sexta-feira, 18 de março de 2011

Também para uma avenca partindo

Você sentiu a morte, meu amor? Você soube, desde o começo, que ela havia chegado? Você a desejou ou a repeliu? Eu preciso saber. Eu preciso saber se você sentiu o cheiro dela, viu a presença dela, tentou se esconder, ganhar um pouco mais tempo, mas não conseguiu. Você esperou por mim, para morrer comigo, meu amor? Você esperou e eu não cheguei? Isso me destroça, meu negrinho branco, isso me fere, isso me parte, isso me enche de água os olhos mortos. Você me amou mais do que qualquer coisa. E eu não vim te fazer o último afago. O último antes da morte. Com que esperança teu coração fraco não deve ter batido? Com que desejo de ainda me ver? De sentir, uma última vez que fosse, minha mão te acarinhando a cabeça? Tu esperaste por mim para morrer. E eu não vim. Consigo ainda sentir teu cheiro, encontrar tuas marcas pela casa, apalpar a ausência que deixaste na tua cama. Mas nunca mais vou ver teus olhos, nunca mais escutar tua voz, nunca mais sentir teu calor. E eu só queria ter tido chance de mais uma vez afagar tua nuca, mais uma vez te acalmar e te ninar no colo. Eu queria ter deixado você me ver ao lado da morte. Para saber que estava tudo bem. Para saber o quanto eu também te amava. Amei desde o começo. Desde a primeira vez que eu te vi e tu nem olhos abertos tinha. Eu queria ter sussurrado que ia ficar tudo bem. Eu queria ter aquecido tuas orelhas, ter te espremido contra o meu peito, ter feito você escutar meu coração. E eu não estava aqui. E você deve ter partido com a alma cheia de esperança podre, ruída, malograda. Cheio da ausência do que mais amou em vida. Teus olhos se fecharam por outras mãos, mãos frias, desacostumadas de carinho. Nem teu corpo eu tenho, para chorar sobre o gelo da morte. Nunca mais te ver. Como tu nunca mais me viu, antes de partir. Eu quero esquecer do mundo hoje. Eu quero continuar chorando assim, eu quero continuar escrevendo assim. Eu não quero trabalho, eu não quero mais nada. Eu quero dizer que te amei. Desde que cabia inteiro na minha mão pequena. Desde que eu te enchia de leite ao te dar mamadeira em um tubo de novalgina. Eu te amei desde que te roubei da tua mãe, tu tinhas dois dias de vida. Eu, não mais do que sete anos. Eu te amei porque ninguém mais cresceu comigo. Ninguém mais aprendeu a ver a chuva na janela da sala. Ninguém mais ouviu minhas fitas de história encantada ronronando com tanto gosto. Ninguém mais se encolheu com tanto amor perto de mim. Ninguém mais vinha ao ouvir minha voz. Ninguém mais se desmanchava em carinhos quando eu estava por perto. Ninguém mais pousava para minhas fotos. Ninguém mais. Porque desde o começo você decidiu que a entrega seria total. Desde o começo você decidiu que seria meu. Eu te carreguei de ponta-cabeça, te puxei pelo rabo, te vesti com roupas de gente. E tu deixaste, paciente, porque era meu. Tu me viste crescer, ano a ano. E mesmo quando tudo era difícil demais, tua cabeça sempre encontrava minha mão. Tu chegaste ao cúmulo supremo do carinho entre os teus: lambia-me os cabelos, penteava-me todo. De pequenos não nos largávamos e dei para ti minha paixão por chuva. Hoje chove, meu amor. Chove pra ti e tu não estás aqui, sentado nas janelas, olhando as gotas. Nunca mais ninguém espiará, mesmo que pelas frestas, a chuva cair. E em que pensava você? Nas tardes de despreocupação e zelo, em que sentávamos ambos ver a água correr? Lembrava do menino que você viu se fazer homem? Não sei responder. Eu lembro da última vez que nos tocamos, dos últimos carinhos. Pelo menos foi assim que nos vimos a última vez, entre carinhos. Não me fere tanto a tua morte, o teu descanso, o que me apunhala é tua esperança partida. Sim, porque eu sei que tu nunca me desejaste tanto quanto ali, naquele momento. Nunca quiseste tanto um carinho, como antes de ir. Se eu estivesse ali, você saberia que estava tudo bem. Mas eu não estava. Não cheguei a tempo. Não soube. O que eu fazia enquanto você morria, meu amor? O que, nessa minha vida cheia era mais importante que tu? Quantas vezes tu contaste as batidas do portão e aceleraste o coração esperando ser eu? Quantas, meu amor?


Será que tu me perdoarás algum dia? Será? E se eu prometer ver a chuva pensando em ti? E se eu prometer guardar pra sempre o amor todo que tu me deste? Tu me perdoas assim? Por favor, meu amor.



"por toda minha vida"

6 comentários:

  1. Uma das coisas mais maravilhosas que já li.

    Puro sentimento. Compartilho contigo meu lamento.

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  2. E como eu posso tanto ter visto, sem ter te descoberto?
    Me encantei com cada texto, nos sentimentos expostos e escondidos.

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  3. Anjo, sinto muito pela sua perda. Tenho um cachorro há uns 16 anos,pode até ser mais. E estou me preparando, muito triste perder um amigo =(
    Belo texto, pena o motivo.
    Beijos.

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  4. Tocante!!!
    Perdi meu amigo há 3 dias.
    Estou sentindo um vazio enorme, ele era tudo de mais puro que havia em minha vida...
    Me revolta quando as pessoas me dizem que era apenas um cão.
    Pra mim ele era o amigo mais leal e verdadeiro. :(

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  5. Uma das coisas mais lindas que já li sobre amor entre gato e gente. Agora não lembro das outras, então fica sendo a coisa mais linda que já li sobre amor entre gato e gente.
    Um beijo emocionado,

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