quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O preço de se despir


Nada me exaure mais do que ser Vinícius Linné. Então foi assim: cansado completamente de ser eu, tal como ator que já sufoca e sua e sofre por baixo da máscara, despi-me de mim. 

O movimento é fácil, a causa é justa - o escape é falso, mas isso não se conta. Passei então três dias em beatificada paz. Como que exorcizado, eu pude viver tudo de fora,  pude esquecer completamente os vazios, as escuridões, as poesias veladas, os abismos, os comodismos, as marcas, as fotografias, os reflexos, os enredos, os mortos, tudo.

Por três santos dias - em um ano de 363 outros - eu pude me imunizar contra o mundo. Pude me afastar o suficiente para me tornar insensível - especialmente a mim. Nada me doeu, nada me comoveu, nada me sensibilizou, nada me eriçou, nada me desvairou. Fui - e falo com a vergonha digna - um homem comum.

Fui um homem vulgar, que vê porcarias na televisão, que olha o mundo sem perguntar, que dorme longas tardes, que passeia com cachorro nas ruas, que responde a coisas simples, que não questiona, que obedece e que faz e que come e que só sonha dormindo.

Por estes três dias do que mais descansei foi das palavras. As palavras me consomem demais. Elas imperam em mim e me desgraçam, como se a desgraça fosse - e é! - minha única forma de conceber uma salvação.

Por três dias consegui - à custa da mediocridade - manter as palavras longe de mim. Nada li. Nada escrevi. Por Três Dias Inteiros.

Nirvana.

Passados os três dias eu precisava - como precisa todo viciado - me redimir com meus pecados. Precisava chamar todos eles de novo. Precisava fechar as janelas, escurecer o dia e invocar os demônios de volta. Eu precisava, enfim, vestir novamente o Vinícius Linné.

Uma parte importante dessa volta é, sem dúvida, a conexão. Estar conectado a outras pessoas. Uma infinidade delas, meus caríssimos demônios externos. 

No computador travo essa conexão. Junto com ela, porém, vem a dispersão. Por isso, no notebook não tenho internet. Isso me possibilita um trabalho mais concentrado, mais profundo, só espargido - levemente - por algumas gotas de paciência - quando tudo é difícil demais.

Eis que depois de me despir, ao querer me vestir novamente não encontrei essa peça da roupa.

O computador não ligou.

Então ele é tão meu a ponto de ser como eu? A ponto de não me querer mais porque eu - por bons três dias - não o quis?

Exatamente. O computador já não me quer. Tentou morrer para mim e levar consigo tudo que de meu eu tinha. Sim, porque não são minhas as roupas, os móveis, a casa, ele mesmo. Não me interessam profundamente as coisas. São meus - e muito meus - só os textos, as imagens, as pastas, as fotografias e tudo mais que eu mesmo fiz. E que agora está trancado nele.

Não sei. Não sei se há esperança de abrir novamente a caixa de Pandora, de reaver minhas posses pelo computador sequestradas. Meus anos de textos - dois romances prontos, inclusive; minhas fotos de contar histórias, meus artigos todos, minhas aulas, minhas músicas, meus vídeos, enfim, meus ouros e meus pequenos berloques por enquanto não existem.

Enquanto ele não voltar do conserto, eu não saberei se ainda tenho algo do que tinha. E por todo tempo em que ele não voltar, eu não terei como ser completamente Vinícius Linné. Talvez seja uma punição por eu não querer ser eu. E se for uma punição, ela acaba; o computador volta e tudo retorna ao mínimo status de normalidade. Se não for uma punição, se for castigo, se minhas coisas forem mesmo sumariamente trancadas em uma máquina, só me resta continuar incompleto.

Só me resta seguir sem um pedaço de tudo que eu fui - e este é sempre um risco ao se desfazer de si, mesmo que por um tempo. Até ter o computador de volta, sigo sendo este resto de eu. Não um Vinícius Linné. Minha pessoalidade sumiu. Por enquanto sou só um Linné. Científico, acadêmico, anti-niilista. 

Mas nem tudo são dores. Enquanto minha parte Vinícius adormece e fica incomunicável - intransponível - minha parte Linné dá jeito de adiantar sua dissertação toda. Livre de distrações e dos compromissos que o Vinícius arruma com as suas artes, é possível que o compenetrado Linné desembarace os fios de Clarice.

Assim sigo. Vazio de alguns demônios, inseguro quanto aos monstros trancados, compenetrado do modo como deveria ser. Linné até onde posso ver no espelho. E agora Linné? Agora é esperar. Esperar para ver se arrumo de volta minha parte Vinícius ou se precisarei tecer uma toda nova a partir de agora.

- - -
Update: a caixa de Pandora voltou. Aberta, nada se perdeu.
Então, Vinícius Linné de novo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.