sábado, 12 de novembro de 2011

O menino deus

Para me inspirar eu preciso respirar. Fotografia, música, arte. Eu preciso colocar de volta no peito tudo que eu já senti. E então bater, bater, bater. Para que alguma coisa de dentro possa jorrar. Às vezes sangue. Às vezes sêmen. Às vezes nada.

E o nada banal é que me destrói. Quando eu tento e não consigo espargir palavras no papel. Escrever me dá significado. Mas isso eu já cansei de dizer.

Escrevo sobre sentimentos. Eu os materializo, acho, na falta de matéria desse papel digital. Escrevo não o que estou sentindo. Mas o que já senti. Eu me uso. Uso os restos do que ficou. Componho com sobras banquete.

O que escrevo não pertence a ninguém mais que o próprio escrever. O que me fascina não é mais fazer íntimo diário. Para isso tenho as agendas velhas de fecho. Hoje o que almejo é toda criação que se dá pela palavra.

O código posto a serviço de um homem para torná-lo não menos que Deus. O que me encanta é o criar das letras. A dança que vou regendo em compassos submarinos. Preposições de pés no alto, adjetivos de malha colada, verbos verbando lépidos enquanto as crases permanecem graves, na platéia.

Escrevo para me consumir e guardar. E também para que alguém possa encontrar eco nos muros que pinto. Escrevo porque em algum momento fui também ecoado. Por Clarice, por Caio, por Virgínia, por Ana, por Renato, por Katherine, por Sílvia, por Agenor, por Fernanda e por Clarissa.

Escrevo porque sou meu personagem. Minha vida eu dou aos outros. Escrevo com outra letra o que eu sinto por dentro. Aqui, só coloco para secar as máscaras que pinto.

São sentires fabricados. A menos que eu me exponha todo. De resto é arte de partes. Não faço espelho de tolos. Nem de prata. Nem de ouro.

Faço canção de ser cantada em outra boca. Como pela menina do palco que falou minhas palavras. Deu ar ao que era meu sopro [de vida].

Não escrevo para que me tomem. E quem não quer me ler, que feche os olhos. Tantos fecham, meu Deus, e já não reclamo mais. Também isso aprendi. O texto chega aonde dele for preciso. Nunca além. Não almejo mais grandes oblações. Quero canto quieto. Porque toda palavra que viaja, se perde.

Não me cobrem, então, realidade, referência ou direitos de imagem se usei alguém. Escrever é não ter compromisso. Ser omisso com a ética e com qualquer decência cruel. Tudo em nome do seu próprio fazer. Tudo em nome de uma arte que em dois segundos pode se tornar de ninguém. Ou de Lispector. Ou de Jabor. Ou de uma menina paraibana que viu e gostou e achou que era dela.

Sim, é pelos outros que vamos. Traço por traço. Desde os cadernos da primeira série. Compondo e desfazendo e repetindo sem parar o abecedário. Tudo para um dia firmar a glória de ser espancado. Pela máquina de escrever. É para os outros que nos doamos, nos reviramos, nos destroçamos e cortamos tudo um pedaços bonitos de se verem.

É pelos outros que cometemos o crime de expor até a vida que é alheia e que nos foi tocada. Mas o texto, depois de saído, não é mais do outro. Como não é meu. Ele é de si. Como o homem deve ser do homem, depois de feito o pecado da maçã. Como o Deus deve ser do Deus, sem que isso seja questionado aqui.

O texto é tudo. E todo resto é vazio.
Fim

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