terça-feira, 4 de setembro de 2012

A menina que podia [e a que não podia] voar



A menina... a menina... é o dia da menina voar.

Eu a procuro bem cedinho, dou banho, lavo os cabelos com cheiro de amora, coloco neles a faixa amarela. Escovo até brilharem feito sol. E é de sol também o sorriso dela. Depois, coloco nela o vestido novo, todo limpo e lindo. Arrumo o volume da saia, deixo que ela use os chinelinhos tão queridos... Seguro sua ansiedade comigo e faço-a prometer que não vai sair voando antes do tempo. Ela promete, sorrindo toda.

Também recomendo o que recomendaria qualquer mãe zelosa: “Sem se sujar, heim, meu amor?”. Ela diz “aham”, como eu mesmo dizia à minha mãe.

Depois eu me distraio. Cuido das coisas de um adulto cuidar. Providencio tudo para que ela voe, corro, me distorço me faço e desfaço. Passo por cima de tudo que é constrangimento em mim. Para que ela esteja linda. Para que ela voe.

Quando a chamo de volta, ela não vem.

Chamo de novo, pelo nome que só eu sei...

E nada.

Então vou procurá-la. E no quintal, escondida debaixo dos pés de azaleia está ela. Cabelos em desgrenho e nós. Rosto sujo de terra - e sangue até. Arranhões nos braços, lama no branco do vestido. Só um chinelo no pé. Do outro já não se sabe.

Quando me vê ela se encolhe, como se eu lhe fosse aplicar qualquer bofetada. Não. Ajoelho-me junto a ela, cheio de choro nos olhos. Ela ergue o próprio rosto, olhos úmidos também, vertentes d’água. Pede perdão e me abraça forte, sujando de barro meu próprio casaco.

E eu não entendo! Ela não é assim. Não é de artes tamanhas. Não a minha menina. Justo no dia de voar.... Não falo nada. Ela também não. Só ficamos abraçados, o sangue do seu rostinho deixando frinchas vermelhas na minha camisa.

Pego seu rosto entre as mãos, olho no fundo dos olhos, vejo dois lagos castanhos e neles uma tristeza imensa. Beijo um, depois o outro. E então ela desata, entre soluços, a falar:

“Foi ela. A menina aquela. Passou e me viu. Perguntou se era hoje meu voo. E eu disse que sim. Daí ela não perguntou mais nada. Só disse que era para eu aprender de uma vez. Que eu não aprendia mesmo... E que se ela não voava, eu não voaria também. Então vieram as pedras e os arranhões e as bolotas de barro. E ela me deixou toda assim. Desculpa eu?”

- - -

Naquela noite, apesar de tudo, tudo, tudo. Apesar dos impedimentos todos. Apesar do descaso. Apesar da sujeira. Apesar dos arranhões. Apesar da lama no vestido. Apesar do chinelo perdido. Apesar da maldade da outra. Apesar do medo, especialmente apesar do medo, que a minha menina tinha do dragão da lua, ela voou. Lindamente ela voou. E eu, ainda com seu sangue e sua lama na minha própria roupa, aplaudi forte.

Os que olharam, fascinados pela beleza dela, não repararam no estado de suas roupas, na sujeira de sua pele, nos nós do seu cabelo. Era uma menina. E voava!

E a ninguém também importou a garotinha má e indelicada. Atirando pedras para cima. Essa nunca voaria. Porque é preciso de alma para voar.

4 comentários:

  1. São precisas palavras como essas.


    Parabéns pelo projeto!

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  2. Asas e alma,essenciais nos anjos talvez isso explique o criador de uma menina que podia voar?
    Um grande abraço e que voes cada vez mais alto.
    (E não se esqueça do meu exemplar =))

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  3. À distância acompanho o seu "caminhar nas letras"! Parabéns pelo lançamento, pela suas iniciativas, pelo seu blog...
    Tenho saudades daquele aluninho fisicamente "quieto" mas altamente produtivo na sua intelectualidade.Pessoa inteligente, polída, educada e muito criativa. Tenho orgulho de tê-lo como colega. Continue sendo você mesmo!
    Parabéns professora MAri

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  4. Voar causa inveja aos que sem imaginação nunca possuirão asas. Bons voos...

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