terça-feira, 23 de novembro de 2010

Um amor conquistado

(Clarice Lispector)

"[...] Era um quati que se pensava cachorro. Às vezes, com seus gestos de cachorro, retinha o passo para cheirar coisas, o que retesava a correia e retinha um pouco o dono, na usual sincronização de homem e cachorro. Fiquei olhando esse quati que não sabe quem é. Imagino: se o homem o leva para brincar na praça, tem uma hora que o quati se constrange todo: "mas, santo Deus, por que é que os cachorros me olham tanto?" Imagino também que, depois de um perfeito dia de cachorro, o quati se diga melancólico, olhando as estrelas: "que tenho afinal? que me falta? sou tão feliz como qualquer cachorro, por que então este vazio, esta nostalgia? que ânsia é esta, como se eu só amasse o que não conheço? [...]"

sábado, 20 de novembro de 2010

Vórtice

Ontem tive uma crise do que, por falta de definição melhor, chamarei de loucura. O resultado disso se amontoa em seis páginas manuscritas em tinta escarlate, todas produzidas em um banco de praça.

Não vou publicar tudo porque seria excessivo e desnecessário. Além disso, fazê-lo seria invocar para mim uma internação compulsória, coisa que não preciso por hora. Apesar desses avisos e ressalvas, seguem alguns trechos, frases soltas. Se não as entender, não pense que isso é devido ao caráter fragmentário da publicação. Tampoco alguém entenderia se eu publicasse aqui o texto inteiro.

“Eu não te entendo-me. E isso me dá medo.”

[...]

“Chorei copiosamente – como bem se diz – embora umas poucas lágrimas secas. E aí eu quis mesmo entender: eu choro escondido por vergonha ou pelo intenso medo de ser consolado? Eu não sei. Chorei num banco escondido, nos muitos lugares de se esconder choro na UPF. Depois tive vontade de ser profético, poético e um pouco vândalo e escrever assim: ‘V. Linné chorou aqui’. Não escrevi.”

[...]

“Peguei o ônibus extasiado, tomado do meu pior torpor ruim. De perigosamente distraído desci errado e fui parar numa praça, longe de onde eu queria.”

[...]

“Devo dizer que Passo Fundo tem praças boas de se chorar enquanto se espera uma tempestade”

[...]

“Foi nesse momento que tive medo. Tive, porque não me conheço, só me adivinho. E, adivinhando mesmo, me aterrorizo. Sim, porque naquele atravessar de ruas eu era capaz de seguir para os becos da nunca mais saída. Eu era capaz, também, de me jogar fatal em frente a um carro qualquer, desde que branco.”

[...]

“Os fiéis estavam de bocas escancaradas, gritando os seus ‘hinos de glória’. Nas escadarias da igreja, uma bugra de tetas enormes postas pra fora, dando seu rico leite a um bugrinho de colo. Na calçada um velho sujo vinha passando e escarrou grosso no mármore escuro. E eu os invejei a todos. Aos fiéis por terem o Deus. Ao bugrinho por ter um leite que eu mesmo não tive. E ao velho sujo – principalmente ao velho sujo . Ele é o dono do mundo. Afinal, não se pode cuspir no que não nos pertence..”

[...]

“Eu queria letras nas quais eu pudesse despejar o sumo grosso dessa minha vertigem”

[...]

“Bolas de isopor. Bolas coloridas de vermelho e prata, tão surreais, penduradas no ar... Bolas? Eu quase quis tocá-las, como criança faria, mas não pude. Senti que elas se desfariam, ou me desfaria eu”

[...]

“Por isso essas páginas, porque só escrever me salvaria. Porque escrever eu conheço. Escrevendo eu me sei, eu me aceito, eu quase me entendo. Escrever é antídoto.”

[...]

“Voltei à mesma praça. À missa no fim. Ao bugrinho vomitado. Ao cuspe já ceco.”

[...]

"Às vezes o motivo é tão pequeno... mas se morreria por ele, do mesmo jeito."

[...]

“Escrevi com dor e libertação. Escrevi até não poder e um pouco além. Escrevi me psicografando. Escrevi enquanto o calor virava frio morto. Escrevi alheio aos que passavam e me viam, despudorado, em pecado de mortal salvação. Escrevi louco e só. Escrevi. E a tempestade não veio.”

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ira

À Ághata, com amor.

Às vezes a raiva é tanta que não consigo moldá-la em palavras. Sejam longas ou curtas, impossível sublimar nelas a besta-fera sentida. Não é raiva de se escrever pomposa. É ira de grito transfigurador, é sede de morder a carne e estraçalhar com os dentes os vermelhos nervos humanos. É fúria de quebrar os cristais centenários da sala verde, de jogar os livros e com eles estilhaçar vidraças. É ganas de destruir o humano e a máquina, sem julgamentos ou culpas ou distinções. É ódio azul e cego, de matar com as mãos e depois limpar tranqüilo o suor da testa. “Pronto. Foi-se. Acabou”.

É raiva de erguer tempestades cinzas de poeira e raios. É raiva que não permite, sequer, a pujança da chuva. É ira de abrir buracos no estômago, de estourar os tímpanos de pressão, de escurecer os olhos com venda negra. É ódio. É raiva. É fúria. É ira.

É revolta tamanha a ponto de me fazer até, por fim, chorar.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Pós-contemporânea

Eu quero ser tua obra de arte. (moderna).
Que embora não se entenda,
se venda como um bom monte de entulhos bonitos.
E baratos.
Porém por preço bem caro, de mercado.

Quero ser tua obra de arte. (moderna).
Pela pura satisfação da não compreensão
do teu olhar.
Pelo puro gosto sentido da tua boca escancarada
em absoluto, abismada.

Ser tua obra de arte. (moderna).
Ser o não compromisso do belo, do puro e do são.
Ser tua louca, inexplicada, tentadora, enagadora,
Ser, enfim, tua, em vão.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Dane-se.

Dane-se a hora, se é cedo se é tarde
Dane-se a capa, a foto, o encarte
Dane-se o mundo, o raso, o profundo
Dane-se nada,
Dane-se tudo


Digo-te: não importa o esforço, é impossível ler o “Memorial do Convento”, do Saramago, em dois dias. A linguagem é complexa. Não pelas palavras, mas pela maneira portuguesa de formar as frases. Além disso, a pontuação em nada ajuda. Alguns parágrafos imensos são formados sem que neles apareçam pontos, só vírgulas. Não bastasse, os diálogos não tem marcação, estão imbricados no texto, adivinhe se puder de quem são aquelas palavras. Queres mais? Então tente acompanhar o fluxo narrativo. As tramas se entrelaçam umas nas outras e o irrelevante se ata mortalmente com o essencial. Não bastasse, detalhes históricos (para mim sempre chatos) são, justamente, o alvo da minha análise. Da teoria até o nome assusta: Metaficção historiográfica, simplificando: o novo romance histórico.

Apesar de tudo, o livro é riquíssimo. Tem passagens de uma criatividade impagável e é um primor de linguagem, desde que se possa absorvê-la delicadamente. Leitura apressada nenhuma dá conta de um décimo da obra toda. A quem eu estou querendo enganar então?

Não. O que me irrita não é a dificuldade de ler a obra, o que me irrita é o pouco tempo. É não poder ler Saramago como ele merece. É saber que estou fazendo mal e bem porcamente o que me propus a fazer. Em suma, Eu me irrito. O livro, confesso, é fascinante, desde que dele se possa usufruir.

O problema é que preciso dele lido todo para amanhã, e mais as teorias resenhadas. Impossível, e por isso o “dane-se”. Ainda faltam páginas e mais páginas de trama tão densa quanto o aspecto das letras. Ainda faltam teorias que se esconderam em algum lugar desse universo que habito e chamo de quarto. Ainda faltam os meus olhos não estarem incendiados de fogo. Então chega.

Sabe a vontade imensa de sentar e chorar? Ela veio. Veio porque eu não vou conseguir. Veio porque eu sou responsável com o que me comprometo e não vou conseguir. Veio porque eu me cobro demais e não vou conseguir. Não vou conseguir. Não dessa vez.

Eu tenho limites e cheguei a eles. “Faça sempre o possível. O impossível não se pode fazer”, já dizia uma grande mestra minha. Então, por fim, “Dane-se”.

Droga. Dane-se ainda mais por eu saber que vou sair daqui, tomar um banho, dois cafés e continuar tentando dar conta de tudo para amanhã. O que posso dizer? Eu sou assim. Alguém poderia me ensinar a ser fútil, irresponsável e leviano, por favor? Ser desse jeito é meu maior sonho de vida.

Enfim pássaro

Entre uma tontura e uma tortura, 
enfim 
fiz um twitter só pra mim: