Feche as janelas, apague o dia dentro de casa. Deixe só a luz que consegue passar pelas janelas marrons. A luz vermelha, vinda em raios pelas frestas, iluminando a dança saxofônica da poeira.
Deite no chão. Esqueça de tudo mais. Pense só no assoalho tocando cada ponto teu, se abrindo para melhor conter teu corpo. Feito mãe. Deixe qualquer som te levar. Qualquer som em uma língua que você desconheça. Que não te convide a pensar. A concordar. A sentir, sentir com a razão.
Deixe o coração mergulhado na poeira debaixo dos móveis. Você não precisa mais dele. Não desde que eu me fui. Estenda as mãos. Ou não: passe-as pelo corpo, assim. No ritmo sentido da música. Dos gritos que gritam pela tua alma. Da música que tem tua voz, ainda que distante, ainda que incompleta e incompreendida. Deixe-se.
Abandone-se em mim.
Em mim que te pedi a paz de não existir. A paz de não te ver. A paz de não reconhecer teus olhos no fundo das bacias com água. Eu te pedi paz. Agora venho, sensual, sussurrar que esfregue teu corpo no chão. Que deite na minha voz rouca e se afogue de mim.
Eu sei. Contraditório. Eu sou. Se deixe levar, apenas, então. As roupas. Os copos quebrados. Você sobre os cacos, amor, porque tudo que voa alto e é bonito na queda. E colorido, meu bem.
Estou morto porque quis estar. Falecido e enterrado no cemitério que agora tem sol demais. Estou morto lá. E estou morto aqui, dentro de ti. Porque eu pedi assim. Eu quis assim. Eu implorei. Bem assim.
E agora que estou morto percebi a paz de deserto lunar. E não a quero. Amor. Então voltei, pra dentro de ti. Pra te dizer assim: mergulhe no chão. Afogue-se na poeira, nos objetos e dejetos e nos pêlos negros do gato branco.
Afogue-se porque agora eu não quero paz. Me enganei. Quero tuas orações antes de dormir. Tuas ladainhas ensaiadas, tuas rosas cortadas, tua boca decorada de batom. Quero tudo e nada toco. Morto. Eu queria descansar pra não te deixar descansar. Pra não ver outra boca comer a tua. Outros olhos lamberem os teus. Outra alma te engolir o corpo inteiro. Não!
E eu aqui? E a solidão minha? E a cruz sobre meu túmulo que só faz sombra no túmulo alheio? Não. Eu quero de volta. Você. Eu quero. Eu preciso para não te enlouquecer. E como faz para tudo voltar. Para meus cortes fecharem, meu sangue escorrer de volta pra dentro, a faca nunca ter entrado naquele jardim. Enquanto o sol se punha. Minha boca. Teu pescoço. Nunca mais?
Socorro. Meu amor. Salva-me do nada. Do vazio. Da minha velhice de violeta murcha. De trigo que apodreceu sem ser colhido. Por Deus, eu só quero ser teu pão. Eu que te neguei farelos. Como faço agora? De onde volto? Porque estou nos raios de luz que voam alto e pra longe. Estou congelado no ar dos salões. Onde ninguém pode me tocar como você um dia tocou.
Volto como? Não volto, amor? Diz que ainda me quer. Que ainda existo para você. Que não preciso da minha paz maldita. Diz que me espera no banco de tábuas claras. Diz que me quer mostrar a tatuagem que fez para mim. Diz que o sol ainda não se pôs naquele dia. Naquele jardim. Diz que vai me entregar as cartas do teu futuro. Diz que as pedras ainda esperam por nós. Que as folhas voltarão a cair num outono irreal. Diz amor. Diz que eu volto. Diz que eu estarei lá, esperando. Diz que voaremos juntos enquanto ouvirei tuas palavras bonitas. Diz que não foi em vão a tinta roxa das cartas não escritas. Diz que valerá quando estivermos juntos. Diz que estaremos. Por favor, antes que a música acabe de novo e eu volte para. "nunca mais" Lá.
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Escrito ao som de The Gift.
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Escrito ao som de The Gift.
É complicado dizer, quando as palavras podem fingir.
ResponderExcluirAodoro fazer o que fiz aqui. Simplesmente colocar um som em 'repeat' e me deixar escrever sobre ele. Criar a história.
ResponderExcluirDigo que adorei e digo que muuuuitas vezes faço isso e também sou mal interpretada, como se a "história, conto, crônica" fossem autobiográfica. Odeio isso.
ResponderExcluirMasssss.... o que podemos fazer?
No meu caso, calar jamais e lhe digo o mesmo. Não deixe nada te parar, nunca. Goste o mundo ou não.
Beijos e vou ali tomar um ar, porque esse conto está fabuloooosooooo.