quarta-feira, 23 de abril de 2008

Abril

Abriu a porta, abriu as pernas. Era abril. Não acredito mais em abril, naquele ano, com suas promessas fartas e manhãs douradas havia me prometido um amor. Maio chegou mais frio que o normal. Tudo era vermelho demais, as paredes, o batom, o rouge, a cabeleira de puta, as unhas, as cobertas, até a luz. Lembrou-me o inferno, e passou nos meus olhos uma sombra de medo.
Ela notou, talvez por isso tenha sorrido.
- Primeira vez?
Com uma puta era.
- Aham.
Fragilidade, talvez ela gostasse. Eu queria um abraço, um beijo, o amor que abril me jurou. Maldita cigana.
Riu alto, águas rasas e cascateantes.
- Chega aqui...
Era melhor que ficar no corredor. Entrei. O espelho me mostrava triste, cansado, escuro. Um olho era desespero, o outro conformidade. Sentei.
- E então, o que vai querer?
Expliquei. Ela riu. Ria muito essa mulher, será que todas as outras ali também eram assim? Que me explicassem o segredo da alegria e eu também teria um riso de cortesã. Mas afinal, ela ria de mim ou do que eu disse? Ah, não importava, já era tudo o mesmo tom de encarnado.
Enquanto ela ria os seios de um branco leitoso eram engolidos pelo decote, e depois expostos com volúpia. Então era aquilo que eu queria? Amor?
- Bateste à porta errada, meu filho. Não posso te vender um amor de eternidade. Por este preço, veja bem, o máximo que te consigo é a felicidade por uma noite.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Quarto

São livros que já li, histórias das quais não gostei. São pelúcias e pelicas de uma infância tantas vezes infame. Caixas de deficiências que fiz questão de assumir. Retratos de vaidades coloridas, finamente triplicados. Músicas que eu não gosto e coisas que escuto escondido. Três santas inertes, mergulhadas em sua própria serenidade de não ser. Todas presas em formas de gesso e resina, espadas em punho e olhos ao céu. Farelos, papéis amarelos, bilhetes inteiros e cartões amassados. Ainda tenho aquela vela azul, porque tenho medo de queimar.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Das Gavetas

E hoje, mexendo nas coisas da gaveta, encontrei dois poemas.
Um meu, outro de Clarissa. Somos poetas de gêneros distintos, ou talvez não. Falamos da mesma coisa, amor. O meu pleno, o seu platônico.
Ah, catatonias à parte, mergulhem aqui.

Solares de Solidão Contida

És Apolo, deus sol.
Tão imponente e majestoso
Quente e brilhante
Distante...

Astro rei.
Tão acima dos reles
Tão acima das reses.
Perfeição traçada em chama ardente

Como podem, tuas mãos de céu
Tocarem as minhas?
Cuja Imperfeição disfarço
com anéis de pesada prata

Como minha boca,
Opala opaca
acostumada a só falar de amor
pode fazê-lo no teu corpo?

Sou tão humano, meu deus, tão humano.
Talvez sejas para sempre
Minha escultura de mármore
Alvo
de minha devoção e desejo

Volúveis Volúpias.
Mal resolvidas à meia-noite
Meu deus, sou pura carne.
Meu contato te contagiaria
De tantas bestialidades humanas...

És traço perfeito
Sou coisa.

És deus sem defeito
Sou coisa.
Por isso mantenho distância.
Medo de quebrar-te
Medo de entregar-me
Medo de tornar-te
Coisa também.


Vôo de Farfalla

Farfalla inscrita ao corpo
Colorida, suave inébil.
Voa, por debaixo da pele

Sobe ao pescoço,
Sigo-a com os lábios.
Desce aos seios,
Sigo-a com a boca.
Pousa às coxas,
Sugo-a com a língua.

Asas de tons irreais
Sortilégios pousados à meia lua.
Flores que enfeitam tua nudez
Farfalla nunca te põe nua.

Ainda que todo resto sejas carne
Em partes és asas de farfalla
Valsa de farfalhares
És tela, minha pintura.
És minha e nua
há música, sinfonia de arrepios.

Quando toco tua farfalla
E já ela se perde ao longe
Voa, brinca
Pousa, voa.
Por corpo todo
Em minha mente.

Impossível
Não te amar
Farfalhosamente.