terça-feira, 11 de setembro de 2012

Meu vício

Eu espero. Espero a casa toda se acalmar. Espero que até os cachorros durmam. Espero que os vizinhos saiam para trabalhar. Qualquer um deles, se me visse, saberia para onde vou e daria o alarme.

Eu não precisaria ir. Eu tenho em casa. Tenho mais do que poderia usar. Escondido nos armários, pelo chão, em todas as gavetas, nas mochilas todas, sobre as cômodas. Eu tenho. Tenho o suficiente para cinco ou seis overdoses. Mas basta? Não basta.

Na verdade eu nem queria ir. Não deveria ir. Eu tenho minha vida já toda bagunçada. Mais disso só me traria problemas. Faria com que eu atrasasse tudo ainda mais. Eu prometi. Mil vezes eu prometi a mim que iria parar. Segurar por umas semanas, pelo menos. Dar um tempo...  só por enquanto. Tentar me manter sóbrio, de cara limpa. Mas como? Como se a realidade é feia e as pessoas são brutas?

Só o vício ameniza.

Eu ando pelas ruas como andam os criminosos todos. Cabeça baixa, andar rápido, olhar sempre desviado. Encarar o outro - o são - é mortal. A vergonha é grande. Vergonha de trair especialmente a mim. Eu havia prometido... Então eu sou meu próprio traidor? Sim.

É porque sou fraco diante do vício.

Atravesso a cidade e sinto que muitos já sabem. Os do meu caminho já intuem. Já sorriem. Eles sabem... Tantas vezes eles tentaram me avisar. Procuraram meus pais até. Quando me viam, antes diziam assim: "Pare com isso, meu guri. Isso não fez bem, nem pro corpo, nem pra cabeça. Tu ainda vai te arrepender.... Pare enquanto é tempo"

Eu não parei e eles desistiram. Que eu me danasse, então.

Às vezes me arrependo. Mesmo. Às vezes penso que se eu os tivesse escutado... Me fez mal mesmo. Para o corpo e a cabeça. Deixou sequelas. Só agora eu sei. Mas agora já estou perdido. Agora não adianta. Não adianta o olhar impassível dos pais. Não adiantam as súplicas silenciosas da namorada. Mesmo eles já se conformaram.

Porque no fundo no fundo eles sabem: não podem me fazer escolher. Se eu tivesse que escolher entre qualquer coisa e o vício... 

Eles sabem.

Quando vou chegando ao local, estremeço todo. Entro disfarçado, cobrando ainda a minha culpa. Eu não deveria. Eu não poderia. Isso destrói minha paz já tão delicada.

Há aulas, há mestrado, há um livro por revisar, outro por reescrever... Como eu posso me permitir assim? Como eu posso me entregar, ser tão inconsequente? Não sei.

Não sei, mas posso.

Eu sou fraco. E já não sei se a fraqueza é motivo ou álibi. Também não importa.

Quando chego na boca lá estão elas. Só sorrisos. Aliciadoras é o que são. Mas sorrio também, já inebriado pelo cheiro. Lá meu vício sorri comigo. De todos os lados. E elas me tratam com deferência. Porque sabem que eu pertenço àquele lugar. Elas sabem que eu sou dos condenados. Dos que já não têm mais volta.

Elas sabem que é só isso que ameniza os dias. Só isso que permite fugir da realidade prenhe de caos. Só isso que amplia a visão, a percepção, o êxtase, só isso que faz 'viajar'...

Elas sabem. 

E como são maldosas. Uma delas já diz logo que separou para mim do melhor. Que outros clientes queriam, mas ela não deixou que levassem. Que é mesmo do bom e que veio ainda semana passada. Tinha quase meu nome escrito nele.

Eu pego. Olho bem. Cheiro.

Esqueço minhas promessas. Esqueço minha vida e a tentativa de mantê-la ordenada. Que me interessam as outras coisas?

É esse mesmo! Eu quero! Eu preciso!

Lá no fundo, avisos espocam: NÃO! Eu não deveria. Isso significa mais atraso, mais atrapalhação, mais nãos, mais caras feias e compromissos quebrados, isso significa a caída mais para o fundo do poço... Não!

Eu não devia, mas eu quero.

Quero e pego e saio. Saio escondendo-o. Embora todos notem. Todos saibam. Chego em casa e olho para minha vida espalhada sobre a cama: os cadernos, as pesquisas, o notebook ainda ligado... Tudo poderia ser tão bom se não fosse meu vício. Tudo seria feito, seria resolvido, seria entregue... Mas há o vício. E não posso com ele, então me entrego...

Deixo tudo de lado. Pego o que trouxe da boca. Abro. Cheiro mais uma vez. E é mesmo do bom.
Enfim, começo a ler.




Estou perdido. Eu sei. Porque para o meu vício não há cura.
Maldita seja essa [bendita] da leitura.

3 comentários:

  1. Bendito seja mesmo esse vício que tão poucos ainda se detém em consumí-lo, devesse ser de Milo que não precisasse de camisa-de-força ou de Vênus...

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  2. Demais cara! Demais mesmo. A narração está...
    Na parte "Abro. Cheiro mais uma vez", eu tive que rir... Por que isso, não é? O cheiro, até o cheiro... Nossa.

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