quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

No escuro



Você nunca tem como saber. O que se passa dentro do outro. O outro é mistério. Mais do que o eu? Talvez mais. Você nunca vai saber o que uma frase, um olhar, uma, só uma noite, uma lâmina cega, uma ameaça vazia, você nunca sabe o que isso pode causar no outro. O outro é profundo sempre e não se mostra nunca.

Você não pode saber da música que ele canta por dentro, do livro que escreve em si todos os dias. Você não pode saber dos traumas que o corroem por dentro, feito ratos em edifício abandonado. Você não pode saber dos comprimidos que o outro esconde, parcimoniosamente, desde o dia em que decidiu tomar todos juntos. O outro é abismo. E abismo que não olha de volta, desvia o olhar, o esconde por trás de lentes espelhadas.

Você não sente o que o outro sente. E o mundo, meu Deus, é sentir. É sempre sentir, independente do que aconteça, independente do que diga a razão. O mundo é o que se faz por dentro. E o dentro do outro você não conhece. Você não pode ver. Você não pode entrar, por mais que bata.

Você não sabe da pulsação acelerada, da arritmia, da falta de ar. Você não sabe porque sangue, coração e pulmões ficam por dentro. Você não saberá nunca, a menos que o outro fale. E o outro não fala. É cofre com senha perdida. Ou há senha e você não a sabe. Há uma palavra, na verdade, que faria o outro se abrir. Mas ele não a diz. Não a dirá jamais.

Você não sabe a tortura que uma coisa simples, banal, pode ser para o outro. Ou você sabe porque também a experimenta com fobias inofensivas, mas você finge ignorar. Você finge, por puro egoísmo, que com os outros é sempre diferente. Você finge que ele não pediu ajuda já. Finge que ele não mencionou alguma vez, indiretamente, o que aconteceu, as janelas fechadas, o descontrole, a sensação de ódio maior do que a própria sensação. O outro é sempre indireto e isso como que autoriza você a o ser também.

Você nunca sabe o que é a arma apontada para a cabeça do outro. Mesmo a arma invisível e inútil, sim, porque o outro se mata antes, por dentro mesmo. Se intoxica com o que sente, fica a ver o mundo rodar, a bile amarga enchendo a boca, o coração explodindo no peito. Por nada. Por nada, você pode dizer. É, mas você não sabe que monstros há no nada alheio. E você nunca vai saber, não enquanto o outro deixar você do lado de fora, sozinha como uma criança perdida no escuro.

2 comentários:

  1. que texto magnífico...o outro é sim um mistério,um complexo mistério,um tesouro,um abismo,um infinito!

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  2. Ando não sabendo, no fundo de mim e dos meus abismos, o que juro saber e não verbalizar. Ando com saudades de escrever uma grafia liberta de mim. Completamente liberta de mim.

    (Andei com saudades de "beber" das suas letras, por isso passei por aqui).

    Bjs,
    S.

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