domingo, 11 de janeiro de 2015

Se isso fosse um musical

Se isso fosse um musical, essa seria a parte em que eu me levantaria daqui, derrubando a cadeira, deixando virar o copo d’água sobre a mesa, atirando no chão os livros sobre a escrivaninha. Tudo em câmera lenta, com close em cada objeto. Não haveria raiva em mim. Talvez alívio.

Então eu sairia pela porta enquanto a música aumentasse, gradualmente. Depois eu cruzaria o portão, indo para o meio da rua. Atrás de mim algum carro pararia buzinando. Mas eu não olharia. Não, eu não olharia para trás nem uma vez.

Eu estaria cantando. Eu cantaria em voz grave, baixa no começo, ganhando confiança quando os primeiros pingos de chuva começassem. Sim, se isso fosse um musical começaria a chover conforme o céu fosse escurecendo e eu fosse caminhando, sem parar.

A chuva cairia sobre o meu rosto, molharia meus cabelos, grudaria ao corpo as minhas roupas. Eu tiraria meus óculos e derrubaria no chão. As luzes da cidade acenderiam. Eu já estaria no centro, então. A câmera mostraria meus passos, já descalços, enquanto o asfalto molhado refletiria os postes, tremulando a cada gota que caísse.

E eu continuaria cantando, se isso fosse um musical. Eu continuaria andando, se isso fosse um musical.

Aos poucos, as casas ficariam mais esparsas, os campos seriam iluminados pelos carros que passassem, pelos raios que viessem, enquanto eu continuaria, no centro do asfalto, saindo daqui. Deixando tudo, copo quebrado, livros, os fones balançando no escritório.

Eu sorriria, então. Sim, eu sinto que poderia sorrir se isso fosse um musical. Eu sorriria de braços abertos enquanto a chuva viesse e eu continuasse a andar, de olhos fechados agora, cabeça erguida, sentindo no rosto o vento e cada gota da chuva.

A janela do escritório apareceria, então, aberta. A chuva entrando por ali, empoçando no chão, nos livros, tudo iluminado só pela tela do computador, na qual aparecem essas letras, começando por “se isso fosse um musical”. Depois, os meus óculos apareceriam, quebrados, no asfalto, ainda sob a chuva.

O próximo take seria meu novamente, ainda andando, ainda sorrindo, ainda cantando, se isso fosse um musical. Cada vez mais longe. Cada vez mais só. Cada vez mais feliz. Até a música parar e eu continuar andando. 

Os primeiros raios do sol surgiriam no horizonte. Algum pássaro cantaria e voaria de uma árvore. Eu continuaria. E, se isso fosse um musical, outra música começaria logo depois. Mas não é. Isso não é musical, não é um clichê meu. Não é, especialmente, porque não há, não há, quem represente a próxima canção. E haveria. Se isso fosse um musical.




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