"Eu era uma rainha delicada. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante."
A mim também, querida, entenda, a felicidade foi sempre clandestina. Quando ela vinha, contiguamente fugida, arrombava a porta e entrava ligeira. Quando eu era feliz, meu Deus, era um susto. Depois de ela entrar, primeiro trancava a porta com móveis, cerrava as cortinas e ouvia se não vinha o barulho. A felicidade acalmada, por estar quase segura, só então se atirava aos meus braços com faina de mãe apartada ou amante longínqua. Ela tinha nos olhos sempre umas coisas que não ousava dizer, que eu só adivinhava, passando os dedos nas olheiras e secando lágrimas silentes. “Esta vez pode ser a última”, ela não-dizia.
De minha parte, sempre tão seco, eu a recebia com sofreguidão. Eu a recebia como se fosse uma criança daquelas da televisão: africana, pobre, preta, seca de tudo. Como um menino da África que, de repente, encontrasse no faminto deserto uma manga madura. Eu me atravaca todo em dentes e gula àquelas gotinhas de felicidade. Nem me importava o sabor ou o motivo. O que eu queria era lambuzar-me inteiro de ser feliz. Perdia poses e composturas, sozinho com uma felicidade só minha e fugitiva, eu deixava lambuzar as mãos, melar a boca, enfiava o caroço inteiro na boca.
Assim eram nossos encontros, ávidos e intensos, tanto quanto rápidos. Logo Ele vinha. Arrobava novamente a porta, invadia com sua presença o quartinho de aluguel e levava-a embora, pelos cabelos, sempre pra longe. Deus é o marido da felicidade, um marido ciumento demais.
Eis que desta vez ela avisara que vinha sob a forma de livros. Uns livros que uma boa amiga pegaria emprestados em uma biblioteca de outra cidade. Era boa e era amiga, só por isso não posso dizer que fui submetido a igual tortura chinesa. Era, bem o sabia, levemente distraída. Levemente, porque sua distração não chegava a gerar perigo. Era leve, mariposa avoada que quando vê luz nada pensa de mais.
Fato é que a cada noite ela esquecia dos livros. Passasse eu no dia seguinte, que talvez ela os teria.
Não foi maldade, nem crueldade. Ela só não sabia. Ela não sabia e eu por medo de ser fraco, infantil, descuidado e bobo, não avisei. Se eu houvesse avisado que destes três livros me dependia uma felicidade clandestina. Ah, ela os teria lembrado. Ou não, mariposa que era.
Mas um dia veio o sábado. Era manhã e nem bem cedinho era, eu já estava lá, esperando de sorriso armado. Ela puxou os livros com uma displicência de quem carrega brilhantes por cacos de vidro. Eu os avistei de longe e um leve disparinho se acusou no meu coração sonolento. Eram três, os mais coloridos e mais grossos que eu ousara imaginar. Ela passou para minhas mãos, que tremelicas farejaram as folhas. Olhei capas, contracapas, fotos, orelhas, letras, títulos, índices. Eu os comeria inteiros, ainda ali.
A mariposa lépida ainda acrescentou: Podes ficar pelo tempo que quiseres. O tempo que eu quiser? Ela renovaria quando necessário. Eram meus pelo tempo que eu quisesse? Metafórico, eu sei, mas por mim seriam meus pela eternidade, até depois da morte, todos os livros cobrindo meu caixão. Não seriam pelo tempo que eu quisesse, mas agora isso não importava.
Guardei. Guardei na minha pasta de professor, com cuidado extremo. Guardei para disfarçar a afobação sentida. Agradeci sorridente demais, e me fui. Fui aos saltinhos, pelo menos em minha mente. Mal sai dali, abri a pasta e os tirei ao sol. Mostrei à rua: Os livros de Clarice, Dona Rua. Os livros que eu queria meus.
Os braços eram longos demais para abraçá-los todos. Sobravam mãos. Eu já era um homem, e um homem grande que podia carregá-los todos na mesma mão. Mas não queria. Eu queria sentir o teu calor ao peito. Peguei com as duas mãos e os coloquei em frente ao peito, aqueciam-no, como no conto.
Cheguei em casa e os levei à cama. Por qual começar? Como decidir qual felicidade é mais importante? Qual é mais imediata? Deus, como rejeitar a uma em detrimento das outras?
Naquele dia acho que não comi, e se comi foi sem fome, como que para cumprir o ritual do meio-dia. Se dormi foi sem sono, pra respeitar à meia noite.
Era sábado e que graça tinha aquele dia abençoado. Era sábado e o sábado era meu. Só meu. Foi então que, pela primeira vez, o dia todo, trancado no quarto, revirado na cama, entreguei-me a ela sem pressa.
A mim também, querida, entenda, a felicidade foi sempre clandestina. Quando ela vinha, contiguamente fugida, arrombava a porta e entrava ligeira. Quando eu era feliz, meu Deus, era um susto. Depois de ela entrar, primeiro trancava a porta com móveis, cerrava as cortinas e ouvia se não vinha o barulho. A felicidade acalmada, por estar quase segura, só então se atirava aos meus braços com faina de mãe apartada ou amante longínqua. Ela tinha nos olhos sempre umas coisas que não ousava dizer, que eu só adivinhava, passando os dedos nas olheiras e secando lágrimas silentes. “Esta vez pode ser a última”, ela não-dizia.
De minha parte, sempre tão seco, eu a recebia com sofreguidão. Eu a recebia como se fosse uma criança daquelas da televisão: africana, pobre, preta, seca de tudo. Como um menino da África que, de repente, encontrasse no faminto deserto uma manga madura. Eu me atravaca todo em dentes e gula àquelas gotinhas de felicidade. Nem me importava o sabor ou o motivo. O que eu queria era lambuzar-me inteiro de ser feliz. Perdia poses e composturas, sozinho com uma felicidade só minha e fugitiva, eu deixava lambuzar as mãos, melar a boca, enfiava o caroço inteiro na boca.
Assim eram nossos encontros, ávidos e intensos, tanto quanto rápidos. Logo Ele vinha. Arrobava novamente a porta, invadia com sua presença o quartinho de aluguel e levava-a embora, pelos cabelos, sempre pra longe. Deus é o marido da felicidade, um marido ciumento demais.
Eis que desta vez ela avisara que vinha sob a forma de livros. Uns livros que uma boa amiga pegaria emprestados em uma biblioteca de outra cidade. Era boa e era amiga, só por isso não posso dizer que fui submetido a igual tortura chinesa. Era, bem o sabia, levemente distraída. Levemente, porque sua distração não chegava a gerar perigo. Era leve, mariposa avoada que quando vê luz nada pensa de mais.
Fato é que a cada noite ela esquecia dos livros. Passasse eu no dia seguinte, que talvez ela os teria.
Não foi maldade, nem crueldade. Ela só não sabia. Ela não sabia e eu por medo de ser fraco, infantil, descuidado e bobo, não avisei. Se eu houvesse avisado que destes três livros me dependia uma felicidade clandestina. Ah, ela os teria lembrado. Ou não, mariposa que era.
Mas um dia veio o sábado. Era manhã e nem bem cedinho era, eu já estava lá, esperando de sorriso armado. Ela puxou os livros com uma displicência de quem carrega brilhantes por cacos de vidro. Eu os avistei de longe e um leve disparinho se acusou no meu coração sonolento. Eram três, os mais coloridos e mais grossos que eu ousara imaginar. Ela passou para minhas mãos, que tremelicas farejaram as folhas. Olhei capas, contracapas, fotos, orelhas, letras, títulos, índices. Eu os comeria inteiros, ainda ali.
A mariposa lépida ainda acrescentou: Podes ficar pelo tempo que quiseres. O tempo que eu quiser? Ela renovaria quando necessário. Eram meus pelo tempo que eu quisesse? Metafórico, eu sei, mas por mim seriam meus pela eternidade, até depois da morte, todos os livros cobrindo meu caixão. Não seriam pelo tempo que eu quisesse, mas agora isso não importava.
Guardei. Guardei na minha pasta de professor, com cuidado extremo. Guardei para disfarçar a afobação sentida. Agradeci sorridente demais, e me fui. Fui aos saltinhos, pelo menos em minha mente. Mal sai dali, abri a pasta e os tirei ao sol. Mostrei à rua: Os livros de Clarice, Dona Rua. Os livros que eu queria meus.
Os braços eram longos demais para abraçá-los todos. Sobravam mãos. Eu já era um homem, e um homem grande que podia carregá-los todos na mesma mão. Mas não queria. Eu queria sentir o teu calor ao peito. Peguei com as duas mãos e os coloquei em frente ao peito, aqueciam-no, como no conto.
Cheguei em casa e os levei à cama. Por qual começar? Como decidir qual felicidade é mais importante? Qual é mais imediata? Deus, como rejeitar a uma em detrimento das outras?
Naquele dia acho que não comi, e se comi foi sem fome, como que para cumprir o ritual do meio-dia. Se dormi foi sem sono, pra respeitar à meia noite.
Era sábado e que graça tinha aquele dia abençoado. Era sábado e o sábado era meu. Só meu. Foi então que, pela primeira vez, o dia todo, trancado no quarto, revirado na cama, entreguei-me a ela sem pressa.
Realmente, a mariposa, de avoada que é, não lembrou da existência dessa felicidade oculta, secreta...
ResponderExcluirDeve ser porque há tempos ela não há tem. Sempre voando contra o tempo... sempre distraida com a luz que a hipnotiza, ela acaba esquecendo das pequenas coisas.
Pequenas coisas tão importantes como respirar, como viver.
Amei teu texto. Como sempre.
Sou tua fã, de verdade... e sem avoação!
Beijos
Perdi-me nesse tempo, templo.
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