terça-feira, 6 de março de 2012

Machado de Assis: o baiacu da Literatura Brasileira

“Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios.”

Lindo trecho, não?! Lindo para mim, para você e para todos aqueles que são amantes das belas letras. E que, além disso, sabem – ou pelo menos inferem – o sentido de “retórica”, “ressaca”, “vaga”, “cava”, “tragar”, “pêndulas” e “suplícios”. Sequer imagino como um leitor em formação, cursando uma sétima ou oitava série do Ensino Fundamental poderia deparar-se com ‘Dom Casmurro’ como leitura obrigatória.

É impossível não me remeter às crônicas de João Ubaldo Ribeiro em “A arte e a ciência de roubar galinhas”. Um dos temas recorrentes no livro é o baiacu. O peixe, bastante comum em Itaparica, ilha em que o escritor residia, é dono de um veneno mortal. Apesar disso, o peixe é considerado o mais saboroso de água salgada, desde que bem preparado.

As versões sobre onde se encontra o veneno e como tornar o peixe comestível variam de pessoa para pessoa, como mostra o escritor. Para alguns o veneno é proveniente de uma glândula, para outros, está nas escamas, e há ainda quem diga apenas morre aquele que comer baiacu em meses que tenham a letra ‘r’ no nome. Só o que não varia são os casos de famílias inteiras que morreram ao consumir a letal iguaria.

Machado de Assis, só posso pensar, é o Baiacu da Literatura Brasileira. Quando bem introduzido, bem preparado, bem sondado, bem explicado e fascinado, pode ser uma das experiências mais enriquecedoras em termos de leitura. Desde que na época certa e no contexto certo.

Os contos, especialmente, são de uma intrincada engenhosidade. Em ‘Pai contra Mãe’, por exemplo, além da contradição do título, o nome de cada personagem diz muito sobre a posição social que ocupam. É só lembrar: Cândido Neves, Clara... Mesmo os nomes de rua conversam com o enredo do conto: Rua do Parto, Rua da Ajuda, Rua da Alfândega.

Machado era mestre na arte de bem escrever, na ironia e na construção de seus enredos. Sem dúvida a leitura bem conduzida de suas obras é capaz de engrandecer a bagagem de qualquer leitor.

Quando essas mesmas obras, no entanto, são impostas como obrigatórias, fora de época, sem um pano de fundo, sem uma sondagem prévia e sem o acompanhamento necessário, produzem o mesmo efeito do baiacu mal preparado: são de um veneno mortífero.

A linguagem é carregada em estilo, estamos falando de uma obra com a fluência de 1899. O vocabulário é extremamente complexo, ainda mais se considerarmos alunos com um nível de leitura, compreensão e interpretação muito baixo. Além disso, a atmosfera densa que envolve Bento – outra grandeza de nome – e o faz amargo e desiludido, a suposta traição e tudo mais que sonda o livro não compõem uma realidade de vivências para leitores ainda tão novos.

Diante de tudo isso, obrigar quem deveria estar lendo J.K. Rowling, Meg Cabot, C.S. Lewis, Jay Asher, Marcos Rey, Pedro Bandeira a deparar-se com as vesículas prenhes do veneno de Machado de Assis é criar um novo empecilho à formação de leitores, jamais uma contribuição.

É preciso que se conheçam os caminhos da formação do leitor para embrenha-se nessa área. É por meio da Leitura que se chega à Literatura, o caminho inverso não se consegue fazer.

Machado de Assis pode sim – e deve – ser trabalhado em todas as épocas. Com seus contos, suas crônicas, com meios de conversa entre aquilo que se lê e a vivência dos alunos. Explicando contextos, costumes, épocas, vocábulos, criando expectativa e apontando sutilezas.

Como sugeriu Eric Chartiot, por que não trabalhar o conto “A Carteira” simulado ter encontrado uma carteira e discutindo com os alunos se é moral ou não usar aquele dinheiro? Por que não ir além, levar reportagens sobre pessoas que encontraram grandes quantias e as devolveram aos donos? Por que não perguntar o que eles fariam em tal situação?

Fazê-los, depois de tudo isso, ler e analisar o conto de Machado é, sem dúvida, preparar bem o baiacu. Torná-lo não só comestível, como também apetitoso. Dar significação ao texto é o que seduz o leitor a querer mais, a repetir o prato e a lamber os beiços no final de tudo.

De resto, é ter boa intenção, morrer pela boca e matar [o leitor] pelos olhos.

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