terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Under the stars

É a primeira vez que sento aqui sob o olhar deles. Em meio a estrelas de puro glitter, eles me olham escrever, me vigiam, me incentivam. É para isso que eles estão ali. Clarice, a maior, me olha bem nos olhos, feito mãe orgulhosa. Confiante, dizendo “É isso aí! Vai!”. Virginia deve ter acabado de dizer algo engraçado porque Martha ri sem parar. Frida, alheia, faz alguma pintura, mas sei que é para mim. Katherine não gostou de eu tê-la colocado ao lado de Amelie, menos ainda de tê-las comparado, fisicamente, eu digo. Algo nos cabelos, não sei. Caio ri muito e está ao lado do cantor que sempre, sempre, liguei com ele. Talvez eles tenham se conhecido. A impressão é forte. Neil sorri, sabendo que eu compreendi o que ele diz na frase de número 3. Julie parece prestes a ir embora, ela é quem me lembra das complexidades do amor. Oscar se inclina para me ouvir cada vez que leio em voz alta. Ele se interessa e sinto que virão dele as críticas mais severas e, portanto, as mais úteis. A tela do computador quase se deita para que eu possa ver os outros. Renato me traz rosas numa foto que já foi comparada comigo. Érico descansa entre uma vírgula e outra, enquanto o exato oposto da Bruma se desenrola pelo piso, atrás dele. Eduardo quase não aparece, envolto em sombras. As mesmas que ele usa na vida real. As mesmas. Elleanor se funde ao fundo, discreta que é, sussurrando que é preciso inovar em cada inspiração. Eduardo sorri simplesmente. Ele sabe. Lionel só me espia. É de uns toques seus que eu preciso só. Sobre tudo uma menina voa, frases pululam e um jornal anuncia uma mulher que veio de longe. Eu sei quem ela é. Eu vim do mesmo lugar. Uma ponte na qual ninguém vai completa o cenário, é onde eu quero chegar. É lá a próxima parada. Em um canto, um resto esquecido. Três fotos, por enquanto, de ponta cabeça. Emborcadas para me lembrar, especialmente, o porquê de eu conseguir. É porque eles conseguiram. Esses fracassos, essas fraudes, essas famas inglórias. Eles conseguiram, então eu posso também. Esse é o primeiro texto que escrevo sob olhar deles. E sinto que consegui chegar exatamente no que queria. No sentimento que eu desejava, no encorajamento que agora me possui. Tudo vale. Como repete Neil. Faça o que for preciso. Responda às três perguntas no centro de tudo. Acredite. É isso que eles me dizem.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Há temporais, por fora e por dentro

Hoje, quando o temporal chegou, eu cuidei bem. Primeiro tudo ficou quieto, como que à espera. Tudo parou, de repente. Depois é que vieram as nuvens, escurecendo a cidade, acendendo os postes de luz, espantando cachorros e gatos da rua.

Depois veio o vento, fechando janelas, batendo portas, varrendo as folhas da calçada. Só depois veio a chuva, forte, vigorosa, lavando tudo.

Hoje eu cuidei bem. Cuidei porque em mim também se faz temporal. Também se acenderam  as luzes, também se varreram as folhas, se bateram as portas. Eu estou em pleno temporal. Por dentro. 

Eu cuidei como foi. Cuidei porque é preciso pará-lo em algum momento. O temporal em mim, quero dizer. É preciso colocar tudo em nova ordem, terminar. Com as nuvens, com o vento, com a chuva. É preciso fazer tudo ficar bom de novo. Fazer calmaria brotar de algum lugar.

Eu cuidei, mas me fascinei tanto pelo barulho da chuva que adormeci. Não vi como ela parou. Não aprendi, ainda, como se faz para o temporal terminar. Talvez porque, no fundo, eu sei que nada depois dele vai permanecer como era. Será preciso reconstruir tudo. E já não sei, se em mim, há disposição para tanto. Não sei.


domingo, 11 de janeiro de 2015

Se isso fosse um musical

Se isso fosse um musical, essa seria a parte em que eu me levantaria daqui, derrubando a cadeira, deixando virar o copo d’água sobre a mesa, atirando no chão os livros sobre a escrivaninha. Tudo em câmera lenta, com close em cada objeto. Não haveria raiva em mim. Talvez alívio.

Então eu sairia pela porta enquanto a música aumentasse, gradualmente. Depois eu cruzaria o portão, indo para o meio da rua. Atrás de mim algum carro pararia buzinando. Mas eu não olharia. Não, eu não olharia para trás nem uma vez.

Eu estaria cantando. Eu cantaria em voz grave, baixa no começo, ganhando confiança quando os primeiros pingos de chuva começassem. Sim, se isso fosse um musical começaria a chover conforme o céu fosse escurecendo e eu fosse caminhando, sem parar.

A chuva cairia sobre o meu rosto, molharia meus cabelos, grudaria ao corpo as minhas roupas. Eu tiraria meus óculos e derrubaria no chão. As luzes da cidade acenderiam. Eu já estaria no centro, então. A câmera mostraria meus passos, já descalços, enquanto o asfalto molhado refletiria os postes, tremulando a cada gota que caísse.

E eu continuaria cantando, se isso fosse um musical. Eu continuaria andando, se isso fosse um musical.

Aos poucos, as casas ficariam mais esparsas, os campos seriam iluminados pelos carros que passassem, pelos raios que viessem, enquanto eu continuaria, no centro do asfalto, saindo daqui. Deixando tudo, copo quebrado, livros, os fones balançando no escritório.

Eu sorriria, então. Sim, eu sinto que poderia sorrir se isso fosse um musical. Eu sorriria de braços abertos enquanto a chuva viesse e eu continuasse a andar, de olhos fechados agora, cabeça erguida, sentindo no rosto o vento e cada gota da chuva.

A janela do escritório apareceria, então, aberta. A chuva entrando por ali, empoçando no chão, nos livros, tudo iluminado só pela tela do computador, na qual aparecem essas letras, começando por “se isso fosse um musical”. Depois, os meus óculos apareceriam, quebrados, no asfalto, ainda sob a chuva.

O próximo take seria meu novamente, ainda andando, ainda sorrindo, ainda cantando, se isso fosse um musical. Cada vez mais longe. Cada vez mais só. Cada vez mais feliz. Até a música parar e eu continuar andando. 

Os primeiros raios do sol surgiriam no horizonte. Algum pássaro cantaria e voaria de uma árvore. Eu continuaria. E, se isso fosse um musical, outra música começaria logo depois. Mas não é. Isso não é musical, não é um clichê meu. Não é, especialmente, porque não há, não há, quem represente a próxima canção. E haveria. Se isso fosse um musical.




sábado, 10 de janeiro de 2015

Teddy Bear



Me chame de Teddy Bear – não comporto um “ursinho pimpão”. É isso que tenho sido. Seu velho Teddy Bear, para abraçar quando a noite é de tempestade e todo mal ameaça vir. Quando o escuro é demais e o mundo se volta contra você, eu estou lá. Eu sempre estive.

Mas quando a noite é de festa, ou quando o mundo sorri e o sol brilha, não há lugar para mim em você. Daí meu lugar é o armário, fechado, escuro, escondido. Daí eu tenho cheiro de mofo, o pelo embolado e as costuras desfeitas. Daí eu sou infantil. Alguma coisa que ficou do passado e que é guardada para quando for útil de novo. Para quando alguém apagar a luz e a chuva se avolumar no horizonte.

Sim, porque então sou, de novo, seu Teddy Bear, fofo e com as velhas frases ensaiadas. Basta apertar-me e eu vou repetir. “Eu te amo!”. “Vou sempre estar com você!”. “Eu te amo!”. “Vou sempre estar com você!”. Isso até que as nuvens partam e as visitas cheguem. Então não sou mais que um incomodo, mais do que um brinquedo quebrado que, de vez em quando, de forma bem inconveniente, diz “eu te amo”, do armário, sem ter sido apertado. Um incômodo.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Özpetek

Quando eu era pequeno, sempre ficava impressionado com o que as professoras sabiam. Especialmente as de português. Eram tantas regras e detalhes e exceções. Eu imaginava que jamais seria assim, que jamais saberia tudo aquilo. Esse ano, porém, em uma das minhas aulas, eu transitava sem dificuldade em classificar adjetivos, advérbios, substantivos, preposições e conjunções. Eu sabia também aquilo que elas sabiam. E era simples. Era simples. Eu me dei conta disso espantado.

No Ensino Médio, uma professora de Literatura me impressionava muito. Ela sabia todas as histórias, ela compreendia detalhes que nós, ávidos de tudo, deixávamos passar. E o Deus, assim como o Diabo, está no detalhe. Ela contava aquelas histórias todas e nos fascinava e eu ficava imaginando que técnica ela usava para saber, para lembrar, para não confundir. Hoje eu sei. Eu sei que não há técnica além da paixão. Não há outro registro senão o amor por aquilo que se lê, que se estuda, que se vê.

Sobre filmes o mesmo acontecia. Nunca diferenciei diretores e achava até pedante quando laureavam esse ou aquele como o preferido. Eu sempre acompanhei com certa distância a fascinação da Martha Medeiros por Woody Allen, por exemplo. 

Hoje me surpreendi com isso. Em uma lista sobre filmes com escritores, selecionei “O primeiro que disse”. Os cenários, a força dos personagens, as falas sublimes, tudo me colocou um sorriso no rosto e um nome na cabeça. Sim, de repente eu me vi pensando “Mas isso é  de Ferzan Özpetek!”.

Quando os créditos subiram, prestei atenção. E era. Lógico que era. Sem perceber, a gente vai atingindo patamares do que antes não sabíamos ser possível. Reconhecer uma classe gramatical, saber de cor os detalhes de um livro, reconhecer o estilo de um diretor. Tudo isso faz parte do nosso crescimento e do nosso aprendizado. Há ainda muito que me impressiona e que me faz pensar: “mas isso eu não saberei jamais”. Nomes de teóricos, por exemplo e suas citações literais.

De qualquer forma, essa tarde e esse filme foram importantes pelas lições. Especialmente por uma das personagens, a bala perdida entre elas. A delicadeza e o brilho no olho me fizeram perceber, outra vez, o porque eu escrevo. É por isso: delicadeza e brilho no olho. Eu quero, algum dia, chegar a emocionar tanto com uma obra quanto me emocionam os filmes de  Özpetek.

Eu quero saber desenhar as palavras exatas que mexam com a alma de alguém. É uma aprendizagem. Longa, ainda distante, mas é uma aprendizagem pela qual vale à pena se dedicar. Porque é assim que se tece a vida, aprimorando-se, chegando a pequenos impossíveis, atravessando barreiras e praticando tudo com um toque de naturalidade, de inconsciência até. Para que, algum dia, fazer aquilo seja simples. Escrever seja simples, emocionar seja simples. Encantar, enfim, seja tão simples quanto respirar ou reconhecer um filme de Ferzan Özpetek.