quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Salva-me dela!

Eu hoje pari Virgínia. Não, não pari. Abortei.

Sim, eu hoje abortei Virgínia. E, meu Deus, que aberração mais deformada. O artista dá a luz àquilo que cria. E foi com horror que eu vi brotar essa menina. Nenhum outro escrito fluiu com a mesma independência que ela. Nenhum me dominou tão inteiro. Nem quando falo de mim, consigo ser tão sufocado pelas letras.

Virgínia saiu de minha cabeça rasgando-a, como Atenas fez com Zeus. Ela me apavora. Começou como um conto simples, fácil, de história quase zombeteira. E de repente aquela intensidade. De repente aquela certeza de que eu mesmo não poderei ler o que escrevi. Não sem choque. Não sem náusea. Não sem pavor. Pavor do que nasceu de mim. Ou do que saiu de mim, como sai um verme expelido da nossa carne.

Antes de uma dúzia de folhas completas ela não me largou. E quando me largou, deixou arranhões no braço, dores na cabeça e uma ânsia de vomitar no mundo. Virgínia me apavora. Antes meus personagens também foram assim, abortados, eu disse. Mentira. Agora que me veio Virgínia, vejo que todos os outros eram anjos ternamente nascidos.

Virgínia me choca tanto porque é humana. Sua crueza nada tem de sobrenatural ou fantástico. Nada que pudesse me consolar. Nada que pudesse me dar indícios de ficção. A Virgínia que escrevo tem a crueldade de coisa humana, que cheira à carne.

Queria publicar ela inteira aqui. Não sem advertência. Já ensaiava dizer: Não leiam. O conto é longo e não vale o olho. Queria dizer que eu mesmo não o revisei por temê-lo. Assim eu tentaria fazer desistir aqueles dois ou três que, vendo o tamanho, ousariam começar. Eu queria expor ela para o mundo e assim ela não seria mais só minha. (Ou eu é que não seria mais dela? Eu queria jogar Virgínia nos outros como quem esconde, em um bolo de maçã, a mais funesta maldição? Queria eu passar a você o que senti, como forma de purgar o que fiz? Como forma de diminuir minha culpa por tê-la nascido?)

Não sei. Escrevo sobre ela agora, como jeito de também tomar distância, de me lembrar que ela é só oito letras, que eu a fiz com palavras, que eu a posso esquecer e que eu a posso matar com um punhal de letras.

Mas Virgínia não morreria sem luta feroz. Sem mordida. Sem me arrancar sangue do rosto. E ela gostaria disso. Ou eu é que gostaria? Virgínia me mortifica porque temo encontrar na menina qualquer coisa minha. E eu lhe dei minhas coisas, traços meus, quando ela ainda não era monstro. Quando ela ainda não havia pulado o muro e entrado no mato.

O que eu fiz de Virgínia? O que Virgínia fez de mim?

Na minha tela ela descansa. Ela espera. Ansiosa, eu sei. Os outros morrem, os outros se limitam ao papel, os outros eu controlo. Virgínia não. Ela é demônio que me possuiu e que eu não sei exorcizar. Ela me faz um mal que eu mesmo não posso explicar racionalmente. É novo. Isso é novo. Não é mais arte. É bruxaria, Virgínia!

Ela não me deixará. E eu não a deixarei. Ela precisa pagar. Mas é mais forte que eu. Posso vê-la. Na porta da casa que lhe fiz. Os olhos verdes que lhe dei. Os cabelos já sujos. As sapatilhas recém lavadas. A boca fina de sorriso mau, como que a dizer “Vem! Vem brincar!” só pra depois gargalhar. As sardas finas. O corpo escorado no umbral. A torneira do tanque ainda pingando. O pano sujo no chão ao seu lado. A cara de quem sabe que me domina...

Socorro. Sufocação.

Ela espera por mim. Espera por mais. Espera pra existir mais, pra completar sua história. Para ir até o fim. E ela nem me deixa colocá-la aqui. Não me dá essa liberdade. Não me permite a ousadia de me desfazer dela. Virgínia quer o fim. E Virgínia sempre tem o que quer.

3 comentários:

Obrigado pelo seu comentário.