quinta-feira, 30 de julho de 2009

O "Bibliotecário"

"Difícil é aprender a ler, o resto está escrito"

Antigamente havia a Sentinela dos Livros e onde quer que fosse era aclamada como A Velhinha da Biblioteca. Era baixinha, muito branca, pele e cabelos, tinha o rosto franzido em constante expressão de desgosto. Confesso que não gostávamos dela. Tudo que nós, crianças, fazíamos parecia errado aos seus olhos sábios.
Mas depois, muito depois, quando fui iniciado no mistério dos livros, até a velhinha mudou. Houve um tempo em que eu ia a biblioteca todos os dias, pois realmente lia um romance por dia. Então a senhora passou a mostrar seu encantamento e sorriso. Contou-me muitos dos segredos das prateleiras e eu reparti também alguns dos meus.
Os tempos mudam. Depois dela vieram outras e nenhuma parou muito. Certa vez atendia um garoto irritante que me queria fazer levar para casa páginas sobre a segunda guerra, quando tudo que eu queria era levar uma das brochuras (por ele classificadas) como bestas e líricas em excesso. Ora, então eu sou besta e lírico, que mal há nisso? Deixa-me ser.
Outra moça, quando fui retirar um livro, disse que já saíra o filme da obra. Respondi ríspido: Sim, eu já assisti. Mas o livro é sempre melhor. Calou-se.
O que ouvi hoje me fez consternar. Um ser, de trás da bancada, identificado pela bibliotecária como “o novo bibliotecário” (não sei se de piada ou pilhéria), em conversa com outro ser acéfalo traça o seguinte discurso, aclamado, por sinal.
“Entra, aproveita enquanto eu não estou cobrando. Daqui um tempo vai ter que pagar para ver livrinho. Ah, que nada. Vou mandar tirar tudo isso daqui e vou colocar uma pizzaria. O ponto é bom. Não, melhor, vou colocar uma coisa de dançar. Isso. Uma gafieira, que ainda não tem em Tapera. Vou colocar só pra poder vir aqui aquela gostosa da novela. A D. Norminha.”
Ali seguiram barbáries que eu não tive mais a força de espírito de escutar. Eu acho que tremia de puro ódio. Então ele diz isso na frente dos livros, na biblioteca municipal da “Cidade Cultura”. Bati o livro que iria retirar sobre a mesa e tão logo preencheram a ficha saí, batendo também a porta.
O que precisa para ser um bibliotecário? Ser analfabeto funcional? Então eles nem entendem o quanto é sagrada a missão de guardar os livros? De quantos universos cabem ali? De quantas vidas se espremem naquelas páginas?
Ah, livros, que se incendeiem nas prateleiras antes de ouvirem coisa igual. Porque é preferível a destruição a essa total falta de sensibilidade e noção.
Que esta cidade toda apodreça na própria miséria porque hoje foi a prova cabal de que não há mais salvação. Então essa é a cidade cultura? Pobre Lygia que se retorce em seu túmulo de rosas amarelas. E se perguntarem não sabem que é Lygia, nem sabem o porquê das rosas amarelas. Mas o que eu esperava de uma cidade onde os bares são mais cheios que as (raríssimas) exposições de arte? Onde os blogs de taperenses que fazem fofocas recebem milhares de visitas a mais do que aqueles que fazem poemas?

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Compreender Deus

Compreender Deus? Ainda mais filosoficamente?
Eu explico.
Quais são as principais características de Deus?
Onipresença (estar em todos os lugares); onisciência (saber de todas as coisas) e onipotência (ser capaz de fazer tudo).
Quais são as principais características de um escritor (com relação à sua obra)?
Onipresença (estar em todos os lugares); onisciência (saber de todas as coisas) e onipotência (ser capaz de fazer tudo).

Quem ergueu o dedo para discordar, leia novamente. Eu não estou falando do narrador (este muitas vezes não possui estas características, mas porque assim achou melhor o autor), e sim do escritor.

Pensem comigo: Cada vez que eu crio um personagem, este personagem passa a existir.
Não, eu não estou falando de universos paralelos, nem nada assim... Mas na imaginação de alguém (nem que seja na minha) ele surge e ganha vida. Sobre esta vida eu tenho total controle. Quem me conhece sabe que eu não costumo dar destinos agradáveis a estes seres por mim criados... Entendem então o remorso? Por isso a ligação entre Deus e os autores. Já ouviram falar de Poder Demiúrgico? Ah, esqueçam, eu não vou me fazer entender.

Para ter uma noção melhor leiam:

Um Sopro de Vida – Pulsações (Clarice Lispector): O último livro de Clarice, o que mais foge às explicações... A base da minha monografia e o que me fez ter noções meio loucas do ato de criação.

E assistam:

Mais estranho que a ficção: Nada que mereça um Oscar, mas o sentido é interessante. Uma autora, famosa por matar seus protagonistas no final dos romances, descobre que os livros que escreve acontecem de verdade enquanto são escritos (ou mais ou menos isso).

Coração de Tinta – Inkheart: Também o interessante aqui é a idéia. Prestem atenção especial ao Dustfinger, personagem de um livro e sua relação com o destino dentro da obra.

E, para finalizar, deixo um conto de uma autora de quem gosto muito pelos sentidos que é capaz de moldar às palavras:

Um tigre de papel – Marina Colassanti

Sabendo que a ele caberia determinar seus movimentos e controlar sua fome, o escritor começou lentamente a materializar o tigre. Não se preocupou com descrições de pêlo ou patas. Preferiu introduzir a fera pelo cheiro. E o texto impregnou-se do bafo carnívoro, que parecia exalar por entre as linhas.

Depois, com cuidado, foi aumentando a estranheza da presença do tigre na sala rococó em que havia decidido localizá-lo. De uma palavra a outro, o felino movia-se irresistível, farejando o dourado de uma poltrona, roçando o dorso rajado contra a perna de uma papeleira.

Em vez de escrever um salto, o escritor transmitiu a sensação de movimento com uma frase curta. Em vez de imitar o terrível miado, fez tilintar os cristais acompanhando suas passadas. Assim, escolhendo o autor as palavras com o mesmo sedoso cuidado com que sua personagem pisava nos tapetes persas, criava-se a realidade antes inexistente.

O quarto parágrafo pareceu ao escritor momento ideal para ordenar ao tigre que subisse com as quatro patas sobre o tamborete de "petit-point". E já a fera aparentemente domesticada tencionava os músculos para obedecer quando, numa rápida torção do corpo, lançou-se em direção oposta. Antes que chegasse a vírgula, havia estraçalhado o sofá, derrubado a mesa com a estatueta de Sévres, feito em tiras o tapete. Rosnados escapavam por entre letras e volutas. O tigre apossava-se da sua natureza. Já não havia controle possível. O autor só podia acompanhar-lhe a fúria, destruindo a golpes de palavras a bela decoração rococó que havia tão prazerosamente construído, enquanto sua criatura crescia, dominando o texto.

Impotente, via aos poucos espalharem-se no papel cacos de móveis e porcelanas, estilhaçar-se o grande espelho, cair por terra a moldura entalhada. Não havia mais ali um animal exótico na sala de um palácio, mas um animal feroz em seu campo de batalha.

O escritor esperava tenso que o cansaço dominasse a fera, para que ele pudesse retomar o domínio da narrativa, quando o viu virar-se na sua direção, baixar a cabeça em que os olhos amarelos o encaravam, e lentamente avançar.

Antes que pudesse fazer qualquer coisa, a enorme pata do tigre abatendo-se sobre ele obrigou o texto ao ponto final.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Demiurgia

Como, depois de compreender* Deus, pode-se continuar a escrever?

*no sentido filosófico, não no religioso.