quarta-feira, 31 de março de 2010

Da minha mediocridade (ou simplesmente Bliss)

Me abstenho de comentar em textos perigosos, da mesma forma que não subo à corda bamba por mera diversão. Mexer com venenos em copos de vinho não serve mais ao homem vulgar que sou. Entenda-se por vulgar não chulo, mas medíocre. Vulgar no sentido de comum.

É que com o tempo a gente fica mediano mesmo, querendo uma vidinha bem burguesa e asseada, limpa até por detrás das orelhas. Com os anos eu, que andava envolto nas sombras da noite, passei a caminhar no meio das ruas, plenamente iluminado por postes de luz alaranjada. Eu, que não ligava para os embrulhos, agora os carrego agarrados ao peito, temendo qualquer sinal de um meliante delinqüente.

É que a gente perde o tino de aventura, porque, de repente, parece ser imprescindível jamais perder o que se conquistou. E a aventura implica em perdas. Então nos abstemos de sentir, de ir além, de andar no escuro. Agarramos nossos pacotes com firmeza, como se dentro deles houvesse uma felicidade qualquer. Não há. Há o tédio cotidiano, ao qual, invariavelmente, nos habituamos.

Eu, que de jovem fui tão extremo, hoje olho com reprovação para qualquer ousadia. Ando até mesmo ficando chocado à toa, balançando a cabeça em negativa muda, qual senhorio do século XVII. Escandalizado com a não-artificialidade da vida.

Acho que penso assim: “A vida, meus amigos, tem que ter protocolo. E parcimônia, e comedimento, e previsibilidade. A vida tem que ser ensaiada e seguida pelo roteiro, sem improvisos, sem destoâncias, protocolada mesmo”.

Eu digo isso e uma parte minha gargalha. Eu abafo a gargalhada e sorrio pedindo desculpas ao ar. Não é possível tolerar qualquer manifestação assim, mais sincera e explosiva. Isso pertence aos animais, não a nós, humanos e burocráticos.

Caí nos contos em que nunca acreditei. De repente a felicidade parece mesmo isso, de promover jantares aos amigos, cuidar para que a torta não queime no forno, servir café fresco e depois dormir cedo, com pijama de listrinhas e meias nos pés.

Ser feliz, de repente, me é estar satisfeito. Simplesmente satisfeito, nem mais, nem menos. E isso é medíocre. É medíocre para quem não queria fingir sorrisos, não queria assar tortas, não suportava café e sempre preferiu dormir nu. É medíocre para quem queria ser poeta byroniano, decadente e um pouco gótico. Ser um simples homem, enfim, é medíocre demais para quem já se chamou de “Anjo Maldito”.

Pedregulhos

Minha sina é escrever coisas das quais o sentido escapa. E eu gosto. Não sou escultor de compreensões. Ainda que meus textos permaneçam in-de-ci-frá-veis, são enigmas nos quais eu gosto de me encontrar, sozinho. Para mim eles são cristalinos, transparentes, tessitura de espelho mesmo. Para os outros são opacos como mármore. Uma penca de mármore a ter serventia nenhuma.

Olham minhas escritas, então, como olhariam essas obras de arte moderna. Sabendo que no não compreender é que está o sentido. Balançam a cabeça e de mão no queixo murmuram qualquer coisa indecifrável, que soa como “bonito”, mas bem poderia também ser “ridículo”.

O mármore sem serventia. As palavras sem um sentido. Moderno, muito moderno. Não é. É só que eu falo de dentro e a alma minha não é coisa que todo mundo pode ver. Às vezes nem eu consigo. Mas se escrever me basta, ler algo bonito e sem sentido deve bastar a vocês. Ao menos é mármore, não basalto cru.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Escondido

Para Mr. W.G.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez.
Lá vou eu, quem não se escondeu é meu!

Você abre as pálpebras, ofuscando com a luz. São três horas da tarde e a sua rua é, de repente, toda deserta. Os outros se esconderam em lugares inimagináveis, quiçá para sempre.

Você anda sozinho. Olha atrás de árvores magras, dentro do estômago de casas destruídas, atrás de muros altivos, todos eles pintados de festa. Nada. Corre de volta para o poste, em armadilha de fazer alguém se entregar, mas ninguém se entrega a você. Sua cabeça, automaticamente, se cabisbaixa. Seus pés procuram pedregulhinhos para chutar.

Sozinho na tarde é que eu venho. Você, no entanto, não sabe que eu também estou a brincar. Na dúvida entre o rosto e o nome, você não pode correr e gritar: “Um dois três pro Fulano!” Você não sabe se sou Fulano.

Mas eu sou. Sou e olho, divertido, você se escondendo de mim. Sozinho na rua, com amigos fugidios. Nos encaramos muito que levemente. Eu não sorrio também. Não sou besta de me entregar tão assim, gratuito. Finjo acreditar que você não me conhece. Finjo até acreditar que eu também não me conheço. Se você me tocasse saberia, eu não desapareço no ar. Se você tentasse não precisaria ter que voltar a fechar.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez.
Lá vou eu, quem não se escondeu é meu!

Eu não me escondi e nem assim você me achou.

Bendita

Sobre a estante de Benedita há três santas de gesso e uma madona de prata. No meio de todas elas, arde uma vela pensante. O milagre está em vias de ser solicitado, sem muitas burocracias, só com uma frase rápida a la virgen de Guadalupe. Que, aliás, nem está entre as imagens das santas européias.

Benedita cruza os dedos grossos e reza baixinho, implorando na prece por resultado favorável. Reza com zelo, com terço e sem esperança. Mas é que não custa arriscar.

As santas bebem a vela, vermelhas e afogueadas pela luz no quarto escuro. As sombras dança na parede de cupins, as imagens balançam cada vez que passa um caminhão. O quarto esquenta e a chama arde lenta.

Benedita se deita, a madona se deleita. Nunca antes recebeu vela nem oração. Pensa na tal Guadalupe, não conhece não. Enfadadas as santas nem entenderam o que a velha disse. De qualquer modo, mandam agradecer a vela quando toda queimada e prometem, se virem a tal Guadalupe, elas darão o recado. Pode confiar. No mais riem soltas, bêbadas de luz e prece.

sábado, 27 de março de 2010

Reis e tolos

Como um rei arquétipo e apático que ao chamar seus guerreiros dissesse assim:

— É lamentável que tenhamos perdido todas as nossas batalhas. Com pesar, eu vos entrego a minha coroa.

Os lanceiros, escudeiros e os que simplesmente tocavam as cornetas reais pararam em espanto. De quem seria a coragem maior? Do mais tolo, o bobo da corte:

— Mas Senhor Rei, é preciso lembrá-lo que ainda nem começamos a batalhar. Sequer uma vez enfrentamos os inimigos, então, é certo que, se não ganhamos, também derrotados nós não fomos.

O rei olhou sorumbático. Desfez-se da coroa, do manto e do cetro. Foi ao quarto lamentar-se da derrota imprevista. Ele sabia, intimamente sabia, antes mesmo da batalha, que já estava vencido.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Otimismo (Texto em dó de mi maior)

Então, fica combinado que esta noite não dormiremos. Comumente acertado que passaremos cada minuto de olhos abertos, no escuro. Vamos esperar o dia com sofreguidão e ânsia e medo. Como se temêssemos a luz, até a luz. Trataremos, pois, de ficar em mergulhados em aflições até saírem todos os resultados, favoráveis ou não. Suspenderemos a respiração do que em nós vive até segunda (feira ou ordem), e imaginaremos finais (cada dia mais catastróficos). Fica combinado que, para nós, qualquer barreira será o fim.

Ou então, fica combinado que esta noite dormiremos. Comumente acertado que fecharemos os olhos, nem que à força, e iremos esperar que os sonhos nos venham levar para qualquer lugar longe da realidade. Fugiremos em oníricas nuvens e hoje, só hoje, poderemos ser até o que não fomos. Apesar disso, fica combinado que, para nós, qualquer barreira será o fim.

Ou ainda então, fica combinado que esta noite faremos qualquer coisa. Comumente acertado que nos deixaremos carregar, seja para o sono, seja para a insônia. Trataremos de deixar o futuro ao deus para o qual ele pertence e descansaremos, simplesmente. Vamos tecer qualquer esperança de que tudo dará certo e segunda seremos, primeiramente, felizes. Continua, no entanto, combinado que, para nós, qualquer barreira será o fim.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Das fotos tortas

Como numa foto, das antigas Polaroides, na qual a gente ficasse feio ou estranho demais. Sem solução. Imagem condensada, fluindo direto do negror da lâmina. Aparecendo assim, sem jeito, feia mesmo. A gente com cara de bobo, parecendo mais idiota do que é. Qualquer coisa no cabelo bagunçado, na boca aberta para falar, nos olhos fechados, na mão quase erguida.

Qualquer coisa tola, de um instante malogrado, apertado fora do clic e eternizado. Eternizado errado. Qualquer momento captado fora do seu momento. E de repente não há mais filme. Era a última foto, deveria ter sido A Foto. E não foi. Só não foi. A gente de repente estragou a pose, bem na hora. E... Flash!

quinta-feira, 18 de março de 2010

Um Rato e Três Mosqueteiros

Numa fatídica noite de algures, nos invadiu a casa a prova última da miséria: um rato. Ághata foi a primeira a vê-lo e, com seus modos particulares, classificou-o como qualquer coisa entre um ratão do banhado e uma capivara ressecada.

Eu desconfiei, ciente dos exageros da velha. Na outra noite fui eu a ver o roedor. Como eu desconfiava, era qualquer coisa pouco maior que um camundongo cinzento. Inofensivo até, quase pueril e engraçadinho.

Meu pai, em brios de mostrar serviço, catou na despensa qualquer veneno velho e, misturando com açúcar, supondo que o rato gostaria de uma morte doce, depositou a mistura letal na saleta de estar.

Na manhã seguinte os grãos cor-de-rosa haviam sido devorados todos. Ficamos com nossa ânsia assassina exultante. Havíamos matado o invasor e ainda por cima vencido a guerra.

Na mesma noite ouvimos os mesmos ruídos, o rato roendo os rabanetes do seu Raimundo, sim, porque Roma nem tem mais rei. Repetimos a operação do veneno açucarado, já desconfiados da sua eficácia.

Novamente o camundongo devorou o veneno e ainda espalhou pelo chão (como direi?) “detritos” rosadinhos. Estávamos, pois, a engordar o rato com veneno mortal.

Ah, não. Eu que não suporto ser subjugado armei de pronto uma caçada. Antes porém, é preciso adiantar: nossa indignação com o rato era tamanha porque, além dele, possuímos como bichos de enfeite, digo, de estimação, três gatos gordos. Como, por Deus, em uma casa de três gatos pode se criar um rato? É ousadia demais.

Continuando. Identificamos, pois, o possível móvel onde o ratazano (porque suspeito que é macho) estaria escondido e tramei o seguinte plano. Os gatos seriam todos transportados de suas costumeiras camas à sala, tão logo se fizesse noite. Depois, eu e meu pai puxaríamos o móvel suspeitíssimo e observaríamos (orgulhosos) o bom trabalho dos três bichanos.

Desnecessário ao relato incluir que eu já havia preparado, inclusive, um banco sob o qual trepar caso o rato planejasse violentos ataques terrestres.

Eu mesmo me encarreguei do transporte dos caçadores. Depois, conforme o planejado, puxamos o móvel e...

Francisco Alberto, vulgo Chico, 16 anos, com sua pose de Sr. Gato e investido de enorme paciência santa, foi deitando-se, em câmera lenta, no meio da sala. Onde prodigiosamente esticou-se todo de costas, apto a receber qualquer demonstração de carinho.


Jhony Henrique, o gato do meio, honrou sua enorme fama de covarde, indo esconder todos seus quilos sobressalentes debaixo de uma poltrona azul. Devidamente protegido de qualquer ação, sua maior ousadia foi espiar a sala, com olhos muito grandes e enormemente vesgos.

Victor Avalon, 6 meses, nossa maior esperança, prodígio em caçadas à borboletas e outros insetinhos voejantes, muito bem me olhou, como a dizer: “O que esperam mesmo que eu faça?” Coloquei ele atrás do móvel, prevendo a perseguição e a vitória de suas manhas felinas. Ele muito lentamente farejou tudo, atravessou encostado à parede, e foi para frente da porta, esperando a hora de poder voltar para a cama.

Em total decepção, já desistidos de nossas feras felinas, meu pai e eu, munidos de espetos e porretes nos colocamos a caçar nós mesmos a criatura vil que invadira a sala. Nem sombra do rato encontramos.

O jeito foi mesmo comprar um veneno melhor. Desde ontem não se sabe mais do rato. Certo é que meus gatos inúteis não o caçaram, bandidos que são. Talvez o veneno tenha surtido efeito. Ou talvez o camundongo tenha morrido diabético, de tanto açúcar misturado. Oxalá esteja mesmo morto... Mas alguma coisa me diz que ainda teremos notícia do vilãozinho.

Amor Amador

Uma das minhas primeiras ânsias como pessoa e enquanto poeta foi a de sentir amor. Minha necessidade de amar era tanta, que eu confundia, alegremente, qualquer coisa com amor. O sofrimento, por exemplo. Eu achava que sofrendo eu amava.

Nas recusas e repulsas, por vezes suavizadas, por vezes pungentes, eu me achava delicadamente amando. Como se sentir algo unilateral e de intensidade insustentável fosse amar verdadeiramente.

Eu creditava meus choros ao amor sentido. As noites insones, os sofrimentos perturbadores de quem muito sente, as decepções, tudo eu encarava da mesma forma, como sendo amor. Era a estes sentimentos enganados que eu fazia poemas e prosas.

Foi então que eu descobri você.

De repente eu vi o amor no inverso de tudo aquilo em que eu o colocara. Então não era no sofrimento, mas na felicidade que estava o amor? Não era nas decepções, mas no consolo. Nunca nas lágrimas, mas nos sorrisos...

Aos poucos compreendi. Tive a humildade de me deixar aprender a amar, depois de tanto dizê-lo. Hoje sei que o amor reside nos braços quentes de quem te abraça pelo simples abraçar. O amor é assim, nada dispendioso. O amor é aconchego e carinho. É o colo quando se precisa de colo. É o puxão quando se necessita de puxão. É beijo quando só o que se quer é beijo.

Só existe amor perante a entrega e a completude. Amar é se deixar cuidar e é cuidar de quem se ama. Amar é fazer o outro feliz, simplesmente porque isso vai te fazer feliz. Amar é só lutar pelo mesmo sonho e falar ao mesmo tempo. Amar é sentir que o peito vai explodir de tanto que se quer alguém bem. Amar é fazer de duas vidas uma só.

B, eu amo tu.

terça-feira, 16 de março de 2010

Roubo de Rimas

Meu poeta pegou todas minhas rimas tortas e foi ali comprar cigarros. Depois de algum tempo lembrei que ele não fuma. Desgraçado. Fiquei aqui. Desolado. De lado. Inutilizado. Sem letras, sem rimas, sem escritas para me salvar o resto de alma.

Eu mudo. Ele deve ter se mudado, cansado de minhas enfadonhas críticas de marido suburbano. Poeta é sempre sentimental. O que me restou foi esse nada racional, a discorrer sobre o patético e a Poética na mesma frase inacabada.

Ficamos então sem fim, sem estrofe, sem metro. Ficamos sem sentido, de repente. Falta o que dizer, porque, entendam, ele me roubou as palavras todas. Armário vazio, gavetas limpas, até os trocados. Ele disse que eram para o cigarro.

Sou alérgico a cigarros. Ele não fuma. Somos o mesmo, o homem roubado e o poeta fugitivo. Se não escrevo, portanto, é porque me falta material. Pega Ladrão!

quarta-feira, 10 de março de 2010

Prozac



Entre comprimidos
coloridos
e goles grandes
d’água morna
sobrevivo,
(sem pujança)
à minha ânsia
assassina

Assim me é dado
ter de volta
o fluxo fleumático
(e o refluxo)
dessa vontade
(asmática)
de ficar na vida
(e há saída?)

Ser ou Tonina?
Ah, minha,
minha Fluoxetina.
O que me dá
é alegria encapsulada
(mais nada)

terça-feira, 9 de março de 2010

Meu amor, perdão.

Mesmo com as marcas das facas me abrindo a carne, eu te peço perdão. Ajoelhada, humilhada, sangrando até a alma, eu ainda te peço perdão. Perdão por ter feito você me cortar. Perdão por dar motivos para você, lentamente, poder me matar.


Peço perdão por chorar enquanto sofri, enquanto doía minha pele tão frágil. Deus sabe o quanto meu pranto te irrita, então perdão, meu deus, perdão. Mesmo com os cabelos arrancados - por tuas mãos - aos punhados, eu te imploro perdão. De vestido rasgado, olho esquerdo inchado, lábio por dentro cortado, perdão.

A mesma palavra sempre balbuciada sem força, atirada exangue, num fio de voz gotejante, o sangue pingando em tuas botas polidas, perdão, meu senhor, por sangrar e sujar a tua bota.Mesmo chutada com força no estômago, socada sem dó na parede, picada com a faca e a ferrugem, eu te peço perdão.

Perdão por não ter percebido antes que a errada não era eu. Por não ter notado que você era um imprestável medíocre, maldito e ferrado. Perdão por eu ter me submetido a ser tua mulher. Perdão, acima de tudo, perdão, por não ser eu a ter te matado, minutos atrás.

De mestres, professores, escritores e poetas

Eu imagino que um Mestre deve escrever com rebuscamento e polidez. Qualquer coisa assim prolixa, que necessite ser decifrada e lentamente digerida. Seu texto precisa ser sério, científico e, preferencialmente, bem embasado. Palavras exatas, lugares medidos, tudo perfeito a fim de demonstrar eficiência e saber.

Eu imagino que um professor deve escrever com cuidado e correção. Qualquer coisa assim polida, seguindo modelos iniciados por um “tópico frasal” e terminados por uma fina conclusão. Seu texto precisa, invariavelmente, obedecer a cada regra, cada disposição gramatical, sem esquecer uma ênclise sequer. Preposições bem alocadas, palavras cultas e na medida, além de alguns poucos usos do ponto e vírgula.

Eu imagino que um escritor deve escrever com seriedade e perfeição. Qualquer coisa assim criativa, apresentando uma opinião e um ângulo novo para se observar. Seu texto precisa ser acessível ao mesmo tempo em que rebuscado. Uma vitrine da sua cultura e de seu refinamento, demonstração da inteligência dos costumes e da habilidade com as letras.

Eu imagino que um poeta deve escrever com criatividade e coração. Qualquer coisa assim bonita, rimada e aliterante, que embale em música o ritmo das palavras e os sentimentos do leitor. Seu texto precisa ser claro e simples, tocante e melódico. Versos metrificados, rimas ricas e sentimentos escaldantes.

Eu imagino que, pensando em tudo isso, eu chegue a uma conclusão inusitada:
Nem sou mestre, nem professor, nem escritor, nem poeta, nem sou nada.
Mas escrevo, escrevo e para mim a escrita é tudo.
De agora em diante, risco meus rótulos.
De meu, só fica o nome.
Ou nem isso.
V.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Grotas Gretadas sem Gotas Caídas

Eu aguardo, feito nordestino, que caia chuva em meu sertão. Há dias estou aqui, seco, hirto, olhando nuvens com cobiça santa e gula nova. Só uma gota, uma gota despencada do olho me salvaria a vida e me mataria a sede.

Uma gota me mataria. Uma gota me salvaria. Sede, eu tenho a sublime sede de choro. Meus olhos incham e ardem e se avolumam e turvam o mundo, mas não choram, são olhos duros, sujos, secos e gretados.

Feito retirante, eu não sei o que fazer com a vida que fica, murchando, torrando no sol que arde. Sem chorar eu não consigo lavar a terra para ver se há mudas em algum lugar. A água é santa e qualquer lágrima é bálsamo. No entanto, há esqueletos meus por todos os lados, vidas que morrem enquanto não chovo.

Eu apóio baldes nos cantos da casa, espalho bacias para amparar as goteiras, cavo valetas em torno de mim. Porque quando chover... Quando chover haverá enchentes. Jogo sal no céu, mas nada. Só o sol ardendo no enorme manto azul-esbranquiçado.

Os mandacarus sem flores, o vento sem correr morro abaixo, o inchu sem abelhas, o jucá sem frutos, a algaroba sem baba e a tacaca sem botar os rebentos pra fora. Esse mês, seu moço, não chove não.

Esse mês não chove e que faço eu de tanto choro represado, de tanto sentimento trancado, de tanta nuvem encardida aqui dentro? Espero. Espero para poder dar água pro meu sertão. Só torço para que, quando chover, a água ainda tenha o que salvar.

Do Mestrado

Se a primeira impressão do meu Mestrado precisasse com urgência ser encerrada em só uma palavra, eu me sentiria perdido. Simplesmente não saberia optar entre “surreal” e “fascinante”, de tão grande modo que nas duas caberia minha experiência.

Surreal porque se descortina para mim todo um mundo de impossibilidades. Como se no abrir de um livro eu pudesse ver concretizados todos os sonhos doidos do próprio escritor. Não é possível, simplesmente não é crível o fato de que existe um lugar assim; em que letras têm valor.

Eu cresci ouvindo que letras são besteiras. Que profissão de homem é ser advogado, médico ou contador, não troca-letras. Que poemas são frescuras. Que a leitura só pode fazer mal. Que gastar com livros é desperdiçar dinheiro. Que artistas são um bando de vagabundos. Eu cresci em mundo todo feito contra quem é feito de papel.

De repente vejo poemas espalhados no ar. Livros libertando sonhos. Textos pintados nos muros. Personagens da minha infância vagando soltos. A leitura tendo destaque inusitado. A literatura como coisa séria e a escrita como um talento fantástico. Tudo deliciosamente surreal.

Fascinante porque é impossível não se deixar conduzir por todo esse tropel mágico que fala de livros e vê pinturas e ouve músicas e assiste peças e escreve poesias de rimas ricas.

Surreal e fascinante porque mostra que existe o mundo que eu quero, o mundo que eu invento a partir dos livros, o mundo em que ouso brincar de escrever.

O aprendizado de Clarissa

Observando os ratos, Clarissa pôs-se a aprender com eles. Eles eram assim: usavam a máscara fajuta da humildade enquanto agradeciam às migalhas dadas ao sol do dia. Na imensidão da noite, porém, despiam-se de escrúpulos e seus olhos brilhavam vivos quando roubavam o que bem entendiam.

A humildade era, pois, só a capa de que se valiam os roedores, representando não fazer frente a qualquer gente. Minúsculos ratilhos, diriam os de corações despreparados. Serezinhos de olhos grandes e pidões, a implorar um restinho qualquer de pão embolorado. Por uma migalha se colocavam trigueiros, gratos imensamente, fugindo para um buraco escuro esconder tão imenso tesouro.

Balela. Tão logo longe dos olhos, os ratos deitam a migalha fora. Eles esperam com paciências mornas que o sol se ponha, que as pessoas deitem, que os gatos durmam. Quando tudo é silêncio e a calma na casa impera, patas pequeninas cruzam silentes o assoalho. À noite os ratos roubam o queijo, mergulham no leite, roem as maçãs mais vermelhas e se deliciam loucamente nos doces de mandarin.

À noite eles servem-se do que querem, porque à noite eles são reis. Impecável a majestade dos ratos que de tão humildes se fazem cães. De tão espertos se fazem gatos. Mendigos e Reis. Servos e larápios. Isso Clarissa, continue a aprender com os ratos.

quarta-feira, 3 de março de 2010

(Des)Caminhos

Se há uma pessoa a quem eu admiro, é aquela que pega um ônibus sem nem perguntar aonde ele vai. Sim, porque eu, de insípido que sou, só subo depois de indagar ao motorista o destino, a demora e o preço da passagem. Não, eu não estou falando de viagens, estou falando da vida. Mas a analogia me cabe bem, porque realmente sou assim. Inclusive nas viagens.

Eu admiro essas pessoas ainda mais quando percebo que elas desfrutam a paisagem ou simplesmente pegam no sono. Eu fico teso, reto, só espiando para ver se não perco o ponto, não relaxo nem por um segundo.

As pessoas que eu admiro têm a certeza de que, se forem parar no lugar errado, podem voltar e refazer o percurso. Elas podem dormir umas noites no hotel de uma cidade estranha. Elas podem pedir carona ou pegar um táxi. Enfim, elas podem desfazer o engano, encontrar o caminho certo ou passar pelo errado, sem preocupações maiores.

Qual o meu medo, afinal? Meu medo é ficar perdido pra sempre, eu acho. Ainda preciso descobrir que o destino é incerto, é dúbio, é duvidoso e não há como controlar isso, há só como seguir. Depois, se não funcionar, preciso aprender que posso pedir uma passagem de volta. Eu preciso aprender a me entregar à beleza que é essa confusão de vida. Eu preciso entender que, se não posso controlar tudo, ao menos tenho como voltar, caso meu caminho não seja esse.

Promessas

Far far, there's this little girl
she was praying for something to happen to her
everyday she writes words and more words
just to speak out the thoughts that keep floating inside

Eu prometo. Eu prometo que mesmo só por hoje vou rezar e ter um pouquinho de fé em você. Eu prometo que vou aceitar sua mão, ainda que ela seja invisível. E prometo que não vou tentar controlar nada.

and she's strong when the dreams come cos' they
take her, cover her, they are all over
the reality looks far now, but don't go

Eu prometo que quando o sonho chegar, vou deixar ele pousar no meu peito. Eu prometo que vou alimentar ele com esperança, não com lágrimas. Eu prometo me deixar acreditar, só por hoje.

How can you stay outside?
there's a beautiful mess inside
how can you stay outside?
there's a beautiful mess inside

Eu prometo achar bela a bagunça dessa vida. Eu prometo dançar mesmo se cair um temporal e prometo cantar, sem nem ter motivo, só de besta. Eu prometo que vou aceitar ser besta.

Far far, there's this little girl
she was praying for something good to happen to her
from time to time there're colors and shapes
dazzeling her eyes, tickeling her hands
they invent her a new world with
oil skies and aquarel rivers
but don't you run away already
please don't go

Eu prometo não desistir de você, se você prometer não desistir de mim. Eu prometo fazer coisas bonitas com tudo que você me der. E prometo entender quando você não me der nada, nem esperança. Eu prometo ser mais forte que eu.

Take a deep breath and dive
there's a beautiful mess inside
how can you stay outside?
There's a beautiful mess
beautiful mess inside

Eu prometo mergulhar em cada coisa que fizer. Eu prometo fazer coisas, não esperar que elas caiam do céu. Eu prometo não me decepcionar. Eu prometo me largar de abismos, sempre que você disser: “Vá, você pode voar”.

Far far there's this little girl
she was praying for something big to happen to her
every night she ears beautiful strange music
it's everywhere there's nowhere to hide
but if it fades she begs
“oh lord don't take it from me, don't take it yourselves”

Eu prometo que só por hoje não vou perguntar se o mundo está certo assim. Eu prometo que não vou questionar a vida, vou vivê-la. Só hoje. Eu prometo.

I guess i'll have to give it birth
to give it birth
i guess, i guess, i guess i have to give it birth
i guess i have to, have to give it birth
there's a beautiful mess inside and it's everywhere

Eu prometo ficar com os dois pés no presente. Eu prometo fingir que posso morrer no minuto seguinte. Só por hoje eu vou ficar satisfeito com a paisagem do caminho. Eu vou sorrir sem muito motivo, prometo.

So shake it yourself now deep inside
deeper than you ever dared
deeper than you ever dared
there's a beautiful mess inside
beautiful mess inside

Eu prometo que vou deixar você me mostrar quanta beleza há na minha confusão. Eu prometo que só por hoje vou fechar os olhos ao andar por aí. Eu prometo respirar e ouvir e olhar. Eu prometo não me preocupar se amanhã ainda terei nariz, ouvidos e olhos. Eu prometo que deixo você me carregar na brisa. Eu prometo que hoje vou acreditar, até em mim, até em mim... mas só por hoje.

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Este post foi todo regado pela música Far Far, de Yael Naim.
A tradução, você encontra aqui.
E a música, aqui.
Não deixe de conhecer ambas. 
Feche os olhos ou dance no escuro. 
Não é por mim, é por você. Acredite, só hoje também.

Emoções Colecionadas

Nada de insetos, moedas, miniaturas ou selos, eu coleciono emoções. O que mais me fascina é sentir o que eu nunca antes senti. Amor, ódio, paixão, saudade, felicidade... Todas essas emoções são figurinhas repetidas, nos vêm até com certa facilidade. Aquilo que se sente sem nome é o que me delicia e horroriza.

Eu poderia rabiscar exemplos disso, mas prefiro citar Clarice Lispector¹: “Se recebo um presente dado com carinho por pessoa de quem não gosto – como se chama o que sinto? Uma pessoa de quem não se gosta mais e que não gosta mais da gente – como se chama essa mágoa e esse rancor? Estar ocupada, e de repente parar por ter sido tomada por uma desocupação beata, milagrosa, sorridente e idiota – como se chama o que se sentiu?”

Quando apresentei minha monografia senti algo completamente inusitado. Tomou conta de mim um misto de nervosismo e apreensão, orgulho e gratidão, além de inúmeras outras coisas inqualificáveis. Guardei tudo na coleção. Em qualquer outro trabalho importante a ser apresentado, eu já sei o que sentir.

Percebam que minha coleção é fruto do medo. Eu tenho um medo imensurável do que ainda não aconteceu, do que eu ainda não senti. Porque nenhum homem já se sentiu todo. Colecionar essas pequenas ou dilacerantes emoções me garante um piso seguro no qual caminhar.

Fazer uma prova de Mestrado foi outro sentimento diferente de todos os outros possíveis. Participar da entrevista, então, não pode ser comparado a nada que eu consiga colocar em palavras. Ser selecionado foi um pouco parecido com passar no vestibular, então não me surpreendi tanto.

Amanhã eu sei que tenho uma série de emoções novas pela frente, que me farão temer e tremer. Meu coração vai virar caixa de Pandora aberta, monstros soltos, incontroláveis. Eu vou recolher um a um dos sentimentos, guardando para usá-los em medos futuros. Nenhum deles, porém, será mais forte do que este que eu sinto agora. Já me invade uma emoção nova, misto de tristeza, sonho e desesperança. Como chama isso? Não sei, mas essa é a única emoção que eu preferia nem guardar na minha coleção.

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1 - Fonte: A Descoberta do Mundo.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Clarissa de volta

Eu passava distraído, me encolhendo entre as sombras, quando vi Clarissa. Choque. Clarissa caída à sarjeta, meia arrastão rasgada, maquiagem borrada, salto da bota quebrado. Clarissa desgrenhada, chorosa, feia e fraca. Clarissa quase preta de rímel escorrido, de sujeira atravancada, de esperança mal lavada. Clarissa pobre, esgotada, sugada, arranhada e maldita. Roída de ratos, desfeita em trapos, Clarissa.

Ela me olhou como quem não reconhece. Eu a olhei como quem não vê. Ela estendeu a mão, pedindo a minha. Eu, em choque, dei. Seus amantes e preferetis, seus concubinos e íncubos, seus namorados e consortes, onde estão, hein, Clarissa? “Não sei...” disse ela com voz em sopro de vela. “...sozinha...” Clarissa nem gente mais era e eu a quis. Eu a quis para provar que sou melhor e que também a morte me pertence. No fundo, eu só a quis para carregar o castigo de tê-la.

Por todo tempo mantive Clarissa segura, no escuro porque as pupilas doíam. Com papas porque o estômago se retorcia. Com bandagens de algodão porque as feridas sangravam. Sem espelhos, mas também sem gaiolas. 

Eu ainda tenho Clarissa no porão. À noite deixo uma janela aberta, tenho a secreta esperança de que um dia ela fique forte de novo... e fuja de mim.

Tolos no palco

Todos no palco
Iluminados
Iludidos
Ludibriados

Todos no palco
Empurrões para o escuro
Para o vazio
Pra a coxia e pro frio

Todos no palco
querendo brilhar
Esperando a deixa
que ainda vai demorar

Todos no palco
querendo aparecer
Mais do que
Todos no palco

Ninguém na platéia
Tolos no palco


Foto por V. Linné - Grupo Tholl.