quinta-feira, 31 de março de 2011

Quebra-se o anjo de vidro

"Há vazio e silêncio aqui. Mas há barulho e falta de ordem em mim."

Explico minha ausência: faz mais de um mês que assumi o cargo de professor em duas escolas de Cratera. Duas escolas diferentes de tudo aquilo que eu já havia experimentado em estágios anteriores.

Essas duas escolas ficam em vilas consideradas carentes. De fora, você traduz carência como pobreza. De dentro, você percebe que carência é mesmo carência, é falta de carinho, de atenção. O que falta a eles, campanha nenhuma consegue arrecadar. Quem tem, afinal, sonhos para doar?

O pão lá se consegue, de um jeito ou de outro. O abraço não.

Mas não é da carência deles que eu quero falar. Quero falar é do sentimento que precisou brotar em mim, porque esse eu não esperava. Eu não esperava esse envolvimento desmedido, esse cuidar demais. Muito antes disso eu já havia me preparado para a secura do mundo. Eu já havia me envernizado uma casca dura, um escudo para não arranhar a pele, uma seriedade para tornar tudo tolerável. Eu já tinha minha imagem, feita de gesso e gelo.

O gesso esfarelou. O gelo derreteu.

Eu precisei me livrar de tudo que tinha de grave em mim. Eu precisei resgatar sorrisos. Encontrar, em meio aos livros e artigos, o afago. Precisei descobrir aonde o mestrando deixou os cadernos de criança. Precisei esquecer os programas sofisticados de computador e lembrar dos lápis de cor. Precisei me refazer todo para encontrar espaço no peito (trancado) para aqueles pequeninos anjos ou diabos.

Eu me descobri mais frágil, mais vulnerável, mais humano do que eu queria ser. Esse mês foi de aprendizado, mais para mim do que para eles. Eu precisei aprender a lidar com uma infância já de mim tão distante, precisei aprender a acalentar sonhos, a acarinhar com um simples elogio, a envolver com um sorriso. Para gramáticas há tempo. Para a carência não. Carência tem urgência. Coração quer bater quente, independente das linhas do caderno ou da avaliação do professor.

3 comentários:

  1. Doeu no espírito.
    Sensibilidade e sensitividade pra poucos.
    Um beijo.

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  2. Que lindooooooooooooooooo!

    Eu sei exatamente do que você está falando, há quase 2 anos vivo essa experiência de ensinar em uma comunidade que é o fiel retrato dessas duas carências, a material e a falta de carinho, sonhos, perspectivas...e isso gerou também muitas transformações em mim. Porque uma coisa é você saber que esta realidade existe, outra é você presenciar isso, ouvir de uma criança coisas que te levam lágrimas aos olhos instantaneamente.

    Que maravilha que o gelo derreteu...além da lição linda que fica, o seu texto está muito bonito! Parabéns!

    Um abraço,
    Kenia.

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