terça-feira, 5 de maio de 2009

Procura-se o sentido

“Toda trêmula continuei a viver”

De repente ela parou atônita: mas então estava no meio da tarde? Estava. E para completar, a tarde era cinza.

Meu Deus, que pavor extremo e susto tão repentino foi o de existir. Ela existia, já há dias, talvez anos, mas não se dava conta. Era como ter dinheiro no banco, milhares guardados, mas não saber direito, nem fonte ou destino.

Ela quase deixou cair as sacolas quando viu que o dia estava nublado. Há quanto tempo as nuvens estariam deixando o céu encoberto? Desde manhã? A semana toda? O mês completo? Como uma pessoa anda o dia inteiro na rua e sequer percebe a falta do sol. Mas então ela vive? Vive como, se nem vê?

Ela não é cega. Tampouco vê. Ela passa pela vida, como quem passa por uma coisa muito bonita, mas não repara, por estar sempre atrasado.

Ela não percebe nem dias de nuvens, nem dias de sol. Não há diferença. A única coisa que foge à rotina é chuva, que a faz reclamar e sacar da sombrinha dobrável.

Mas hoje, já que parou, olhou para as árvores: quase sem folhas. Então poderia muito bem ser outono, ela pensou. Se fosse outono, haveria, nas bergamoteiras do seu quintal, frutas explodindo de sumo maduro. E ela não as comeu mais, nem uma vez, desde a infância. Ela nem sequer se dava conta de que elas pudessem existir, surgindo amarelas, oferecendo-se ao toque da mão. Será que era outono? Então nem nas estações reparava mais? Nem para comer frutas no outono, beber vinho no inverno, olhar as flores na primavera...

Ela passava incólume por tudo, meu Deus? E o peso da idade se adivinhando inútil nos cantos dos olhos, no sorriso ausente da boca, nas pregas da testa. Quando é que se começa a viver? Quando as aventuras dos livros, os desejos realizados, as esperanças saciadas? Quando?

Ela era velha, doía tudo agora. Foi num repente que todos os músculos acordaram sacudidos para ouvir os ruídos das vozes, o buzinar dos carros, o cantar dos pássaros. Eles acordaram rabugentos e reclamões. Então, para que servimos?

Ela quase chorou. Não era dada a grandes demonstrações, ainda mais assim, em meio a uma rua. A mesma rua de todos os dias, de repente, sorrateira, mostrou-lhe suas casas novas, os jardins, as árvores à beira das calçadas, os desenhos riscados no muro, os palavrões que ela, sedenta, desejava para si.

Sua vida, Sua chance, Seu dia, tudo escoou ressecado. Então ela, logo ela, que reciclava o próprio lixo, desperdiçou tudo? E para quê? Em nome de quê? Filhos não tinha, alegria nenhuma, sonhos ausentes, metas amorfas.

Sussurrou estupefata, talvez com o tom, talvez com a voz, talvez com as palavras: “Você é uma Imprestável”. Encheu-se então de uma autocomiseração até então inédita, apegou-se a ela, cercando-se toda. Era tão miserável, tão mesquinha, tão imensamente pobre e putrefata...

Só voltou a andar, porque era preciso. Já não sabia direito para onde ia indo antes. Também nem importava.

Quase sorriu, porque tivera uma idéia. Pela primeira vez iria assumir a própria vida, confiar nos próprios atos, tornar-se dona do seu destino. Primeiro pensou nas bergamotas inchadas, desejando servir de alimento, comeria todas, quando chegasse em casa. Logo depois pensou na corda grossa do varal, nos galhos firmes da árvore antiga...

 Sim, na certa aguentariam seu peso.

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