sexta-feira, 16 de maio de 2008

Querido

Elza respirou muito fundo desta vez. Tinha dias em que se distraía e essas distrações eram perigosas. Distraída, esquecia seus pensamentos de fêmea submissa e tinha ganas de atirar verdades à cara do marido. Será que ele não notava quem precisava de quem? O tempo não foi generoso com ele, nem um pouco. Enquanto a barriga ia crescendo os cabelos diminuíam, grandezas inversamente proporcionais. Era gordo, flácido, preguiçoso, sentado ao seu lado. Já nela, o caminhar dos anos fez com que desabrochasse a flor de uma beleza madura. Um rosto de traços fortes e expressões serenas. Possuía todo encanto e charme de um riso senhoril. Inspirava sua figura simpatia, admiração e charme, uma elegância que só a idade confere. Enquanto a aliança dele só poderia ser tirada mediante a serra do ourives, a sua sairia facilmente do dedo.
Elza meche, distraidamente, na aliança. Pensa em tirá-la. Depois é dizer todas as verdades. Quem, afinal de contas, você pensa que é? Deveria dar graças a Deus todos os dias por eu estar do seu lado. O espelho nunca lhe disse isso? Pois deveria. Onde está o homem lindo com quem me casei? Para mim chega! Olha só para mim, você acha que não recebo cantadas por aí? Acha que aquele rapaz lá do escritório já não me convidou até para ir conhecer seu apartamento?
Pára de pensar no que dizer. Imagina-se no apartamento, assistem um filme, ambos sentados no tapete. Comem pipoca e bebem um bom vinho. Riem juntos, tão próximos os dois... Olha para o marido. Pensa em uma música, um trecho dela: “Há tantas violetas velhas, sem um colibri”.
Para o fantástico final, depois do discurso, atira-lhe a aliança na cara e vai embora. Não. Tudo isso parece tão impróprio à sua natureza godiva.

Irá tirar a aliança, deixá-la sobre o toucador com um bilhete salmão: “Caríssimo, Cansei”. Isso seria mais poético e trágico. Nas condições atuais ele dificilmente conseguiria outra mulher, já ela... Lembra do rapaz do escritório.
Ela não precisa se submeter aos burros do marido, não precisa pedir desculpa cada vez que brigam, principalmente se ele estiver completamente errado. Ah, ele tinha que tratá-la cheio de dedos, pois precisava dela. Caso a perdesse veria que não existe vida além dela.
Elza respira fundo, novamente, livrando-se da distração e guilhotina o silêncio:
- Querido?
- Quê?
- Desculpe por ter sido um tanto estúpida ontem.
Ela nem sabia direito o que havia feito.

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