quinta-feira, 31 de julho de 2008

Papel

"Não sou eu quem escrevo, são meus livros que me escrevem"

Eu tenho escrito, muito e bem. Mas sabe o que é melhor ainda? Tenho escrito por necessidade. Só quem já sentiu sabe o que é isso. Você escrever para catarsear, você colocar para fora seus demônios espancando as teclas em fúria. Alguém mais aqui escreve para não enlouquecer? De repente você percebe que sua escrita não vai poder mudar nada lá fora, mas ela consegue mudar tudo por dentro.
E se você consegue passar para o papel tudo que sente, toda dor contida, você a deixa presa nas fibras de celulose. O peito fica leve, então, quase nos dando asas. Eu tenho escrito, e eu tenho pensado textos enquanto caminho nas ruas nubladas. Vocês não sabem o quanto isso me é bom. Escrever é tudo que ficou, tudo que eu guardei, tudo que eu escondi para não perder.
Eu tenho escrito, embora muito não possa ser publicado. Preciso de textos inéditos, preciso de vidas veladas em caneta preta. Sim, tenho escrito contos inteiros em páginas e mais páginas de ofício. Logo eu, que sempre detestei escrever à mão, mas é preciso. Depois de cheia a página, dobro ao meio e escondo.
Eu tenho escrito o que, quem sabe um dia, vocês poderão ler.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Inconformismo

“Como é triste a tristeza, mendigando um sorriso”

Há em mim as fomes de um sem fim. Um buraco negro no espaço exato de meus metros. Talvez a dieta explique, talvez os remédios curem, talvez as lágrimas preencham. Não sei. Olho para lados distantes e vejo tanta vida pulsando, tantos caminhos de ouro, tantos refletores brilhantes.
E aqui?
A miséria corrói construções pintadas de cinza, não há qualquer esperança no amanhã, qualquer futuro plausível. E os vermes miseráveis riem, porque pensam que são felizes. Hipócritas, corrompidos pela idéia de que dinheiro não traz felicidade. E o futuro? E os sonhos? E toda loucura? E todo stress?
Não há verbas para stress e ser louco custa caro.
Essa cidade definha, morre, alguns dizem ser praga de um antigo padre, outros investem a culpa na política. Ah, Deus, que seja, eu só queria ver o que há atrás do muro.
Eu preciso desesperadamente de mais do que isso. Eu preciso viver as vidas que são negadas a toda essa gente, preciso provar para alguém que sou melhor do que tudo isso que me dão.
Há um abismo de muitos passos e uma poltrona confortável na beirada, só que ninguém percebe que atravessando o abismo a terra é de ouro e os rios são de mel.
Eles se perguntam: “Para que arriscar?”. E eu, hoje, me pergunto: “Como arriscar?”.
Porque o risco é tudo que quero, tudo que me mantém vivo. Eu preciso sair de toda esta lama, de toda essa chuva, antes que esta terra tome conta de mim.
Há tanta gente no mundo, porque eu tinha logo que ser eu?

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Efêmero

A tia da limpeza esfregava sua solução multi-uso (sapólio e álcool, a mesma usada para limpar os sanitários, lavar as toalhas, lustrar o assoalho, arear as panelas, dar brilho aos azulejos, limpar os vidros e, dizem as más línguas, fazer o café) no quadro branco de PVC.
Com isso ela pretendia tirar as fitas adesivas coloridas que, com muito trabalho, um ano antes tínhamos colocado para montar uma tabela de indicadores. Naquele período parecia fundamental ter esta tabela na empresa.
Você já pensou em quanto a vida é efêmera? Onde estará sua certidão de nascimento, daqui 100 anos? Ah, por favor, eu nem sei onde guardo a minha.
Você passa oito horas do seu dia em um escritório. Preenche formulários, faz relatórios, laudos importantíssimos, se estressa ao máximo e em seis meses estes documentos todos estarão na caldeira da empresa.
Você dorme só duas horas por dia, vira a noite fazendo o trabalho de faculdade, consegue terminar um dia depois do prazo, a professora já avisa que não vai valer tanto quanto o dos outros. Ok, mesmo assim, é o melhor trabalho que você já fez na vida. Uma semana depois a mestra devolve: Sinto muito, tive que te dar só 7, você esqueceu de mencionar os castores alados marroquinos, você não percebe a ligação entre eles e os pingüins hermafroditas escandinavos? Não, você não percebe, mas não importa, no próximo semestre o trabalho é só mais um monte de papel inútil.
Mais uma vez, sou obrigad a concordar com a Rita Lee:


O ovo frito, o caviar e o cozido
A buchada e o cabrito
O cinzento e o colorido
A ditadura e o oprimido
O prometido e não cumprido
E o programa do partido
Tudo vira bosta...

O vinho branco, a cachaça, o chope escuro
O herói e o dedo-duro
O grafite lá no muro
Seu cartão e seu seguro
Quem cobrou ou pagou juro
Meu passado e meu futuro
Tudo vira bosta...

Um dia depois
Não me vire as costas
Salvemos nós dois
Tudo vira bosta...

Filé 'minhão', 'champinhão', 'Don Perrinhão'
Salsichão, arroz, feijão
Mulçumano e cristão
A Mercedes e o Fuscão
A patroa do patrão
Meu salário e meu tesão
Tudo vira bosta...

O pão-de-ló, brevidade da vovó
O fondue, o mocotó
Pavaroti, Xororó
Minha Eguinha Pocotó
Ninguém vai escapar do pó
Sua boca e seu loló
Tudo vira bosta...

Um dia depois
Não me vire as costas
Salvemos nós dois
Tudo vira bosta...

A rabada, o tutu, o frango assado
O jiló e o quiabo
Prostituta e deputado
A virtude e o pecado
Esse governo e o passado
Vai você que eu 'tô cansado'
Tudo vira bosta...

Um dia depois
Não me vire as costas
Salvemos nós dois
Tudo vira bosta...


domingo, 20 de julho de 2008

Céu de Giz

"Eu desço dessa solidão..."

Os olhos. A fotografia escondeu os olhos, mas eu posso imaginá-los, de cílios tão longos quanto o olhar, íris em tons cuidadosamente pintados à giz. A boca está à mostra, vermelha e carregada de sons quentes. Nada ouço, estática, imortalizada em filme fotográfico. Não me é tátil sequer a fotografia, mas posso sentir o calor de seus beijos, as coisas doces que gemeria em meus ouvidos ao cair da noite, os arrepios que desenharia no meu corpo.
A cera, das velas, pingaria lentamente iluminando a ilusão do quarto, a solidão dos prédios, a solução dos cálidos corpos. Minhas mãos se perdem na pele tão alva, dedos fáceis de toque leve desenhando seus contornos, rabiscando seus sentidos.
E sei que você pode me sentir, no calor da tarde, na distância dos passos, no vôo dos pássaros, no frio das telas. Você olhou meus olhos? Tudo que não posso é ver os seus. Mas imagino. Olhar mau, hipnótico, enlouquecedor. Convidam-me à tua vida, carregam-me à tua cama, cantam-me outra música.
Eu vou chorar quando a manhã chegar, quando for inevitável acordar, quando só puder esquecer, quando você me pedir para ir embora, tendo nos olhos minha mesma vontade de ficar.
Há algo, eu sei, necessário esconder de mim no teu olhar. Agora eu volto à rotina, a todo riso falsificado, a todo papo furado. Se eu, por descuido, tivesse visto estes olhos que me negas, não teria outra vida, senão a que me desenharias, à giz, sempre.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Às mudas penas

Sinto-me velho e livro, carcomido por traças. Já tive tanto a glória como o apogeu. Percebem como o depois é triste e a noite escura? Pergunto se resta algum talento. Eu antes estava no palco que brilha, visitas, comentários, paixões. Agora resido velho, contente quando alguém chega para ouvir minhas histórias ultrapassadas pelo passado. E sei que ouvem com pressa de ir.
Feito em um asilo de escritores fantasmas. Sem nome, sem prêmios, sem uivos e aplausos. Definho.
Talvez se voltassem os louros da vitória, se a pena triunfasse a espada. Mas é silêncio dentro da alma e silêncio como resposta em eco.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

À mestra, sem amor

Porque as flores da loja eram muito caras e nem tão belas, o menino colhia as rosas do jardim. Não as murchas, não as opacas, não as sem viço. Colhia as mais vermelhas, cheirosas e belas. Seus dedinhos despetalavam esforços para quebrar os verdes caules. Depois de apartada a flor da roseira, ainda se prestava a quebrar cada um dos espinhos. Não raro os fincava nos dedos macios, alguns ainda lhe doem e na certa que inflamam até o dia amanhecer.
O primeiro amigo que passou o convidou para ir jogar bola. Ele não quis. O segundo, já o chamou de Maricas e lançou-lhe uma pedra na testa. Ele não chorou. Naquele momento, todo seu mundo se traduzia em arrancar as rosas, tirar os espinhos e colocá-las numa velha garrafa com água.
Está certo, seria muito melhor colocar no vaso bonito, mas teve medo de quebrá-lo. Além do mais, a beleza das flores, certamente, compensaria a pobreza do suporte.
Já sentia frio quando terminou, anoitecia. Nem o frio, nem a dor, nem a humilhação o fizeram menos feliz. Era o mais perfeito buquê que já existira. Não porque ele o fizera, mas porque deveria ser, era um presente para a mãe.
Por que presenteá-la? Não era nenhuma data especial... Ora, presenteava porque a ama. Colocou sobre a mesa da sala e esperou. Ficou com fome, mas queria estar ali quando a mãe chegasse, então não foi pegar nada para comer, ela poderia chegar a qualquer momento.
Enfim, ouvia a voz da mãe. Seu coração quase pulava na expectativa de ver sua reação. Na certa se encantaria com a beleza de seu gesto e o amaria ainda mais.
Márcia entrou gritando. Onde é que já se viu fazer aquela sujeira toda de terra dentro de casa, além disso, meu Deus do céu, o que é isso em cima da mesa? Não me diga que são as minhas roseiras! Você destruiu com o meu jardim? Será que eu não posso nem ir trabalhar sossegada que você me apronta? E olha o seu estado! Você está imundo, meu filho. Ai, pelo amor de Deus, some da minha frente. Vai já pro seu quarto, está de castigo. E hoje é sem janta, não me apareça mais aqui.
Juntou as flores e colocou na lixeira. A garrafa, quebrou jogando pela janela.
Ele foi. Chorou baixinho, as lágrimas escorriam doídas como só. Entrou no quartinho e fechou a porta. A luz deveria ficar apagada, castigo era sempre assim, escuro. Sentou no chão chorar mais. Tinha fome, tinha frio, doíam os dedinhos, a barriguinha, doíam os olhos já de chorar, doía aquele nó preso na garganta que ele não sabia bem que nome tinha, porque nunca antes o sentira. Doía o peito inocente e doía a alma, com um perfume suave de rosas.

sábado, 5 de julho de 2008

Colheita de Encanto em Campo

Estrelas do campo se espalham no céu
E a menina as colhe, uma a uma.
Florezinhas de brilhantes num mar azul
Voa perto e beija a lua.

Volta, vestida de nua.
buquê de flores estrelinhas.
Derrama-se na relva, corre e escorre
para a água, sem anágua,
afunda num mar celeste

E perde estrelas no caminho
flores levadas pelos peixinhos
Bem fundo, pra lá e pra cá.

Amanhece, canta o pio do passarinho
A menina acorda, desafogada
Pensa que sonhou, a coitada.
Passa o pente, sente frio
Mas lá, do último fio
Despenca ainda uma estrela de rio.