quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ódio

Tenho sentimentos de medidas exatas. Amores que arrebatam ou não até onde eu os deixar. Amizades milimetradas, pesares de certo número, felicidades calculadas com precisão absoluta. Só o ódio me escapa. Só o ódio é desmedido em mim. Ele toma força, proporção, desengana réguas, trenas, metros, enlouquece os marcadores de altitude. 

Meu ódio não tem fim ou medida. Não tem começo ou limite. Meu ódio se expande com a mesma constância do universo e agarra até à grama do caminho. Meu ódio é o mais generoso em mim. Ele compreende até o amor e quem ama aquele que eu odeie.

Meu ódio é minha ousadia, é meu olhar mais duro, é meu caminhar objetivo e tresloucado. Meu ódio é o fim em si. É a justificativa de qualquer ato. Qualquer. Meu ódio é minha propulsão para as vinganças que lhe tenham o mesmo porte: desmedidas. No mínimo.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Reinventando

[...] a vida, senhores, é uma invenção 
da palavra  e não o contrário.
Nilza Rezende


Às vezes é preciso trocar de palavras. De adjetivos sobretudo. Eu, por exemplo, gostava muito do adjetivo "delicado". O gesto pequeno e manso, de dimensão estreita e sensibilidade aguda. Se eu precisasse concretizar a palavra "delicado", eu o faria na forma de um remoinho que, em pleno outono, gira folhas e agrada crianças.


"Delicado" foi um mote meu por muito tempo, só que não me cabe mais. Não. O corpo cresceu, tomou forma, ultrapassou os limites todos e ameaçou partir meu adjetivo em dois. Eu ainda tentei. Tentei usá-lo sem que me coubesse, tentei esgaçar as mangas, desfazer a barra, abrir as costuras e colocar remendos. Não deu.

Não é que eu tenha aberto mão da delicadeza. Não, ela ainda me pertence. Mas sinto que preciso vestir outra palavra. Uma que se acomode ao meu novo mundo e à minha nova vida. Não tenho mais suporte para redemoinhos. Preciso de tornados, furacões, ventos fortes que assustam tanto quanto encantam.  Preciso já de exuberância!

Silêncio.

"Exuberante"

Testo na língua, na boca, no corpo. E cabe.

Percebo, então, que tentar me encaixar ao “delicado” era como vestir um troll de soldadinho. “Exuberante”. Um adjetivo novo que me compreende enfim. Que faz sentido e que eu posso representar sem medo. 

“Exuberante”, uma palavra para eu despir das aspas e ser, para eu costurar no corpo e me dar, com ela, a medida exata. Uma palavra para transformar em mantra, para justificar a desculpar, para preencher e definir.

Sim, um adjetivo novo, exuberante. Porque somos, afinal, as palavras que escolhemos ser.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Qual o meu papel como professor?

Há professores cujo papel é celofane. Visto de longe, o celofane é lindo, enfeita, dá cor, brilha. Quando manuseado, ele faz barulho, canta vantagem, chama a atenção sobre si e sobre suas qualidades. De perto, porém, percebe-se que seu conteúdo é pouco e sua transparência muita. O celofane é fino, corta-se facilmente, perde a cor com qualquer umidade e, de mais a mais, incorre em uma falsidade: faz de conta que é plástico enquanto, na verdade, tem a mesma celulose dos outros.

Há professores cujo papel é jornal. Algum dia, eles receberam, em letras de imprensa, o que havia de mais novo sobre sua área de conhecimento. E isso lhes bastou. Esqueceram, porém, que o mundo se renova e que, portanto, atualizar-se é preciso. Depois de impresso, o jornal precisa se reinventar para sobreviver, ser dobradura, papel que embrulha porcelana ou mesmo que forra a gaiola de passarinho, o que não se pode é parar. Caso contrário, não haverá utilidade para as notícias de ontem.

Há professores também cujo papel é pardo. São do tipo mais usado na escola, simples, sem brilhos, sempre com os mesmos tons, sempre com as mesmas funções, sempre nos cartazes mais simplórios, rodeados por alunos que não cansam de perguntar: “Mas não há cartolina na secretaria?”

Há professores cujo papel é timbrado e reservado exclusivamente para documentos oficiais. Tudo que neles se escreve vira lei, imediatamente, sem pontos de discordância ou rasuras, sem revisões, correções ou remendos. São eles os detentores da verdade absoluta, com assinatura embaixo, carimbo vermelho e “faça-se cumprir”. 

Há professores, ainda, cujo papel é higiênico. São macios, sedosos, sempre à disposição de uma carícia na pele ao enxugar uma lágrima aqui e outra acolá. Tudo eles absorvem e relevam e compreendem e confortam. São servis com quem chegar. Esquecem, porém, para que foram inventados.

Papéis, papéis, papéis. O sulfite tem múltiplas utilidades. O carbono se restringe a copiar tudo que lhe mostram. O papelão pode ser inflexível. O de presente é sempre decorado. O reciclado é feito de muitos outros. Papéis, papéis, papéis. Mas afinal, em qual eu me encaixo? De que papel é feito o professor que eu sou?

Olhando para os lados percebo a resposta. Há rascunhos desse texto sobre minha escrivaninha. Sou do tipo de professor cujo papel é esse mesmo, o de rascunho. O rascunho já teve seu momento, já recebeu as letras que precisava receber, porém não se restringiu a isso. O rascunho está pronto a novas escritas, a novos e múltiplos desenhos e até aos rabiscos feitos enquanto se telefona. O rascunho sabe que não está pronto e aceita com ânimo o que lhe imprimem, preservando para a próxima versão o melhor. O rascunho permite rasuras e refacções. Até mesmo as incentiva. O rascunho não é definitivo, nem pretende ser, aprimora com humildade tudo que nele é posto. Papel de rascunho. É esse o meu papel como professor. Espero que o seu também.

domingo, 11 de agosto de 2013

Pai não é quem cria. É quem faz.


Hoje é dia dos pais e vou precisar discordar de uma máxima bastante popular. Para mim, pai não é quem cria. É quem faz. 

Tenho observado nos contextos pelos quais transito, que “criar” uma criança é relativamente fácil. Envolve algum grau de alimentação e outras necessidades básicas. Não implica em mais do que isso. As crianças se “criam” praticamente por si. Pai, pai de verdade, é quem faz.

Quem faz companhia para o filho quando ele está doente. Quem segura na mão, quem ensina a andar de bicicleta, quem fica a noite acordado, esperando o filho voltar.

Quem faz o impossível pela felicidade de seus filhos. Quem faz serão, hora extra, trabalho pesado, para ajudar que o filho se forme, que “seja alguém”, que “tenha o que eu não tive”.

Pai é quem faz.

Pai é quem faz carinho, quem faz o almoço, faz companhia, faz ligações no meio da tarde quando sabe que o filho não está bem. Pai é quem faz vistas grossas às vezes, faz o papel de mãe, de juiz, de motorista, de segurança, de advogado, de contador de histórias, de médico, de psiquiatra, de instrutor, de conselheiro, de amigo...

Sim, criar qualquer um cria. Agora fazer de uma criança um homem honrado, direito, pleno, feliz, isso não é para qualquer um. Isso é só para um verdadeiro pai. Para alguém que faz, fez e sempre fará sempre o seu melhor.

Sou adotado. Mesmo assim – eu sei – foi meu pai adotivo quem me fez. 

Feliz dia dos pais, pai.


terça-feira, 6 de agosto de 2013

Situação de calamidade

No celular, um aplicativo passou a manhã me avisando sobre o risco de temporais.
Lá fora, o céu azul passou a manhã me dizendo que o aplicativo mentia.
Agora, eu sei quem estava mesmo certo.

Hoje o dia nasceu para desabar. Dia daqueles em que os trovões arrebentam, o vento devasta e o granizo destrói. O aplicativo estava certo. Ele só esqueceu de mencionar que o temporal seria por dentro. Por dentro.

De repente eu ali, criança de novo, enquanto me olhavam e estudavam minha reação. Enquanto eu buscava na tela da televisão, no prato de comida, na cortina da cozinha, a reação certa. A reação que não está em nenhum dos livros que eu li. A reação que não está nos filmes que eu vejo. A reação que, talvez, só esteja nos dramas das novelas mexicanas. Novelas que eu sempre me recusei a ver. Talvez eu devesse ter visto. É nisso que eu consigo pensar. Se eu tivesse visto, poderia substituir o choque e o pasmo por algo mais descente.

Consternação? Revolta? Compaixão? Curiosidade?

Qual é a emoção de se vestir pra isso? Penso que começar a chorar seria o caminho. As lágrimas estavam ali mesmo. Eu só as controlava pela profundidade da respiração. Sinto que nas novelas  jamais vistas, alguém gritaria entre lágrimas. Alguém Perguntaria um “Por quê?” sofrido, pungente. Alguém se atiraria no chão, rasgaria as cortinas, abriria a porta e sumiria no mundo, em busca.

Eu ouvi e ponderei. Eu esperei saber o que fazer. Eu quis abraçar alguém, mas estamos tão longe disso. Tão longe. Eu quis confortar, quis fazer um afago, quis dizer que perdoava, mas como perdoar o que não é crime? O que mal se compreende? Eu não posso perdoar o que não posso julgar. E eles esperavam perdão.

Eu esperava que eles fossem logo embora. Eu não queria condená-los, mas também não podia absolvê-los. E eles queriam qualquer coisa minha. Qualquer reação. Qualquer lágrima. Logo eu, que tenho tanto medo das lágrimas, tanto medo de não poder controlá-las. Eu não lhes dei nem uma lágrima. Eu não lhes dei nem um sorriso. Eu não lhes dei um grito sequer. Eu não deixei sair do meu peito o temporal anunciado.

Mudo, eu vi ventos devastando anos, chuvas afogando lembranças, granizo destelhando mentiras. Mudo. Eu deixei os raios iluminarem os cantos, os trovões balançarem as paredes e os meus muitos eus gritarem por socorro, com as bocas enchendo d’água.

Mudo, descubro agora. É assim que se fica quando a pergunta que mais fazemos nos é respondida.

Mudo, porque não sei o que fazer da resposta. O que fazer da pergunta. O que fazer de mim mesmo. Mudo. Mudo porque o temporal não deixa espaço para a fala, enchendo tudo de escombros e corpos na lama. Mudo porque não vejo qual é a alternativa agora. Prosseguir? Reconstruir? Deixar? Ignorar? Mudo. 

Finalmente um modelo de reação: a mudez.

É assim que aparecem os homens depois de perderem tudo nos temporais. Mudos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Olhos de ver {À espera}

Há quadros abstratos. Linhas sobre linhas. Dois blocos azuis em toda a tela. Pingos jogados e jogados e jogados. Uma mancha vermelha em um fundo todo preto. Curvas e riscos. Recortes púrpuras sobre tinta grená. Marrom sobre marrom.

“Ridículo. É ridículo que alguém pague fortunas por ‘isso’. ‘Isso’, esses pingos jogados que eu mesmo faria. Essas linhas tortas. Esses rabiscos inúteis que até meu filho, meu filho de cinco anos sabe fazer melhor. Paf. É ridículo. É ridículo que alguém assim se considere um pintor. É vergonhoso. Se é assim até eu! Me deem uma tela! Me deem uma tela!”

Eu passaria dias olhando para um Mark Rothko. Dias abismado. Dias até conseguir me recuperar, até conseguir recolher todo sentimento que tentaria escapar de mim. A consistência da cor, a transição entre um tom e outro. O traçado do pincel. A textura da tinta. O impacto, meu Deus, o impacto de uma tela toda vermelha. A intensidade que emana dela. A ausência de explicação. A imensidão do que não quer ser entendido, do que não quer ser explicado. Do que existe. Eu me sentiria um ponto sem cor, diante de uma tela de Mark Rothko.

“Besteira, besteira, besteira.”

Há pessoas abstratas também. Pessoas com ideias sobre ideias. E dois olhos que brilham sem motivo ou que param, opacos, no meio da tarde. Pessoas que não se explicam, que agem, impulsionam, pensam, falam, criam, derramam tintas sobre telas, luzes sobre palcos, palavras sobre papeis, salsa sobre molhos, esperança sobre desconhecidos e vida, vida sobre o mundo. Pessoas que são como alguns quadros abstratos: curvas e riscos.

“Ridículos. É ridículos o que são. Ridículos com seu afetamento, com suas opiniões que ninguém pediu. Com seus quadrinhos de merda, seus textinhos de merda, seus teatrinhos de merda. Suas paixõezinhas. Seus ‘ai porque eu sinto isso, ai porque eu sinto aquilo...’ Ridículos. Não me interessa! Por que não vão fazer alguma coisa útil? Por que ficar aí, pensando besteira, fazendo besteira, dizendo besteira? Me deem uma arma! Me deem uma arma!”

As pessoas abstratas me fascinam. Intrincadas, complexas, inesgotáveis. Pessoas que surpreendem: Então há ainda mais nelas? Pode haver mais? Pode. Mais criatividade, mais sentimento, mais tramas por baixo das tramas já complicadíssimas de que são feitas. Pessoas de pura intensidade, que me abismam, também por dias. Pessoas que não querem ser entendidas ou explicadas, querem ser sentidas. Sentidas com a voracidade que merecem.

Nem todos os quadros são para todos os olhos. Nem todas as pessoas também. Às vezes, quando tudo parece incompreensão, descaso, desgosto, quando tudo é motivo de queda, de vaia, de repúdio em baixo e mal som, às vezes não está em você o problema. Às vezes o único problema é que lhe faltam olhos à altura. Olhos de ver. Olhos capazes de levar as coisas que veem não ao que é bruto, não ao estômago, não ao fígado, não aos ovários nem aos testículos. Olhos capazes de levar o que veem até a alma. Porque ela também, é toda abstrata em quem a tem.

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Estreio hoje a série "À espera".
Toda quinta-feira uma nova crônica.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Os que eu não sou

Não sou do tipo que dança nas festas. Sou do tipo que um dia se mata. Qualquer frase que contrarie essas sentenças, não sou eu. O que enxergam quando é para mim que olham?

Eu não posso enganar. Eu não sei mais mentir. Sorrir falsamente, cantar o que todos cantam, escrever o que todos escrevem. Eu não sei. Eu desaprendi ser os outros. Logo eu, que já fui tantos, hoje sou só eu.

E eu queria que me reconhecessem por isso. Eu queria que as sombras do que eu não sou não pesassem tanto sobre mim. Mas pesam. Pesam porque cada vez que vocês dizem como eu não sou, subentende-se a maneira como vocês gostariam que eu fosse. 

Eu sou sempre menos do que vocês queriam.

Há alguém que goste do que sou?

Queriam que eu dançasse. Queriam que eu risse. Queriam que eu saísse. Queriam que eu bebesse. Queriam eu tivesse dois empregos. Queriam que eu escrevesse crônicas amenas. Queriam que eu ganhasse dinheiro. Queriam que eu calasse a boca. Queriam que eu tivesse uma plantação. Queriam que eu tivesse uma casa. Queriam que eu fosse pacífico. Queriam que eu fosse dócil. Queriam que eu aceitasse tudo. Queriam que eu relevasse. Queriam que eu me omitisse. Queriam que eu trabalhasse de graça. Queriam que eu fosse incompetente. Queriam que eu transformasse a vida de alguém. Queriam que eu autografasse. Queriam que eu publicasse. Queriam que eu escrevesse a história de um gato. Queriam que eu quisesse tudo isso.

E eu não quero.

Não tudo. Não agora.

O que eu queria era que me deixassem ser essa coisa intrincada, confusa, introspectiva e imatura que eu sou. Queria que não me atirassem na cara o quanto me queriam melhor. A cada frase, o que me esbofeteia é o quanto eu não sou bom o bastante para quem fala. Cada pequena sentença vem em tom de acusação. Diz assim: "Você não é isso. Eu queria alguém que fosse, mas você não é. Por que você não é, se eu queria?"

Estou cansado. Estou cansado dos meus não seres. Eles pesam muito. Muito mais do que aquilo que sou.

Sou o que lê, o que fica, o que observa, o que pensa. Sou o calado, o que se esconde, o que escreve para não se entender. Sou o que pesa, pondera, qualifica, o que responde, manifesta, ri quando acha graça e silencia quando tudo mais é agitação. Sou o que espera as tempestades. Sou o que ama, faz poesia e sonha. Sou o que lida com o insustentável, o que fantasia, que fotografa e estuda por horas um inseto de jardim. Sou o que pinta, o que repara, o que pensa, o que brinda sozinho e olha, pela janela, a lua. Sou o que diz mais do que deve, pensa mais do que sente e não consegue, simplesmente não consegue ser diferente.

Compreendam, por favor, compreendam: eu não sou os que eu não sou. 

Os outros são. Eu não.

E se o que eu sou não basta, compreendam isso também: eu sou daqueles feitos para serem deixados no caminho.

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Publicado originalmente no blog Febre Crônica.