quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Para gatos

Havia ratos na casa. Muitos deles. E ratos espertos. Não caiam em ratoeiras, não senhor. Não se deixavam capturar, não senhor. Não chegavam nem perto dos venenos, não senhor. Eram ratos, além de tudo, determinados. Sabiam o que queriam e não se deixavam iludir por pouco.

Se os ratos eram espertos assim, pensou o Sr. Rodrigues, estava na hora de comprar gatos. Pois os gatos não são maiores do que os ratos? Claro que são! Devem, portanto, ser mais espertos também. Resoluto, Sr. Rodrigues comprou logo cinco gatos:

Josefa, logo se viu, não se prestava a caçadas. Era manhosa demais, medrosa demais, melosa demais. Porém, uma vez que já havia feito o negócio, Sr. Rodrigues não podia desfazer-se dela. Era prejuízo certo. Promoveu-se, então, Josefa a animal de estimação. Podia ela ficar o dia inteiro deitada em almofadas recebendo trato no focinho.

Catarina foi outra gata que para a caça não prestou. Avançava em quem chegasse e não se deixou domesticar de modo algum. Usava unhas e dentes em quem fosse preciso. Exceto, curiosamente, nos ratos. Deles, a gata tinha nojo. Deixou-se Catarina em paz, portanto. Quem mexeria com ela? Conformaram-se com o fato da gata aparecer somente para comer e dormir. 

Theobaldo revelou-se um exímio brincalhão. Um artista, praticamente. Dava piruetas, fazia passinhos engraçados e divertia as crianças. Fazia rir tanto o menino da casa, que o Sr. Rodrigues deu Theobaldo a ele. Tinha vocação, oras, e isso não se ignora. O menino que lhe ensinasse novos truques. O problema dos ratos seria para os outros gatos.

Walter era a encarnação do medo. Tinha receio da escuridão de noite e da luz de dia. Tinha sustos terríveis com passos, rangidos na escada, e com silêncios de qualquer feitio. Se ouvia um guincho de rato, Walter desmaiava. Além disso, ele tinha olhos tão esbugalhados, pelo tão eriçado e coração tão acovardado que inspirou pena a todos da casa. Ele passou, assim, a ser protegido e poupado de todas as incomodações. "Coitadinho do Walter", diziam.

Houve um único gato que para as caçadas prestou. Era ágil, esperto e determinado. No primeiro dia, liquidou com uma família inteira de roedores. Era tão eficiente que fazia, além do próprio trabalho, o daqueles outros quatro. O Sr. Rodrigues sorria, satisfeitíssimo com sua própria esperteza. “Não disse que bons gatos dariam jeito nisso? Disse.” E ele pensava mais, pensava assim: “Se sendo alimentado todos os dias, esse gato caça tantos ratos, imagine quantos não caçará se precisar fazê-lo para comer?”

Foi dada a ordem e cortou-se, então, a alimentação do gato. Por uns dias tudo foi bem, o gato encontrava nos ratos mais do que o suficiente para manter-se satisfeito. Os ratos, porém, foram diminuindo na casa. Não demorou para que o Sr. Rodrigues fosse livrado das incômodas pragas. Em seu íntimo, o gato até imaginava a recompensa que ganharia. Se os outros haviam sido recompensados, imagine ele, que fizera sozinho todo o trabalho a que foram chamados.

O Sr. Rodrigues, desconhecendo o íntimo do gato e desejando manter a eficiência do plano, reforçou a ordem: 

— Esse gato aqui não come. Assim, ele pode procurar ratos na vizinhança e nenhum mais se instalará em nossa casa. 

Passados, no entanto, alguns dias em jejum, o gato não tinha sequer como sair de casa. Abrir os olhos já era um esforço. A inanição lhe despontava as costelas e enfraquecia o corpo todo. Ainda assim, em um último ato, ele passou a miar, implorando comida. No segundo dia a ouvir aqueles mios insistentes e contínuos, o Sr. Rodrigues se exasperou. "Mas o que pensava aquele gato? Acaso não viera junto com os outros? Viera. Acaso não fora tratado do mesmo modo? Fora. Acaso não lhe deram casa, funções e cuidados? Deram. Então o que mais ele queria? Nem para caçar já não prestava! Nem para caçar! Pois era mesmo um ingrato, um ordinário, gato que mais valia ter ficado a virar latas."

Aos gritos, para ser ouvido acima dos mios, Sr. Rodrigues gritou à cozinheira:

— O jardineiro, rápido, chame o jardineiro e mande que ele dê um jeito nesse gato. Vou ao clube e, quando voltar, não quero nem sombra, nem pelo, nem fio de bigode desse gato desgraçado por aqui. Me ouviu?

A cozinheira ouviu e ouviu bem, chamou o jardineiro e assim se fez: enforcou-se o gato na goiabeira, um pouco antes das três da tarde, que era, afinal, o horário de alimentar Josefa, Catarina, Theobaldo e Walter.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ódio

Tenho sentimentos de medidas exatas. Amores que arrebatam ou não até onde eu os deixar. Amizades milimetradas, pesares de certo número, felicidades calculadas com precisão absoluta. Só o ódio me escapa. Só o ódio é desmedido em mim. Ele toma força, proporção, desengana réguas, trenas, metros, enlouquece os marcadores de altitude. 

Meu ódio não tem fim ou medida. Não tem começo ou limite. Meu ódio se expande com a mesma constância do universo e agarra até à grama do caminho. Meu ódio é o mais generoso em mim. Ele compreende até o amor e quem ama aquele que eu odeie.

Meu ódio é minha ousadia, é meu olhar mais duro, é meu caminhar objetivo e tresloucado. Meu ódio é o fim em si. É a justificativa de qualquer ato. Qualquer. Meu ódio é minha propulsão para as vinganças que lhe tenham o mesmo porte: desmedidas. No mínimo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Reinventando

[...] a vida, senhores, é uma invenção 
da palavra  e não o contrário.
Nilza Rezende


Às vezes é preciso trocar de palavras. De adjetivos sobretudo. Eu, por exemplo, gostava muito do adjetivo "delicado". O gesto pequeno e manso, de dimensão estreita e sensibilidade aguda. Se eu precisasse concretizar a palavra "delicado", eu o faria na forma de um remoinho que, em pleno outono, gira folhas e agrada crianças.


"Delicado" foi um mote meu por muito tempo, só que não me cabe mais. Não. O corpo cresceu, tomou forma, ultrapassou os limites todos e ameaçou partir meu adjetivo em dois. Eu ainda tentei. Tentei usá-lo sem que me coubesse, tentei esgaçar as mangas, desfazer a barra, abrir as costuras e colocar remendos. Não deu.

Não é que eu tenha aberto mão da delicadeza. Não, ela ainda me pertence. Mas sinto que preciso vestir outra palavra. Uma que se acomode ao meu novo mundo e à minha nova vida. Não tenho mais suporte para redemoinhos. Preciso de tornados, furacões, ventos fortes que assustam tanto quanto encantam.  Preciso já de exuberância!

Silêncio.

"Exuberante"

Testo na língua, na boca, no corpo. E cabe.

Percebo, então, que tentar me encaixar ao “delicado” era como vestir um troll de soldadinho. “Exuberante”. Um adjetivo novo que me compreende enfim. Que faz sentido e que eu posso representar sem medo. 

“Exuberante”, uma palavra para eu despir das aspas e ser, para eu costurar no corpo e me dar, com ela, a medida exata. Uma palavra para transformar em mantra, para justificar a desculpar, para preencher e definir.

Sim, um adjetivo novo, exuberante. Porque somos, afinal, as palavras que escolhemos ser.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Qual o meu papel como professor?

Há professores cujo papel é celofane. Visto de longe, o celofane é lindo, enfeita, dá cor, brilha. Quando manuseado, ele faz barulho, canta vantagem, chama a atenção sobre si e sobre suas qualidades. De perto, porém, percebe-se que seu conteúdo é pouco e sua transparência muita. O celofane é fino, corta-se facilmente, perde a cor com qualquer umidade e, de mais a mais, incorre em uma falsidade: faz de conta que é plástico enquanto, na verdade, tem a mesma celulose dos outros.

Há professores cujo papel é jornal. Algum dia, eles receberam, em letras de imprensa, o que havia de mais novo sobre sua área de conhecimento. E isso lhes bastou. Esqueceram, porém, que o mundo se renova e que, portanto, atualizar-se é preciso. Depois de impresso, o jornal precisa se reinventar para sobreviver, ser dobradura, papel que embrulha porcelana ou mesmo que forra a gaiola de passarinho, o que não se pode é parar. Caso contrário, não haverá utilidade para as notícias de ontem.

Há professores também cujo papel é pardo. São do tipo mais usado na escola, simples, sem brilhos, sempre com os mesmos tons, sempre com as mesmas funções, sempre nos cartazes mais simplórios, rodeados por alunos que não cansam de perguntar: “Mas não há cartolina na secretaria?”

Há professores cujo papel é timbrado e reservado exclusivamente para documentos oficiais. Tudo que neles se escreve vira lei, imediatamente, sem pontos de discordância ou rasuras, sem revisões, correções ou remendos. São eles os detentores da verdade absoluta, com assinatura embaixo, carimbo vermelho e “faça-se cumprir”. 

Há professores, ainda, cujo papel é higiênico. São macios, sedosos, sempre à disposição de uma carícia na pele ao enxugar uma lágrima aqui e outra acolá. Tudo eles absorvem e relevam e compreendem e confortam. São servis com quem chegar. Esquecem, porém, para que foram inventados.

Papéis, papéis, papéis. O sulfite tem múltiplas utilidades. O carbono se restringe a copiar tudo que lhe mostram. O papelão pode ser inflexível. O de presente é sempre decorado. O reciclado é feito de muitos outros. Papéis, papéis, papéis. Mas afinal, em qual eu me encaixo? De que papel é feito o professor que eu sou?

Olhando para os lados percebo a resposta. Há rascunhos desse texto sobre minha escrivaninha. Sou do tipo de professor cujo papel é esse mesmo, o de rascunho. O rascunho já teve seu momento, já recebeu as letras que precisava receber, porém não se restringiu a isso. O rascunho está pronto a novas escritas, a novos e múltiplos desenhos e até aos rabiscos feitos enquanto se telefona. O rascunho sabe que não está pronto e aceita com ânimo o que lhe imprimem, preservando para a próxima versão o melhor. O rascunho permite rasuras e refacções. Até mesmo as incentiva. O rascunho não é definitivo, nem pretende ser, aprimora com humildade tudo que nele é posto. Papel de rascunho. É esse o meu papel como professor. Espero que o seu também.

domingo, 11 de agosto de 2013

Pai não é quem cria. É quem faz.


Hoje é dia dos pais e vou precisar discordar de uma máxima bastante popular. Para mim, pai não é quem cria. É quem faz. 

Tenho observado nos contextos pelos quais transito, que “criar” uma criança é relativamente fácil. Envolve algum grau de alimentação e outras necessidades básicas. Não implica em mais do que isso. As crianças se “criam” praticamente por si. Pai, pai de verdade, é quem faz.

Quem faz companhia para o filho quando ele está doente. Quem segura na mão, quem ensina a andar de bicicleta, quem fica a noite acordado, esperando o filho voltar.

Quem faz o impossível pela felicidade de seus filhos. Quem faz serão, hora extra, trabalho pesado, para ajudar que o filho se forme, que “seja alguém”, que “tenha o que eu não tive”.

Pai é quem faz.

Pai é quem faz carinho, quem faz o almoço, faz companhia, faz ligações no meio da tarde quando sabe que o filho não está bem. Pai é quem faz vistas grossas às vezes, faz o papel de mãe, de juiz, de motorista, de segurança, de advogado, de contador de histórias, de médico, de psiquiatra, de instrutor, de conselheiro, de amigo...

Sim, criar qualquer um cria. Agora fazer de uma criança um homem honrado, direito, pleno, feliz, isso não é para qualquer um. Isso é só para um verdadeiro pai. Para alguém que faz, fez e sempre fará sempre o seu melhor.

Sou adotado. Mesmo assim – eu sei – foi meu pai adotivo quem me fez. 

Feliz dia dos pais, pai.


terça-feira, 6 de agosto de 2013

Situação de calamidade

No celular, um aplicativo passou a manhã me avisando sobre o risco de temporais.
Lá fora, o céu azul passou a manhã me dizendo que o aplicativo mentia.
Agora, eu sei quem estava mesmo certo.

Hoje o dia nasceu para desabar. Dia daqueles em que os trovões arrebentam, o vento devasta e o granizo destrói. O aplicativo estava certo. Ele só esqueceu de mencionar que o temporal seria por dentro. Por dentro.

De repente eu ali, criança de novo, enquanto me olhavam e estudavam minha reação. Enquanto eu buscava na tela da televisão, no prato de comida, na cortina da cozinha, a reação certa. A reação que não está em nenhum dos livros que eu li. A reação que não está nos filmes que eu vejo. A reação que, talvez, só esteja nos dramas das novelas mexicanas. Novelas que eu sempre me recusei a ver. Talvez eu devesse ter visto. É nisso que eu consigo pensar. Se eu tivesse visto, poderia substituir o choque e o pasmo por algo mais descente.

Consternação? Revolta? Compaixão? Curiosidade?

Qual é a emoção de se vestir pra isso? Penso que começar a chorar seria o caminho. As lágrimas estavam ali mesmo. Eu só as controlava pela profundidade da respiração. Sinto que nas novelas  jamais vistas, alguém gritaria entre lágrimas. Alguém Perguntaria um “Por quê?” sofrido, pungente. Alguém se atiraria no chão, rasgaria as cortinas, abriria a porta e sumiria no mundo, em busca.

Eu ouvi e ponderei. Eu esperei saber o que fazer. Eu quis abraçar alguém, mas estamos tão longe disso. Tão longe. Eu quis confortar, quis fazer um afago, quis dizer que perdoava, mas como perdoar o que não é crime? O que mal se compreende? Eu não posso perdoar o que não posso julgar. E eles esperavam perdão.

Eu esperava que eles fossem logo embora. Eu não queria condená-los, mas também não podia absolvê-los. E eles queriam qualquer coisa minha. Qualquer reação. Qualquer lágrima. Logo eu, que tenho tanto medo das lágrimas, tanto medo de não poder controlá-las. Eu não lhes dei nem uma lágrima. Eu não lhes dei nem um sorriso. Eu não lhes dei um grito sequer. Eu não deixei sair do meu peito o temporal anunciado.

Mudo, eu vi ventos devastando anos, chuvas afogando lembranças, granizo destelhando mentiras. Mudo. Eu deixei os raios iluminarem os cantos, os trovões balançarem as paredes e os meus muitos eus gritarem por socorro, com as bocas enchendo d’água.

Mudo, descubro agora. É assim que se fica quando a pergunta que mais fazemos nos é respondida.

Mudo, porque não sei o que fazer da resposta. O que fazer da pergunta. O que fazer de mim mesmo. Mudo. Mudo porque o temporal não deixa espaço para a fala, enchendo tudo de escombros e corpos na lama. Mudo porque não vejo qual é a alternativa agora. Prosseguir? Reconstruir? Deixar? Ignorar? Mudo. 

Finalmente um modelo de reação: a mudez.

É assim que aparecem os homens depois de perderem tudo nos temporais. Mudos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Olhos de ver {À espera}

Há quadros abstratos. Linhas sobre linhas. Dois blocos azuis em toda a tela. Pingos jogados e jogados e jogados. Uma mancha vermelha em um fundo todo preto. Curvas e riscos. Recortes púrpuras sobre tinta grená. Marrom sobre marrom.

“Ridículo. É ridículo que alguém pague fortunas por ‘isso’. ‘Isso’, esses pingos jogados que eu mesmo faria. Essas linhas tortas. Esses rabiscos inúteis que até meu filho, meu filho de cinco anos sabe fazer melhor. Paf. É ridículo. É ridículo que alguém assim se considere um pintor. É vergonhoso. Se é assim até eu! Me deem uma tela! Me deem uma tela!”

Eu passaria dias olhando para um Mark Rothko. Dias abismado. Dias até conseguir me recuperar, até conseguir recolher todo sentimento que tentaria escapar de mim. A consistência da cor, a transição entre um tom e outro. O traçado do pincel. A textura da tinta. O impacto, meu Deus, o impacto de uma tela toda vermelha. A intensidade que emana dela. A ausência de explicação. A imensidão do que não quer ser entendido, do que não quer ser explicado. Do que existe. Eu me sentiria um ponto sem cor, diante de uma tela de Mark Rothko.

“Besteira, besteira, besteira.”

Há pessoas abstratas também. Pessoas com ideias sobre ideias. E dois olhos que brilham sem motivo ou que param, opacos, no meio da tarde. Pessoas que não se explicam, que agem, impulsionam, pensam, falam, criam, derramam tintas sobre telas, luzes sobre palcos, palavras sobre papeis, salsa sobre molhos, esperança sobre desconhecidos e vida, vida sobre o mundo. Pessoas que são como alguns quadros abstratos: curvas e riscos.

“Ridículos. É ridículos o que são. Ridículos com seu afetamento, com suas opiniões que ninguém pediu. Com seus quadrinhos de merda, seus textinhos de merda, seus teatrinhos de merda. Suas paixõezinhas. Seus ‘ai porque eu sinto isso, ai porque eu sinto aquilo...’ Ridículos. Não me interessa! Por que não vão fazer alguma coisa útil? Por que ficar aí, pensando besteira, fazendo besteira, dizendo besteira? Me deem uma arma! Me deem uma arma!”

As pessoas abstratas me fascinam. Intrincadas, complexas, inesgotáveis. Pessoas que surpreendem: Então há ainda mais nelas? Pode haver mais? Pode. Mais criatividade, mais sentimento, mais tramas por baixo das tramas já complicadíssimas de que são feitas. Pessoas de pura intensidade, que me abismam, também por dias. Pessoas que não querem ser entendidas ou explicadas, querem ser sentidas. Sentidas com a voracidade que merecem.

Nem todos os quadros são para todos os olhos. Nem todas as pessoas também. Às vezes, quando tudo parece incompreensão, descaso, desgosto, quando tudo é motivo de queda, de vaia, de repúdio em baixo e mal som, às vezes não está em você o problema. Às vezes o único problema é que lhe faltam olhos à altura. Olhos de ver. Olhos capazes de levar as coisas que veem não ao que é bruto, não ao estômago, não ao fígado, não aos ovários nem aos testículos. Olhos capazes de levar o que veem até a alma. Porque ela também, é toda abstrata em quem a tem.

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Estreio hoje a série "À espera".
Toda quinta-feira uma nova crônica.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Os que eu não sou

Não sou do tipo que dança nas festas. Sou do tipo que um dia se mata. Qualquer frase que contrarie essas sentenças, não sou eu. O que enxergam quando é para mim que olham?

Eu não posso enganar. Eu não sei mais mentir. Sorrir falsamente, cantar o que todos cantam, escrever o que todos escrevem. Eu não sei. Eu desaprendi ser os outros. Logo eu, que já fui tantos, hoje sou só eu.

E eu queria que me reconhecessem por isso. Eu queria que as sombras do que eu não sou não pesassem tanto sobre mim. Mas pesam. Pesam porque cada vez que vocês dizem como eu não sou, subentende-se a maneira como vocês gostariam que eu fosse. 

Eu sou sempre menos do que vocês queriam.

Há alguém que goste do que sou?

Queriam que eu dançasse. Queriam que eu risse. Queriam que eu saísse. Queriam que eu bebesse. Queriam eu tivesse dois empregos. Queriam que eu escrevesse crônicas amenas. Queriam que eu ganhasse dinheiro. Queriam que eu calasse a boca. Queriam que eu tivesse uma plantação. Queriam que eu tivesse uma casa. Queriam que eu fosse pacífico. Queriam que eu fosse dócil. Queriam que eu aceitasse tudo. Queriam que eu relevasse. Queriam que eu me omitisse. Queriam que eu trabalhasse de graça. Queriam que eu fosse incompetente. Queriam que eu transformasse a vida de alguém. Queriam que eu autografasse. Queriam que eu publicasse. Queriam que eu escrevesse a história de um gato. Queriam que eu quisesse tudo isso.

E eu não quero.

Não tudo. Não agora.

O que eu queria era que me deixassem ser essa coisa intrincada, confusa, introspectiva e imatura que eu sou. Queria que não me atirassem na cara o quanto me queriam melhor. A cada frase, o que me esbofeteia é o quanto eu não sou bom o bastante para quem fala. Cada pequena sentença vem em tom de acusação. Diz assim: "Você não é isso. Eu queria alguém que fosse, mas você não é. Por que você não é, se eu queria?"

Estou cansado. Estou cansado dos meus não seres. Eles pesam muito. Muito mais do que aquilo que sou.

Sou o que lê, o que fica, o que observa, o que pensa. Sou o calado, o que se esconde, o que escreve para não se entender. Sou o que pesa, pondera, qualifica, o que responde, manifesta, ri quando acha graça e silencia quando tudo mais é agitação. Sou o que espera as tempestades. Sou o que ama, faz poesia e sonha. Sou o que lida com o insustentável, o que fantasia, que fotografa e estuda por horas um inseto de jardim. Sou o que pinta, o que repara, o que pensa, o que brinda sozinho e olha, pela janela, a lua. Sou o que diz mais do que deve, pensa mais do que sente e não consegue, simplesmente não consegue ser diferente.

Compreendam, por favor, compreendam: eu não sou os que eu não sou. 

Os outros são. Eu não.

E se o que eu sou não basta, compreendam isso também: eu sou daqueles feitos para serem deixados no caminho.

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Publicado originalmente no blog Febre Crônica.

sábado, 22 de junho de 2013

Poema


sexta-feira, 21 de junho de 2013

Conto

Você chega na sala e espera que seus alunos entrem. 
Eles correm nos corredores (justificando o nome).
Eles cospem nos que ainda estão subindo as escadas.
Eles batem nos alunos de outras turmas.
Você chama a atenção, pede, implora, perde a paciência, grita.
Eles passam por você, estão sorrindo, e dizem: “Vô no banhero!”
Você continua na porta esperando para começar sua aula.
Vem a direção trazendo mais três ou quatro e coloca para dentro da sala.
Você pede que eles sentem em seus lugares.
Uma das meninas grita sem parar: “Não vamos voltar pro lugar! Vamos sentar em meia lua! Gente, meia lua!”
Você ordena que sentem NOS LUGARES.
Eles finalmente sentam em filas. Fora dos lugares do espelho de classe.
Você procura o espelho, mas ele não está mais na sala. Eles o roubam de tempos em tempos.
Você inicia a aula e, enquanto escreve no quadro, uma das meninas está questionando as outras, em alto e bom som, se elas não sentem vontade de transar todos os dias.
É um oitavo ano.
Só metade da turma está realmente copiando.
Você chama a atenção, pede silêncio, corrige a postura de quem está deitado na cadeira, manda dois ou três abrirem o caderno, pede que, por favor, um dos alunos que está em pé sente-se no lugar.
“Já vai!”
Você pede mais uma vez que o aluno volte ao lugar.
“Já vai!”
É a terceira vez que você pede, já alterando a voz. A resposta:
“MEU DEUS, EU DISSE QUE JÁ VAI! QUE SACO! TÔ SÓ MOSTRANDO UMA COISA AQUI NO CELULAR!”
Você sabe que, se tentar tirar o aluno da sala, não vai conseguir.
Você já tentou isso antes.
Você teve que ouvir, então, que lugar de aluno é dentro da sala de aula!
Você explica o que é um texto dissertativo, a importância dele na vida estudantil, os temas cobrados em vestibulares e ENEM...
Você interrompe a explicação porque três estão conversão, quatro estão brincando e pelo menos dois estão escutando música com o fone de ouvido.
Entre protestos e palavrões (que eles sussurram), você consegue mais cinco minutos de atenção.
Você termina de explicar o que precisa que eles façam. O tema do texto é o mesmo que você e a professora de filosofia trabalharam durante todo o último mês: “O que eu tenho a ver com a corrupção”?
Alguns deles perguntam o que é “corrupção”.
Enquanto você ajuda os outros a iniciarem, uma das meninas arranca folhas do caderno sem parar. Ela as amassa e enfileira sobre a classe, formando um arsenal de bolinhas de papel. 
Você questiona o que ela está fazendo.
Ela olha pra você e sorri.
Alguns fazem suas próprias bolinhas e a guerra começa.
O texto vale 100 pontos.
Até o final da aula você vai receber 3. Da turma toda, 3 conseguirão terminar.
Você dá um basta na guerra de papel e pede que venha alguém da supervisão ou direção (não há coordenação), preferencialmente com uma câmera para registrar as dezenas de bolinhas no chão, nas classes e escondidas na mochila de uma delas.
Você espera na porta.
Um dos meninos pergunta a outro se ele “sentiu o gosto do sebinho quando chupou”. Depois diz coisas que eu me recuso a escrever. Com 25 anos eu me recuso.
Uma das meninas grita com voz patética “nãnãnãnãnão!”. Provavelmente imitando alguém.
Eu continuo tentando fazer com que eles produzam.
“Mas eu não sei o que é corrupção!”
“Corrupção é aqueles protestos que estão fazendo. O vandalismo é corrupção.”
Eu peço para que alguns meninos virem para frente. O caderno deles está em branco.
“MAS MEU DEUS! SÓ ENXERGA O CARA! AS MENINAS LÁ ATRÁS TAMBÉM NÃO TÃO FAZENDO NADA!”
Na verdade elas estão. Elas estão tirando fotos umas das outras com o celular.
Vem uma das supervisoras, estende a câmera que você pediu pela porta, sorri e some.
Você tira as fotos enquanto eles debocham e dizem:
“AAAAAAI, O QUE SERÁ QUE TEM UMAS BOLINHAS DE PAPEL?”
“MAIS CREDO! O CADERNO É MEU! EU FAÇO O QUE EU QUERO! QUERO VER SE ALGUÉM DIZ ALGUMA COISA!”
Você sai da sala. Vai à direção. Mostra a câmera, conta o horror que está a sala...
Será feita uma ata! Com a turma toda! Quando o diretor estiver na escola...
Vem um aluno de outra turma, fala com a pessoa responsável. Ele quer ir pra casa e ela não deixa. Ele sai mandando que ela vá tomar banho! Assim, gritado no saguão.
Você volta para a sala, tenta em vão parar de tremer. Sua cabeça dá voltas.
Dois alunos são tirados. A menina do questionário sobre vontades sexuais e o menino do sebinho e demais impropérios.
Os outros querem saber por que eles foram tirados.
“DAÍ SIM! ELES NÃO FIZEREM NADA!”
Sobre as bolinhas de papel, as fotos serão mostradas aos pais.
“Grande coisa! Minha mãe tem muito mais o que fazer do que vim aqui vê foto de bolinha.”
“Verdade, fulana, ela vai vim aqui, puxar um cigarrinho e fumar enquanto eles falam.”
Risos ecoam.
“O que adianta? Eu já fui até pro conselho e não deu nada. Tinha que ver que legal! A muié lá falando, falando, falando e eu mexendo no celular. Ela falava da escola e eu contava das festa que eu vou.”
“Quem aqui já foi pro conselho?”
Mãos se erguem.
“Dá nada, né?!”
“Ah, é chaves...”
Você tira as dúvidas dos três ou quatro que estão fazendo a dissertação. Dois deles querem saber se é pra fazer sobre o mensalão.
Um dos alunos traz um papel com um texto escrito em vermelho, azul e verde. De cada linha ele ocupou a metade, para que rendesse. Você lê a primeira linha:
“A corrupção no brazil contra o almento de coisas no Brazil as coisas aqui estão muito cara e as que são pobres estão passando fome”
Você para. Há um ponto no texto inteiro. E quatro vírgulas.
É um oitavo ano.
Você diz que não aceitará o trabalho e tenta apontar os problemas. Ele interrompe, tomando o texto e indo sentar.
“MAS NÃO ACEITAM NADA! SE A GENTE NÃO FAIZ, RECLAMAM, SE A GENTE FAIZ, RECLAMAM TAMBÉM! NÃO SEI O QUE FAZÊ PRA AGRADÁ ESSA GENTE!”
Provavelmente será determinado que ele passe no final do ano. Já foi assim até aqui.
Você pensa na perspectiva de estar na formatura dele. De ouvir os pais deixando uma mensagem especial sobre a dedicação, o empenho e as vitórias dele...
Você já ouviu isso antes.
É 11h26min e aqueles que não fizeram nada a aula inteira guardam o material.
O horário de saída é 11h40min.
Você ordena que eles sentem, que façam o texto, lembra a eles que vale 100 pontos, que será uma das avaliações... Eles abrem a porta e saem para o corredor, começam a gritar com uma turma que já está lá fora gritando, correndo e se batendo. São do Mais Educação, provavelmente.
Uma das meninas vira pra você, depois da aula inteira, e pergunta:
“Tá, é pra fazê um poema?”
Você fecha os olhos e espera que o sinal bata de uma vez.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Engano

De repente, tu chegas para a festa e não te querem. Tu insistes, bates uma vez mais na porta, o som é alto, quem sabe não ouviram.... Nada. A ti parece que alguém espiou pelo olho mágico... e não abriu.

Tu ligas ao dono da festa. Ele não atende. Deixas uma mensagem, polida, hesitante e meio alegre, avisando que está ali e que alguma confusão houve... Ninguém responde. Tu gritas um nome ou dois para a porta... Alguém abre, finalmente.

Abre e avisa com todas as letras: não, não te querem na festa.

Tu desces as escadas, então, cabisbaixo... Tu tentas, em vão, te convencer de que, afinal, a festa nem era tão importante... Soa irremediavelmente como o consolo da raposa "estavam verdes as uvas". É mentira. A festa te importa, te importa a alegria dos que estão lá, bebendo, dançando, sorrindo, batendo uns nas costas dos outros, brindando.

Na janela, tu vês as luzes coloridas se derramando. Alguém aponta para ti lá de cima e ri, ri, ri. Tu, que te julgavas tão importante, tão maior, tão dono da festa toda, atravessa a rua desolado. Não há mais para onde queiras ir. Não há festa, por maior ou mais bela, que te console agora. Não há caminho, não há graça.

Tu tentas compreender o porquê de não te quererem ali. Pensas no que disseste, no que fizeste, no que deixaste por dizer... Nada te ocorre. Nada que justifique. Talvez tu simplesmente não pertenças àquele lugar. Tentas, mais uma vez, te convencer: é isso, tu és bom demais para aquele lugar! De novo as uvas soam verdes.

É tua incompetência a causa do ostracismo... É a falta em ti do que eles têm. E o que é? Tu não sabes dizer. Continuas o caminho, olhando para trás volta e meia, checando o celular.... Quem sabe tudo não passou de um engano... Quem sabe alguém acene da janela ainda, chamando-te de volta... Quem sabe o dono da festa ligue e esclareça as coisas...

Quem sabe não.

É, pensas por fim, foi tudo um engano... A vida toda até aqui. E então desistes das festas todas.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Namoro

Namorar não é mudar status de Facebook, ir a jantares caros e ligar toda hora para a pessoa. Namorar não é comprar um presente pra impressionar, gastar o que não tem em uma lingerie para a noite e escrever com letra bem bordada “Eu te amo” em cartão.

Namorar é tão delicado quanto o amor. Tão sutil quanto ele.

Namorar é sentir o perfume do outro, até estando longe. É querer jantar todos os dias com aquela pessoa, mesmo que seja só um pão com mortadela. É ficar em silêncio, só olhando o rosto de quem se ama, ou então conversar madrugada adentro, sem perder o tom. Namorar é ver, sem dia marcado, algo que o outro gostaria muito e comprá-lo, por singelo que seja, não para impressionar, só para fazer sorrir.

Namorar é conhecer as alergias e manias de quem se namora. É entender olhar. É ter música certa. É saber o que o outro vai dizer antes mesmo que o diga. Namorar é ter para quem sorrir.

Namorar é ficar esperando na janela. É não ter vergonha de chorar, de se revelar fraco, de pedir ajuda. Namorar é tirar sarro, é corrigir e é falar sério sem que isso gere uma grande tempestade. Namorar é dizer “você está errada!” tanto quanto “você é linda!”. Namorar é mandar mensagem para que ela não se esqueça de lhe trazer seu remédio. É saber que ela gosta da sensação de passar uma pena pelo rosto. É olhar com um sorriso a pulseira que ela esqueceu na sua casa. É escrever declarações em cadernos antigos. Namorar é escolher o nome dos filhos.

Namorar não é coisa para se comemorar em um dia específico. É coisa para se construir no dia a dia. Amor não é algo para mostrar. É algo para aninhar no peito. 

O amor não é aquilo que aparece nos presentes, nos status, nas lingeries vermelhas. O amor é aquilo que se esconde no brilho do olho de quem namora, quem namora de verdade.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Inconveniências

Ele chegou com todas as malas de quem vem para ficar. Abraços dados, sorrisos lindos, uma conversa de embalar sonhos...

Ele chegou e transformou a casa toda. Houve riso, alegria, esperança, ousadia... Com ele veio uma felicidade impossível de explicar. Uma felicidade que espocava nos cantos e só podia ser traduzia mesmo em brilhos de ofuscar.

Quando ele chegou, foi tratado como toda boa visita. Cardápio especial, passeios planejados, o melhor quarto da casa, o direito de escolher a programação da TV e o horário do banho.

As contas foram crescendo. Era mais uma pessoa na casa e ele não dava mostras de querer partir.

Tentaram, então, retornar ao feijão com arroz, resumir os passeios à vizinhança, convencê-lo a não demorar tanto no banho... Tudo em vão. Ele exigia o melhor.

Passou em dois tempos de alegria a incômodo. 

Perguntaram, casualmente, se ele pretendia ficar muito mais... “Para sempre”, ele respondeu, satisfeitíssimo e gordo (engordara muito desde a chegada). Fingiram alegria, mas no íntimo, cada um não via a hora dele partir.

A segunda investida foi mais direta. Perguntaram se ele não planejava ajudar na casa: pagar luz, água, comida... Qualquer conta paga seria bem-vinda. Ou pelo menos uma mão na faxina...

Ofendeu-se. Ele fez, então, um discurso muito longo e ultrajado sobre o quanto eles eram materialistas e mesquinhos. Mesmo assim, nem por chantagem ameaçou ir embora.

Naquele dia bateram-se portas e os últimos resquícios de brilho se foram.

Na manhã seguinte, o convidaram para um passeio de reconciliação. Enquanto um o distraía na sala, os outros empacotavam, ligeiros, as coisas todas dele e as carregavam no carro. 

Finalmente o passeio... Foram todos. Foram longe e foram para bem dentro de um descampado.

Quando chegaram lá, o descarregaram. Do porta-malas tiraram todas suas tralhas e despejaram ali mesmo, sobre a estradinha de terra. Ele que ficasse! E que não voltasse jamais ou o próximo destino seria outro! Entendera? Outro...

Enquanto voltavam para casa, satisfeitíssimos, a menorzinha deles verbalizou o sentimento geral:

— Foi-se tarde. Bem tarde. Fizemos o melhor a se fazer. Não que o Sr. Idealismo não seja boa pessoa... Mas quando ele não nos ajuda em nada, nem nas contas a pagar, a melhor atitude a se tomar é mesmo desfazer-se dele.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Para maritacas


Lívidas, as maritacas esperavam que o chefe do bando desse, enfim, uma sentença. Palavras como “expulsão” e até “morte” pululavam em suas cabeças coloridas. O chefe, muito austero, repassava mentalmente história toda, longa e vermelha.

Começara assim: haviam feito uma seleção entre todas as maritacas do bando para que uma fosse escolhida para instruir os filhotes em seus primeiros voos. Depois de alguns testes, Lola foi a escolhida.

Acontece que, embora tenha se saído bem nos testes teóricos, Lola era, na prática, uma desavoada. Lola não conseguiria ensinar sequer um avião a levantar voo. E olha que eles nem sequer nascem filhotes!

Pobres Maritaquinhas.

Elas não aprendiam. Não aprendiam simplesmente. E isso era uma dificuldade para o bando todo. As maritacas cresciam sem aprender a voar e, portanto, precisavam ser alimentadas, alimentadas e alimentadas por outros. E que fome tinham!

As primeiras alunas de Lola já eram quase adultas e não arriscavam sequer um rasante. Cobrou-se que Lola as fizesse voar. Fosse da maneira que fosse.

Lola, pressionada, fez com que suas alunas subissem no galho mais alto da árvore mais alta do morro mais alto da floresta já alta em que viviam.

De lá, ela as atirou, uma a uma, para que voassem. Era um método medieval, é preciso admitir, mas se funcionara antes, por que não agora?

Péssima ideia.

Morreram todas.

As raízes da árvore mais alta do morro mais alto da floresta já alta transformaram-se em cenário de catástrofe. Eram penas, asas, pés e biquinhos todos espedaçados e rubros de sangue.

Os fatos todos foram levados ao chefe do bando.

— Mais de cinquenta, Senhor. Mais de cinquenta. Lola não respeitou sequer as maritaquinhas que nem pena tinham. Ela as atirava e atirava e atirava. Se soubesse ensinar, não teria feito o estrago que fez. — Dizia uma.

— Ela é uma incompetente, senhor. Por pouco não jogou até meus ovos lá de cima! Algo precisa ser feito. Não queremos mais essa louca instruindo os voos de nossos filhotinhos. — Dizia outra.

O chefe pensou, pensou e pensou. Lola fizera o teste. O teste garantia que Lola ficasse no bando. Lola não podia ser rebaixada. Lola não podia perder sua função. Ao mesmo tempo, Lola não podia continuar com aquilo, ou terminaria com os filhotes todos. O que fazer de Lola?

Emplumando-se bem, o chefe perguntou:

— Digam-me, quando fui escolhido chefe, não era Lola quem gritava meu nome por entre as maritacas?

— Sim, Senhor, mas.... — responderam as outras.

— E não era ela quem dava algumas minhocas gordas aos indecisos para que me escolhessem também?

— Sim, mas...

— E não foi ela que falou bem de mim no alto dos galhos?

— Sim, mas...

— E não é ela a filha do meu grande amigo Mataco?

— Sim, mas...

— Mas nada! Já tomei minha decisão. Lola não será mais instrutora de voo – até porque essa chacina não pode continuar. Lola agora será fiscal das instrutoras de voo! Nomeiem outras dez maritacas, competentes(!), por favor, competentes(!), para que instruam os vôos. Lola fica responsável apenas por fiscalizar todas elas.

— Mas senhor, se ela não sabe nem ensinar, como vai fiscalizar?

— Por acaso isso é um desafio às minhas ordens? Vocês querem ser expulsas do bando?

— Não, não senhor...

Lá foram as maritacas, cabeças baixas, penas pálidas, cumprirem as ordens do chefe do bando. As maritacas mais competentes ganharam centenas de maritaquinhas cada uma. Deveriam instruí-las, não importava como. O chefe queria resultados, resultados! Mais aves para pegar comida! Mais aves para defender o bando! Vamos, maritacas, vamos, voando agora!

As instrutoras se desdobravam como podiam. As que se saiam melhor, recebiam mais cem alunos (sem que sua porção de grãos aumentasse um cisco sequer). A fiscal, Lola, desfilava entre elas, gorda (o cargo triplicara seus grãos de direito), enfeitada até com plumas de arara, mandando, ensinando e cobrando resultados.

As maritacas instrutoras gritavam, insatisfeitíssimas. Grasnavam até. “Assim não dá! Assim não dá! Assim não dá!”. Eram, porém, prontamente caladas. 

Lola cantava contente e cada vez que o chefe perguntava, ela se apressava em dizer: 

— Tudo correndo às mil maravilhas, Senhor. As maritacas estão satisfeitíssimas com seus cargos e seus salários. Fazem aulas de vôo que dão gosto de ver! São incríveis! E as maritaquinhas, então, dão até pirueta no ar. Apenas algumas não voam... Mas o problema é das instrutoras, o senhor sabe como é. Nem todas são competentes como eu...

Tudo mentira. Lola sequer olhava o trabalho das coitadas. Apenas sentava em seu ninho e pedia que não a incomodassem.

Mas o chefe acreditava, também sentadinho em seu ninho, sem conferir nada de perto. Acreditava em tudo e se orgulhava da promoção de Lola. Afinal, encontrara a vocação daquela desavoada. Ele ria, satisfeito, grande, gordo...

Outros problemas surgiram no bando e a mesma solução foi adotada. O vigilante que dormia no seu turno e não podia, por isso, continuar no cargo foi escolhido como supervisor dos vigilantes. Era um trabalho mais burocrático e mais afeito, portanto, aos cochilos. O coletor de comida mais imprestável foi colocado como supervisor de coleta, assim era só conferir a carga que os outros traziam. A maritaca que gritava totalmente fora de tom foi promovida a regente do coral, assim ficava de boca fechada.

O chefe, cada vez mais tranquilo, governava soberano do alto de seu ninho. Recebia relatórios lindos de seus subordinados, mais falsos do que maritacas amarelas. Nos galhos abaixo, a desordem, a incompetência e o caos chefiavam mais do que ele. Mas não por muito tempo. 

As coletas passaram a ser uma bagunça, as instrutoras não conseguiam dominar as maritaquinhas e não podiam contar em nada com a fiscal, o coral nunca mais conseguiu alcançar o tom, outros animais invadiam o bando e matavam às dezenas, sem que os vigilantes vissem qualquer coisa, afinal, faziam o que queriam enquanto o supervisor dormia.

Não muito tempo depois, o chefe chamou suas maritacas assessoras e conselheiras, queria saber como andava o bando. 

Nada. 

Chamou de novo.

Nada.

Ele então notou como andavam silenciosas as maritacas... Mas que diabos estava acontecendo? Desajeitado, o chefe desceu do ninho para ver o que havia com o seu bando...

Não havia, não havia mais bando. 

No império da incompetência, do descompromisso e do descaso, a fome, a falta de instrução, de vigilância e de melodia (sim, até de melodia) foram matando uma a uma as maritacas.

Abismado, o chefe (agora de ninguém) antes tão risonho e valente sussurrou trêmulo:

— Mas morreram... todas...

E foram essas as suas últimas palavras, ouvidas apenas pelo jaguar que o abocanhou.

domingo, 12 de maio de 2013

De um dia das mães


Foi no jardim, a Profe Marli nos fez ensaiar, ensaiar e ensaiar a apresentação do dia das mães. Havia uma música, provavelmente, e algum tipo de coreografia também. Não me lembro. No final, cada um segurando uma rosa deveria encontrar sua mãe no auditório e correr até ela.

A Profe mandou um bilhete para cada mãe, avisando data, horário e local. Minha mãe não recebeu o bilhete. Entre brincadeiras e risos e confusões, eu acabei esquecendo de entregá-lo.

Quando as cortinas se abriram, todos se preocuparam mais em procurar a própria mãe do que em fazer o que havia sido ensaiado. Batíamos uns nos outros, embasbacados, boquiabertos, simplesmente olhando e procurando nossas mães.

Quem encontrava a sua, apontava, comentava, ria com os outros.

Eu procurei por todo o tempo da música.

Quem sabe ela sentara lá atrás... Quem sabe ela estava escondida... Quem sabe eu não olhara direito...

A música terminou, o palco esvaziou, só eu fiquei lá, parado, de rosa na mão.

Lembro da Profe Marli ter soltado a própria filha – que era minha colega – e ter corrido me abraçar. 

As cortinas fecharam.

E eu não entendia...

Eu não ligava a ausência ao fato de eu ter esquecido de entregar o convite. Eu não ligava nada a nada...

Os alunos foram liberados. 

Lembro que naquele dia eu atravessei a cidade inteira com uma mão nas costas, agarrada firmemente à rosa.

Eu levava a rosa assim para surpreender minha mãe. Para que ela ficasse feliz. Para que me desse o abraço que me deu e dissesse que me amava, bem como disse.

Ela não fora à apresentação, mas eu sabia que estava em casa e que esperava por mim...

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Qual o sentimento mais doído?


O que se sente sozinho. Seja ele qual for.

Um amor não correspondido, uma amizade unilateral, um rancor corroendo o peito. O sentimento que dói mais é sempre aquele que não encontramos com quem compartilhar. Em mim, hoje, dói muito a esperança. Meus olhos estão quase verdes de acreditar. Eu só queria que acreditassem também. Eu queria que fossem ingênuos como eu. Que dissessem que os bons não morrem no fim do livro e que os maus recebem sempre algum tipo castigo. Não há quem o diga. Experimento meus olhos verdes e luminosos, miro os olhares de quem está à minha volta. Eles deveriam ser claros, azuis e verdes, mas eu só os vejo negros... Estou sozinho. Estou sozinho e não sei o que fazer da minha esperança. Então ela me dói.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Da tabuinha sobre seu colo


Eu queria poder entender tão pouco a ponto de pegar um papel de pão, o estojo com lápis de cor, e fazer um desenho para que você ficasse bom. Eu queria escrever em letra torta e colorida que sinto sua falta (que o amo) e que estou com saudades.

Eu mandaria para você o papel dobrado e saberia que, ao vê-lo, você sorriria e pensaria em mim. Eu queria depois ligar a outra pessoa perguntando se você tinha visto e se tinha melhorado. E eu queria ouvir, então, que sim, que você havia sorrido, levantado e dito que voltaria já pra casa, que já estava bem melhor e era hora de me ver de novo.

Mas...

Não há mais espaço para guardar papel de pão.

Os lápis de cor estão quebrando por nada, de velhos que são.

Minha letra não consegue ser torta outra vez.

Minha esperança encolheu toda a ponto de caber num bolso de trás.

Mesmo assim, mesmo sem desenho, mesmo sem cor, mesmo sem pão ou esperança, por favor, fique bom. Por favor, só isso, vô, fique bom.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Sete anos

Depois de sete anos você cansa, briga e resmunga. Você perturba e se perturba com as mais mínimas manias. Sim, depois de sete anos você discute, discorda e tem ganas de sumir...

Mas aí você percebe que, depois de sete anos, você incorporou o cheiro dela ao seu. Você entende cada olhar, você antecipa vontades, você faz o impossível só para vê-la sorrir. Depois de sete anos você sempre sabe para quem ligar no pior momento. Você ainda a espera chegar na janela. Você experimenta, então, uma intimidade que jamais pensou existir: você conhece o toque, o gosto, as lembranças, os sonhos...

Depois de sete anos você chora na frente dela e confessa, uma a uma, suas fraquezas. Você recebe o carinho certo no momento certo, você tece planos, conquista objetivos. Você ouve "nãos" e aprende a aceitá-los. Aliás, você aprende a cada instante como ser melhor, porque começa a cultivar em si todas as características que admira nela.

É tanta história. São tantos os momentos de entrega. É tanta a confiança e tanto brilho nos olhos que você não consegue, depois de sete anos, imaginar uma vida sem ela.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Um brinde!


Amanhã, a essas horas, não haverá champanhe gelado, pronto para espocar. Não haverá comemoração, drinques e amigos em um bar. Não haverá sequer um café e alguém para conversar. Não haverá abraços e felicitações e promessas falsas, fáceis de se acreditar. Não haverá mimos, agrados, lembranças pra se guardar.

Amanhã, quando mais tarde eu abrir a porta de casa, sei que as luzes não estarão apagadas. Sei que não haverá quem grite "Surpresa!", quem tenha organizado um jantar. Não sei se haverá quem pergunte como foi.

No outro dia, não haverá comemoração, fogos, diversão. Não haverá faixa, diploma ou retrato em jornal. Talvez (não sei) alguém lembre e pergunte, entre conversas amenas dos colegas nas vilas, entre uma aula de matemática e outra de geografia. E eu vou, então, sorrir e dizer (mentindo ou não) que foi bom. E a seguir falaremos mais dos problemas de algum sétimo ano.

Esse texto não é choro, nem lamento, nem grito irado. É constatação. Constatação de que não haverá porque não sou desses para quem há. Para quem há festas, bebidas e brindes. Não sou desses para quem há amigos e abraços e faixas e fotos.

Sou dos que, hoje à tarde, bem sozinhos, bebem uma vodka com morangos (que gelaram em refrigerador quebrado) e brindam ao nada. Brindam à toda lama e toda bosta que viram essa semana, brindam às escolhas erradas, aos caminhos sem volta, à falta de revolta e à ausência até de dor. Sou dos que comemoram a nulidade que se tornaram, bem sozinhos, talvez quase mestres, com a única certeza de que, até agora, não há motivo para comemorar. 

Tim tim.

A isso então.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Fardos


“Um besouro-rinoceronte consegue suportar nas suas costas um volume equivalente a oitocentas e cinquenta vezes o seu peso.”

“O homem mais forte do mundo consegue carregar quase três vezes o seu próprio peso.”

A testa franzida. O maxilar travado. Os olhos quase fechados. As veias pulsando em um ritmo perigoso. Os músculos todos estirados. A sensação de que não se pode mais aguentar. Ao mesmo tempo, a certeza de que não é do seu feitio desistir. Mais um passo. Só mais um passo. Eu posso. Eu consigo. Eu não vou me entregar agora... 

E então você desaba.

Você desaba como um Atlas que não aguenta mais o peso do firmamento. Você derruba toda sua carga e, no primeiro instante, tudo que quer é morrer.

Você se entregou. Você desistiu. Você, que nunca soube admitir fraquezas...

Então você permanece no chão, longamente. Você fecha os olhos e implora que tudo termine. Você quer fugir. Você quer morrer.

Algum tempo passa e nada se move no mundo.

Você abre os olhos de novo. Olha para toda aquela carga que você trazia e percebe que grande parte dela não era sua. Não era. Simplesmente você foi tomando dores alheias, você foi recolhendo as tristezas, frustrações e amarguras dos outros. Você tomou para si responsabilidades e lutas que jamais deveriam ser suas. Aquilo que fazia você ranger os dentes e franzir a testa era, enfim, o sobrepeso do que não era seu.

Você percebe que pode continuar. Pode, se só recolher do chão, entre cacos, o que é seu. As suas expectativas e frustrações, os seus sentimentos e pensamentos, as suas batalhas, derrotas e troféus. Você o faz. Pisando entre os despojos das cargas alheias, você recolhe as suas e as levanta. São leves. Com elas você pode. Assim você consegue continuar. Consegue com sorriso no rosto e leveza nos olhos. Você só precisa se lembrar, passo por passo, de que compartilhar a carga alheia vai tornar a sua insuportável; de que você deve continuar só com o que é seu e de deixar o que é dos outros continue com eles. Cada um com o seu peso. Cada um com suas dores. Agora você vai. Agora você já tem para onde ir.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Duração

Depois do último ronco do chimarrão, ainda olhando para a geladeira nova que já pifara, Seu Alaor proclama: "Antigamente sim as coisas eram feitas para durar. As batedeiras, as geladeiras, os liquidificadores, as televisões... Até o amor. Até o amor, antigamente, era feito para durar."

sexta-feira, 8 de março de 2013

Carta aberta às mulheres


O que de pior o machismo nos trouxe foi um feminismo.

Não aquele feminismo que luta por (legítimos!) direitos iguais, mas um outro, um feminismo de cabresto, que não almeja chegar ao lado dos homens, mas acima deles. Esse tipo de movimento faz com que algumas mulheres queiram se aproximar do que de mais bestial o machismo impunha: o conceito de um sexo dominante e outro dominado.

Será sempre assim? Sempre a luta que começa por igualdade precisará transformar-se em uma luta pela superioridade? Como ficam as relações em uma eterna “prova” de poderes e luta por territórios?

Se o seu marido deixa as roupas para você dobrar, pode não significar que ele pense ser esse um serviço pouco digno a um homem. Talvez ele o faça por ter duas mãos esquerdas e nenhuma habilidade com elas.

Se ele deixar a louça pra você lavar – depois dele ter cozinhado, limpado a casa e mudado os filhos – pode não querer dizer que ele seja machista. Talvez ele esteja só cansado.

Se ele disser: “Está tarde, vamos dormir”, ele pode não estar querendo dominar sua vida e provar que, como pensava a geração dos seus pais, ele manda em você. Ele pode só estar cansado e querer que você deite com ele.

Por favor, mulheres, menos preocupação e mais parceria. Menos necessidade de provar alguma coisa (para quem???) e mais compreensão, mais troca, mais abertura.

Você pode sim limpar a casa e ele trocar pneu. Você passar a roupa e ele pendurar os quadros. Você fazer as compras e ele cuidar das contas. Ou você abrir o vidro de conserva (já que faz boxe) e ele pregar um botão (já que foi criado ajudando o pai alfaiate). Nem tudo precisa ser uma guerra pela quebra de estereótipos. Às vezes é só uma questão de habilidade, como quando você sentava ao lado da colega mais esperta em matemática na hora da prova em dupla.

Relação é parceria, não competição. É chegar junto e não é repetir sempre “você não manda em mim!”. Muitos de nós, homens, reconhecemos o mérito de vocês e não queremos ser superiores. Tampouco precisamos que vocês provem a sua superioridade (já a conhecemos!).

Quem precisa provar o tempo todo que é dona de si, não o é: é ainda refém das velhas ideias machistas que já não deram certo. Esqueça um pouco o machismo. Esqueça um pouco o feminismo. Lute só contra quem ameaça você, os seus direitos, o seu bem estar. Lute como lutaria qualquer pessoa que se sentisse aviltada, se você se sentir assim (ou caso se perturbe com o sofrimento alheio). Mas se esse não for o caso, não perca tempo tentando convencer o outro do que ele já sabe. Se você é fantástica, só continue assim. Sem brigas, sem disputas, por favor, sem precisar provar isso o tempo todo. O bom senso agradece. E o amor também.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Diluição

Ághata me esgota.

Se um dia eu perguntasse o que há nos drinques pretos que ela sempre bebe (e se eu sobrevivesse ao olhar que viria então), ouviria dela uma resposta assim:

"Teu sangue. Teu sangue que eu recolho em picadinhas enquanto dormes. Teu sangue que eu sugo todo pelas seringas e depois fervo por três dias e meio. Teu sangue que misturo com canela, noz-moscada e breu moído. Teu sangue que eu provo em colher de pau até estar bem no ponto, amargo e fluído. Teu sangue, meu querido, o que eu bebo é o teu sangue, diluído em duas partes da tua própria alma."

Sim, Ághata me esgota.

Gota a gota.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Para Plath



Os manequins de Munique
não falam, não falham,
não mexem, não morrem,
não sentem, não mentem.
Não... não são como a gente.
Os manequins de Munique são
só perfeição.
Eu não.
Eu não.




sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Terras secas


Ela cola tudo sem formatação. E escreve em caixa baixa, de jacarandá. Ela quer escolher a cor, mas não consegue se decidir, então deixa tudo marrom, como se da cor-de-terra fosse brotar algo. Não brota.

Ela vaga pelos bares procurando pares e vagas, não encontra. Ela quer fazer parte de onde ninguém a quer. Mulher. Mulher que é, destempera-se com as fases da lua, ora escreve com rimas, ora nua.

(E rima "lua" com "nua", o que é pior)

Ela bate nas portas das editoras que batem-lhe as portas na cara. Parece justo. Ela persegue escritores também, já comentei? Ela manda e-mails de madrugada, tenta ganhar votos em concursos, tenta publicar poemas em jornais semanais. Não consegue. Nem matando - de vez em quando - ela vira notícia.

Ela se diz escritora, poetisa, autora e tradutora. Às vezes, de noite, se acha impostora, mas isso  ela não conta. De manhã já esqueceu, manda outro envelope para outro concurso. Escolhe codinome de homem. Apela para mantras, numerologia, astrologia e agronomia avançada. Não brota a sorte, não brota a escrita, não brota nada.

Desequilíbrio


Em um prato tens amor
no outro, insegurança.
Qual dos dois pesa mais
ao colocá-los na balança?

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O grande Houdini


Você aprende a enrijecer os músculos, a aguentar as pancadas. Você se faz de forte, mas é pura técnica, prestidigitação, ilusionismo de um mágico qualquer. 

Vendo, porém, que você aguenta os socos, que resiste incólume aos traumas, cada vez mais pessoas querem tentar, querem ver o quanto a força de suas realidades é capaz de lhe ferir.

E você deixa. Deixa porque não deixar seria covarde demais. Deixa porque já se convenceu da própria mágica. Deixa porque esqueceu que seu feito é truque, sua força é farsa.

Sendo assim, lhe batem. Socos secos principalmente, mas não só. Batem-lhe de todas as formas possíveis. E você finge que aguenta.

Até que um dia vem um soco qualquer e você está ainda despreparado. Não deu tempo de enrijecer os músculos, não foi possível botar a capa de madeira fina sob a camisa, para esse você não conseguiu estar pronto. O soco veio e arrebentou tudo por dentro.

Mas você continua fazendo de conta que é forte. Continua desafiando a dor. Continua com o show porque ele não pode parar.

Mas ele para. Quando você cai morto, cansado de testes e baques, cansado de fingir-se de forte, entregue, enfim, ao que de humano há em você. Então o show para. E dessa vez é para sempre. 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Por nós

Anoitece. Músicas novas preenchem meus vitrais de silêncio. Estou só e não sei ficar assim. Acompanhado sei ficar menos ainda, é verdade, mas com o só eu já me acostumei. Se alguém viesse, se alguém batesse à porta, eu abriria e chamaria para entrar.

(Mentira. Eu trancaria as portas e me esconderia por detrás das cortinas.)

Se alguém viesse, eu serviria café passado – se houvesse filtro. (E filtro não há.) Mas não importa. Ninguém vem. Eu pareço – de fora – fortaleza. Não dou abertura? Eu assusto? E vocês têm medo? Medo de escrever errado – eu não ligo. Medo de ser banal – eu até gosto. Medo de incomodar – mas e se eu preciso?

Vocês têm o medo de quem vai salvar alguém de afogamento, eu sei. Vocês têm medo de se afogarem comigo. Mas sou raso. No fundo, no fundo sou raso. Só não contem que ouviram isso de mim.

Sei falar da lua (e seus mistérios), sei falar da bebida (e seus espíritos de vinho), sei falar da vida alheia (e sua insondabilidade)... Sou mesmo de matar! Entre parênteses eu sou de matar. Eu tento ser fácil, juro, mas preciso de ajuda. Da ajuda do afogado. Preciso do abraço que naufraga. Como, então? Não sei. Não sei e não me deixam descobrir, ilhado que sou.

Mas se vocês viessem eu serviria biscoitos. (Eu tentaria evitar os amanteigados, juro. Eu seria simples, se vocês viessem: bolachas de água e sal. Pode ser? Não pode, né?! Eu já os perdi no café, confessem. Vocês bebem chimarrão. Vocês bebem cerveja. Mas eu não. É por isso?) Eu ouviria essas músicas aí de vocês. Eu desligaria essas minhas, em francês. Eu não cantaria rien de rien, se vocês viessem.

Mas vocês não vêm. Vem a noite, vêm as estrelas, a lua vem. Vem a ironia e os mosquitos também. A madrugada vira dia, o tempo vira a página, o carteiro vira a esquina. Mas não vem. Toca o telefone: é engano. Chega um e-mail: é propaganda. Vem alguém...

Mas não, moço, eu não quero um balde de pêssegos sem caroço.

Eu quero um é 'vocês' para deixar de ser tão eu.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Um nascimento e um furneral


Hoje ele morreu.

Era esperado já. Bem esperado. Mas toda morte de alguma forma o é.

De qualquer maneira, eu precisava ainda dizer algumas coisas a ele. E como só sei dizer escrevendo, faço-o. Que ele consiga ler, esteja onde estiver.

Eu quero agradecê-lo, imensamente. Apesar de alguns desentendimentos, ele foi bom comigo. Muito bom, na verdade. Ele me fez realizar um sonho grande. Sonho daqueles que quando contamos, até riem de nós. Eu não esperava que tudo fosse tão simples, tão rápido, tão fácil. Eu não esperava poder me assumir escritor de modo tão sem dores. Eu não esperava o reconhecimento que chegou, derrubando frutos e lançando sementes que ainda estão por brotar.

Eu preciso agradecer também porque ele me apresentou muita, muita gente. Ele me fez conhecer pessoas incríveis, repletas de bons sentimentos, de sabedoria, de ideologias, de poesia e de força. Gente em quem eu agora me inspiro. Também agradeço pelo outro tipo de gente... sempre precisamos ver como a maldade é, que sorrisos tem, que coisas quer. Sempre precisamos ver o que queremos evitar ser.

Obrigado por me ensinar que sonhos são possíveis, que a mudança move a vida, que a procrastinação nos fazer perder muito (especialmente tempo), que o silêncio pode ser também inspirador, que nem toda ofensa precisa de resposta, que nem toda ação precisa de motivo, que nem toda oração precisa de sujeito. Obrigado por me ensinar que a distância também aproxima, que amizades são amores melhorados, que sentimentos também podem ser reciclados – ou descartados. Obrigado por me mostrar como nossas prioridades sempre estão mudando, como não controlar tudo pode ser bem mais divertido, como é bom se afastar daquilo que não nos deixa dormir.

Obrigado por me ensinar que ouriços também têm lá sua elegância, que falar também é um fazer e que ilusões também se quebram – sozinhas, cedo ou tarde. Obrigado por me mostrar a importância de ter alguém ao lado, para poder confiar, sorrir ou mesmo brigar. Obrigado por provar que nenhuma espera é vã, que todas as rodas da fortuna giram, que ninguém é muito mais do que seu próprio âmago, não importa quanto valor dê ao que está por fora.

É... hoje ele morreu. De coração acelerado, batendo em mil lugares, espocando feito fogos no céu. Hoje ele morreu enquanto brindávamos, ríamos e comíamos as famosas lentilhas de todo ano. Ele morreu e porque ele morreu tivemos banquete e champanhe.

Mas foi porque ele viveu que tivemos lembranças e conquistas e o que comemorar.

Adeus, ano velho.

Obrigado, mais uma vez, por tudo. Que seu irmão mais novo, nascido ainda esta noite, seja tão bom quanto você foi. Ou, se possível, melhor.