quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Abandonar o barco


Foi assim: tiveram a ideia de construir um grande barco. Um barco como aqueles descritos nos livros, o barco ideal, o conceito platônico de todos os barcos, uma obra que contivesse em si todos os princípios e signos definitivos de um barco. O melhor barco, enfim, que o mundo já vira. Nenhuma delas, porém, entendia de barcos.

Chamaram engenheiros navais. Descreveram a eles como seria o barco. Eles compreenderam lá da sua maneira e viram na construção qualquer chance de ascensão (social ou econômica). Traçaram o projeto do barco, bem aquém do que descreviam os livros, era bem verdade, mas o dinheiro viria do mesmo modo, de forma que foram deixando por isso mesmo.

Foram a elas, mas elas estavam tão perdidas nos sonhos do barco ideal que já flutuavam num mar de imaginação ignóbil, ignorando totalmente as falhas dos engenheiros. Barco, barco, barco. Que fizessem o barco. Sim, estava perfeito o barco. Barco, barco, barco...

Os engenheiros chamaram construtores. Construtores que não entrariam no barco e que, portanto, fizeram tudo ainda pior do que aquilo que estava no projeto já mal feito. O material foi de segunda, o salário foi baixo, a humilhação foi constante, de modo que, propositalmente, os construtores fizeram um barco para afundar.

Terminada a construção, os engenheiros fizeram vista grossa. Nenhum se atreveu a descer até o porão. Não, eles não eram homens de andarem em porão. Se os construtores disseram que estava bom assim, então devia estar.

Os engenheiros avisaram a elas que o barco estava pronto. Receberam os ouros e os louros enquanto elas babavam pelos cantos, de olhos vidrados, cabelos insanos sem parar de repetir um minuto sequer... Barco, barco, barco,  barco, barco, barco, barco, barco...

Nas ruas pegaram a mais densa ralé até encher o convés. Eles é que deveriam servir, trabalhar, lavar, passar, coser, arrumar, cozinhar, fritar, ferver e fazer, logicamente, o barco navegar. Não interessava como. Trabalhariam em troca de pão. E só apanhariam um dia sim e outro não. Elas eram mesmo muito generosas. Barco, barco, barco.

No dia da partida, estouraram uma garrafa de champanhe sobre o casco. Elas também bebiam champanhe. E muito. Comemoravam a glória de todos os barcos. O mais perfeito e lindo e bem construído barco que o mundo jamais sonhou em ver. E era delas. E era graças a elas. Barco, barco, barco. Hahahahaahahahaha.

No segundo dia em alto mar, elas ainda bebiam e riam e gritavam “barco”, como lhes era típico. Foi então que um moço, ralé de toda ralé, subiu em plena proa. Uma ousadia. Um desrespeito. Uma falta total de educação. Que queria ele entre elas, na parte mais importante e magnífica do barco, barco, barco?

Queria avisar dos erros no barco. Ele vira a construção do porão e podia quase garantir que não era sólida. Que não aguentaria muito tempo, que se partiria à primeira provação. Precisavam fazer alguma coisa. Do contrário, afundariam todos.

Hahahahahahahaha. Barco, barco, barco. Então ele por acaso era uma delas? NÃO! Ele era um dos engenheiros? NÃO! Ele era um dos construtores? NÃO! Ele era ralé e ralé não sabe nada. Barco pra ele. Que voltasse para o porão, onde era seu lugar, e deixasse de lado esses sentimentozinhos de inveja. Ah, como era feio criticar porque ele não sabia fazer melhor. Ah, que ridículo ele dizer isso porque queria o lugar delas... Ah, então elas não entendiam de barco? Ora, como sim. Barco, barco, barco pra ele. Imbecil burro.

Continuaram no champanhe e nos gritos e nas danças.

Quando a água começou a invadir o porão aos gorgolejos, ele tentou mais uma vez avisá-las. “O barco vai afundar! Precisamos fazer alguma coisa! E já!” Blá, blá, blá, disseram elas. Barco, barco, barco. O barco é ideal, é perfeito, está funcionando perfeitamente. Então se houvesse problemas ele pensava que elas não saberiam? Elas saberiam. Era o barco delas. E não havia nada de errado com ele. Será que ele não podia pegar o que ele pensava e enviar no casco? Bem fundo no casco? Elas sabiam. Os engenheiros sabiam. O barco era perfeito. Barco, barco, barco. E mais champanhe.

Ele foi ameaçado. Que parasse de dizer besteiras. O barco era lindo e era delas e não afundaria jamais. Mudaram as regras. O suprimento de pão lhe foi cortado. A surra passou a ser diária. Que aprendesse a não falar o que não sabia. O que ele, ralé, entendia de barcos? Nada. Se mais uma vez ele viesse com suas ideais revolucionárias e irreais, ele aprenderia sua lição. Seria jogado ao mar, como isca para os tubarões que vivam fora do barco, barco, barco.

Ao fim do dia, dois terços do porão já estavam submersos. Ele pensou uma última vez em avisá-las. Em dizer-lhes qual era a situação no fundo do barco, ele que estava ali, que via a água entrando, que via os primeiros ratos se afogarem. Isso era tudo que ele podia fazer, avisá-las. Que salvassem todos. Por favor, que não os deixassem morrer... 

Mas pensou melhor então. Elas não queriam ser salvas. O barco ideal existia, em suas mentes. O barco real não interessava a ninguém mais.

Percebeu que não importava o que dissesse, ou quantas vezes o fizesse, elas afundariam o barco do mesmo jeito.

Ele tentara. Era isso o importante. Não esperaria nem mais um momento. Foi à popa, vestiu o seu colete salva-vidas e atirou-se ao mar desconhecido. O barco afundaria de qualquer modo. Que fizessem o que lhes interessava, então. 

Enquanto esteve à deriva, ouvia ainda claramente o espocar dos champanhes e a cantiga sorridente que não cessava, mesmo quando a água salgada já lhes entrava pela boca. Barco, barco, barco, barco, como é perfeito nosso barco, dizia a última delas, enquanto morria.

Um comentário:

  1. É como as pessoas que amam menos, por achar que é melhor que podem arranjar. Cegos ao que será seu fim.

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