né? E único e poderoso, né? Está se sentindo. Acha que eu não consigo coisa melhor? Pois eu consigo, só pra te mostrar. E não adianta agora me ligar, seu desgraçado, pra vir dizer que me ama e sei-lá-mais-o-quê, ouviu? Eu não me interesso por nada disso, entendeu? Quero é saber o nome dela. Da puta, da desgraçada, da piranha com quem você está se encontrando por aí. Diz, anda, diz, desgraçado. Régis? Régis, fala alguma coisa, seu puto. Desgraçado, infeliz. Bem que elas me avisaram, bem que elas me disseram que homem é sempre igual, que não presta mesmo. Ô raça infeliz. Seu Idiota. Você está me ouvindo? Eu estou falando com você, seu babaca...
E ela poderia só ter dito que o amava também, era o que ele esperava ter ouvido antes de morrer. Agora é tarde. Tarde, tarde, tarde, tarde.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Felicidade


O que eu mais custo a aceitar é a felicidade. Sua irmã, a infelicidade, eu acomodo com ligeiro torpor no peito, tão logo ela chega. Eu me apego à ela com uma facilidade doce e sem perguntas. Logo o abraço é completo e apertado, sufocante até.

Quando a felicidade chega, porém, eu abro só uma fresta da porta, com desconfiança imensa.
— De onde você vem? E veio por quê? E quem foi que te mandou? E quanto tempo pretende ficar?

A felicidade, geralmente pequena, mas significativa, treme suas penas todas ali na entrada. Ela responde entrecortada e já meio vacilante que se a hora não for boa, ela vem em outra, mais propícia.

A contragosto deixo a felicidade entrar, mas fico sempre à espreita, mantendo sua pequenez no canto do olho. Eu sondo seus motivos, eu suponho seus porquês, até que ela toda suma no ar.

É porque eu ainda não entendi que também a felicidade vem sem cobranças. É porque, no fundo, estou acostumado a pagar um preço pelo que é bom. E uma felicidade, assim, sem acerto prévio de contas, me causa estranheza de morte. É porque eu preciso aprender a aceitar mais. E é também porque eu preciso entender que quando a felicidade vem, sem motivos, basta deixá-la pousar no peito e não perguntar jamais os porquês.

Mesmo que ela arrulhe demais, mesmo que ela me arranhe demais, mesmo que ela seja misteriosa demais. Por Deus, é só uma felicidade, deixo que essa fique, então.

______________________
Agradecimentos a Michael Kirste pela fotografia da minha felicidade.

sábado, 14 de agosto de 2010

Volver

À Srta. P.
Volto. Volto para passar a mão nas letras da parede. Volto para o abandono de lar, para a ruína erguida, para os tijolos sem casca.

Volto para o capim alto crescendo na cozinha. Para as janelas levemente despencadas e estendidas e entediadas e enfadonhas. Volto para ver os sapos no sofá. As salamandras de olhos muito caviarescos escorrendo lânguidas nas cortinas.

Eu volto sem pensar, sem entender. Eu volto para amar cada pingo de poeira que balança blasé no ar. Eu volto procurando mais pingos, mais pontos, mais vírgulas. Mas vírgulas não há.

Ainda assim eu volto. E no caminho de volta eu imagino encontrar na mesa de três pernas um buquê de rosas novas. Num halo de luz solar.

Buquê não há. Se houvesse...

Entenda. Eu volto, sempre.

Por que você não?

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Nu em pranto

Chove.
Já viste meu corpo nu na chuva?
Dele todo sai vapor de água.
Esfumaço feito o diabo.
Sou quente?
Não.
Porque por dentro há muito frio.
Gelo seco.
Molhado, porque chove
os olhos pesam.
A água escorre e lava
o sal de algum choro escondido.
Eu recolho meus choros pra mim
e me dou de beber.

Agora chove.
Gota por gota na minha pele.
O frio arde.
O vapor queima.
Deito nu num chão de pedras coloridas.
Fecho os olhos, como se adiantasse
- é escuro -
também por dentro.

Da chuva cada pingo me faz carinho.
Mas só depois de cair agudo, flechado.
Mordidas e beijos e sopros.
Sozinho.
Na chuva.
Só porque chove.
E pela chuva eu sou amado.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Olho mágico




Todo dia ele acaricia tua porta. Ele não bate nela. Não pede para entrar. Não toca a campainha. Ele passa a mão, bem de leve, como se na madeira sentisse teu rosto, teu corpo, tua alma. Todo dia ele para na porta. Como se entrar fosse proibido, parto de todo castigo, todo pecado, todo crime. Todo dia.

Todo dia ele espera te encontrar, por acaso. Todo dia ele pensa em te abraçar bem forte, sem dizer nada, sem pedir perdão, mas também sem perdoar. Ele queria, só um dia, ser maior do que o próprio orgulho. Ele queria voltar pra tua casa, pros teus olhos, pra tua boca. Ele queria morar – amar – do outro lado da porta.

Todo dia ele vem, e depois desce as escadas, sozinho. Todo dia. Enquanto você espia. Pelo olho mágico.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

True Colors





You with the sad eyes
Don't be discouraged
Oh I realize
It's hard to take courage
In a world full of people
You can lose sight of it all
And the darkness inside you
Can make you feel so small
Você, com seus olhos tristes,
não fique desanimado
oh, eu imagino
que é difícil criar coragem
num mundo cheio de gente
você pode perder a visão de tudo,
e a escuridão dentro de você
pode fazê-lo se sentir tão pequeno


Às vezes é uma música que nos domina pelo som. Alguma coisa no ritmo, alguma coisa na voz, alguma coisa no peito. Então você para um instante e ouve com calma, compreende a letra, sente o som. E aí você sabe, de alguma forma, que aquela é uma música sua. Olhos tristes, de alguma forma, sempre são os meus. A escuridão de que fala a letra, é a mesma que mora dentro de mim. É nessa sombra que sou pequeno e menino e sozinho. São escuros meus olhos, tristes.



But I see your true colors
Shining through
I see your true colors
And that's why I love you
So don't be afraid to let them show
Your true colors
True colors are beautiful,
Like a rainbow
Mas eu posso ver suas cores verdadeiras
brilhando sem parar
Vejo suas cores verdadeiras
e é por isso que eu te amo
então, não tenha medo de deixá-las aparecer
as suas cores verdadeiras
as cores verdadeiras são bonitas
como um arco-íris


De perto ninguém pode me ver. Só você. Só você. Só você pode ver minhas cores verdadeiras. Só você pode saber quantos tons de mel formam meus olhos castanhos. Só você pode saber que tenho nos cabelos fios pretos, marrons, dourados, acobreados, brancos. Ninguém mais pode chegar perto o suficiente. Perto o suficiente para ver minhas fraquezas, minhas bondades, meus meio-tons, minhas cicatrizes nas mãos. Só você entende, até isso. Uma vez você me disse que eu sou um idiota. Que eu mostro meu pior aos outros. Que eu tenho medo de ser bom e, por isso, ser considerado fraco, pior. Só você entende que eu sou um idiota. Só você ama um idiota.



Show me a smile then,
Don't be unhappy, can't remember
When I last saw you laughing
If this world makes you crazy
And you've taken all you can bear
You call me up
Because you know I'll be there
Então, dê um sorriso pra mim
não fique triste, não me lembro
quando foi a última vez que eu te vi sorrindo
Se este mundo te deixar louco
e você já não agüentar mais,
ligue pra mim
porque você sabe que estarei ao seu lado


Ser triste é meu modo de ser. Você entende? "Um homem com uma dor." Às vezes eu esqueço de tanta coisa. Eu esqueço, mas tenho você. Eu tenho você para me ver a cores, porque eu só me enxergo em  preto e branco. Preto e branco sempre. Eu preciso que você me diga quais cores eu tenho. Se você disser o que ama em mim, talvez eu possa notar. Talvez eu possa sentir o mesmo que você.



And I see your true colors
Shining through
I see your true colors
And that's why I love you
So don't be afraid to let them show
Your true colors
True colors are beautiful,
Like a rainbow
eu posso ver suas cores verdadeiras
brilhando sem parar
Vejo suas cores verdadeiras
e é por isso que eu te amo
então, não tenha medo de deixá-las aparecer
as suas cores verdadeiras
as cores verdadeiras são bonitas
como um arco-íris


Você diz que pode ver as cores em mim. Por que eu não posso? Você diz que pode ver cores em mim. Me ensine, então, a vê-las.

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Para ler ao som de True Colors by Alessandra Maestrini

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Faxina

Um dia você acorda e não entende como cabe tanto dentro. Do armário ou da vida – depende do grau de abstração do dia em questão. E aí você decide se livrar de. Coisas ou pessoas? Eu, particularmente, prefiro me livrar de pessoas. Das coisas tenho uma dificuldade imensa em me desfazer. Não queira pensar com isso que sou materialista, antes o oposto. Mas as coisas me lembram as pessoas de quem me “afastei”. É possível me compreender? Em Marte talvez.

Pelas pessoas tenho menos apego. Coisa de berço, quem sabe. Desde que minha mãe me passou adiante, eu entendi que as pessoas passam. E é sem dor de lágrimas que faço minhas despedidas. Não que não sinta. Sinto, mas mesmo sentindo, me resigno. É sempre a hora, pois.

Não tenho, então, medo depois de dizer que aquela pessoa já nem me desperta nada. Porque não desperta. Faz parte de fase morta. Minha vida funciona em compartimentos, mas isso é segredo meu. Quando uma comporta se fecha, ela se fecha sem frestas ou rachaduras. Sem risco de inundações ou vazamentos.

Das coisas eu não me livro. Do meu lixo velho. Das peças avulsas de quebra-cabeças mortos. Das rodas soltas de carrinhos velhos. Dos lápis em toco que escreveram meu/teu nome.

Eu sou mesmo engraçado (louco?). Por isso cumprimento tão pouca gente na rua. Por isso caem tantas coisas cada vez que eu abro uma gaveta, uma porta. Por isso é que eu poderia ser tão triste. Mas é que eu não sou. Não sou.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Era um homem com seu amante

Eu ouvi a voz dele primeiro entre sonhos, mas droga, já era quase meio-dia. Ainda deitado eu conseguia imaginá-lo na varanda de casa. Cabelos amarelos e compridos, boné, camiseta e bermuda. Engraçado, é inverno, estou debaixo de um edredom e dois cobertores e não consigo imaginar ele de calças compridas. Acho que nunca o vi assim. Na minha imagem ele acaricia a cabeça da minha cachorra, desajeitando o lacinho de petit poá.

Meu pai, ainda na porta, aceita a prancheta e escreve seu nome – por extenso – no local assinalado com um “x”. O moço loiro confere a assinatura, lhe entrega o pacote, sobe na moto e parte. Eu agora imagino minha mãe saindo da cozinha, pedindo o que há no pacote. Meu pai dizendo que é meu. Ela sugerindo que abram. Não abrem.

No quarto eu já me vestia, por saber o que há no pacote. Mas toda ansiedade foi domada. Vi o pacote azul sobre a mesa de jantar e passei reto por ele. Criei coisas para fazer. Almocei. Liguei o computador, li e-mails. Voltei à sala e levei o pacote para o quarto. Mais um segundo e minha mãe se encarregaria de abri-lo. Ali ele ficou, sobre a cama. Como explicar? Eu espero há mais de oito meses por esse pacote. Desde que uma professora minha, muito querida, me mostrou um e-mail.

Talvez eu queira reviver um conto de Clarice. Felicidade Clandestina. O que há no meu pacote, afinal, é um livro.

“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só pra depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.”

Por fim eu rompo com dentes e unhas o plástico azul: ele surge, compacto, capa dura, à espessura de um tijolo de construção. Ainda pelo plástico transparente eu vejo uma fita negra que o reparte. Meu livro tem marcador de página em cetim. Bem brincava eu “minha Bíblia”, “meu Eterno Testamento”. Chegou.

Eu o abro, de vagar, apreciando o toque da capa, o cheiro das folhas, o peso na mão. Eu folheio as primeiras páginas, todas negras. Muito propício; eu penso e rimos, o livro e eu. Eu me perco naquela escuridão pautada por “uma biografia”. O índice como constelação de estrelas brancas. A epígrafe que pulo, quebrando uma regra minha. Por fim a primeira página branca. “Introdução A Esfinge”.

Leio: “Em 1946....” Paro. Será agora o melhor momento para começar? Será esse o melhor lugar para ler? Penso até em me chantagear com o livro: “Não, Vinícius, só irás lê-lo depois de terminar o artigo que estás me devendo”. Eu sei que essa leitura é uma viagem sem volta. Essas 647 páginas, uma vez começadas, serão meu único e mais intenso objetivo de vida. Eu sei que tudo vai ser posto de lado quando eu me entregar ao livro. Então eu o fecho, com o pavor de minha intensidade.

Eu o deixo sobre a cama. Vou cuidar de coisas urgentes que de repente invento. Olho com cobiça e gula cada vez que passo pelo quarto. Mas eu sei que ele vai estar ali. Pelo tempo que eu quiser. Para sempre. Meu livro, Meu livro.

PS¹: Quem não entendeu o título, leia o conto Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector.
PS²: O trecho do texto entre aspas e em itálico pertence ao mesmo conto supracitado.
PS³: Qual é o livro de que escrevo? Quem tem sabe. Quem não tem pode descobrir pelas pistas que dei.