terça-feira, 29 de setembro de 2009

O colecionador de tuas borboletas

É minha a mais bela coleção de borboletas já sonhadas. Alfinetes nas asas, isopor nos pés, vidros isolando à imensidão, nada disso. Todas elas, fadas aladas, me batem presas ao peito, debatendo-se umas nas outras, às voltas de um coração que é todo amor.

Teus olhos são minhas borboletas brilhantes, pequeninas, de uma grandiosidade quase marrom. Gosto quando pousam em mim, exagerando qualquer ínfimo traço de uma beleza inventada. Gosto destas duas quando, lânguidas, provocativas, insinuantes, me chamejam. Gosto quando batem asas delicadas, entre risos de deleite. Gosto quando voam, perseguindo os olhos meus. Gosto mais ainda quando neles pousam, tocando uma alma que é só tua.

Teus lábios são minhas borboletas rubras, que mesmo em sede de desatino, esperam o mel cair-lhes à boca. Têm tracejados delicados, textura aveludada e um farfalhar de asas que me enche de arrepios. Elas pousam úmidas, onde querem, aquecendo gelos, desdobrando amores e causando desvarios.

Tuas mãos são minhas borboletas brancas. Lívidas asas, com cinco pintas cada uma. Pintas que mudam de cor conforme os dias. Essas são fadas gentis, delicadas e graciosas, uma delas até usa jóia de prata pura. À noite, para dormir, pousam e fazem casulo no meu peito nu. Borboletas de asas leves, arranhões esguios e força frágil. Tentam às vezes me envolver inteiro, mas, pequeninas que são, perdem-se nos meus traços mais viris. Borboletas que me adulam, aquecem e afagam.

Há outras? Sim, há outras mais. Borboletas valiosas que são só minhas, escondidas no meu pensar, ocultas do meu falar, deleitadas no meu sentir. E é por isso, só por isso, que te amo. Porque te amar, é cair no vôo das borboletas.

domingo, 27 de setembro de 2009

Cores d'água

Sim, eu uso a arte como droga e escrever já não me serve. Feito viciado, sempre em busca de coisas mais fortes, de doses mais altas, agora persigo os traços do desenho. Escrever já me bloqueia os sentidos, ainda mais quando tudo no mundo escreve. De cada poste as letras caem, amontoam-se nas sarjetas, sobrepujam as valas sujas. As palavras vendem-se a quem quiser, caem das bocas sem dentes, escorrem pelos lápis dos bastardos, corroem as vitrines das lojas. De repente todos são escritores, poetas, contistas, blogueiros. Grandessíssimos filhos das putas. Fiquem então com estas palavras sujas, essas letras vomitadas, essas rimas podres. Nada disso me interessa mais.

De repente os traços finos, os sombreados negros, as luzes que se obtém pelo apagar. Talvez a ilusão na folha, o perpassar do mundo, os ângulos retos que me entortam. Quem sabe as arestas pretas, as aquarelas foscas, os coloridos vagos... Poder ser. Pode ser que ali resida minha nova catarse. Meu fluir, meu viajar, meu nirvana noir, minha pulsão de sangue, meu abrir de veias, minha expurgação de demônios, meu vôo de anjo, meu canto de maldito.

Eu preciso da arte. Mas mais do que dela, preciso de um quarto onde eu possa ficar sozinho. No da escrita já tem gente demais.

sábado, 26 de setembro de 2009

Intensidades de uma (chuva) insana

Chove. Não, mais do que chove, cai um temporal imenso que deveria lavar toda alma dessa cidade imunda. Mas não lava. Nunca lava. A força da água é tanta que me faz tremer a terra. Eu sinto as vibrações, dedos crispados nas grades da janela. Eu sei, vejo que a qualquer momento as venezianas serão arrancadas pelo vento. As cortinas sugadas para fora, o barulho de panos rasgando, o voal varando o dia, feito fantasma louco. Meus panos voando por cima das casas, encharcando de chuva, até pesarem demais e cairem. Todos corpos mortos. Pássaros abatidos em pleno vôo, baques surdos de cadáveres mudos. Sangue misturando à água e penetrando nas frestas da rua, abrindo fendas entre paralelepípedos sujos.

Então virão as rachaduras na terra. Sulcos erosivos, bocas engolindo ruas, pessoas, casas, automóveis, tudo marrom, tudo banhado de vermelho-terra. O vento arrancando paredes... Da minha casa mesmo, não restará mais do que três partes desse quarto. À beira do mundo, às portas do caos, olhando calado a destruição, estarei eu. Pés no piso.

A tempestade chicoteando meu rosto, lambendo meus olhos míopes, penetrando pelas brechas do meu cabelo. Forças inumanas rasgando minhas roupas, roubando minhas coisas, arrastando pelos ares qualquer brinquedo de criança. O telhado alçando majestoso vôo, meus braços abertos aos céus, em entrega ou súplica, jamais desespero.

De repente tudo pára. Já nem mais chove, agora garoa manso. O som embala os sonos de quem pode dormir. Eu não posso. Há décadas que não durmo, esperando o que está por vir.

E não, ainda não foi desta vez, infelizmente.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Só mais uma flor azul

Para Aninha, que a encontrou, era uma flor diferente de todas as já vistas por sobre a Terra, ao menos a do jardim. Chafurdou em dúvida: Colho ou não colho? E se for a única do mundo inteirinho? E se nunca mais crescer? Ah, mas cresce. Se não arrancar tudo, cresce; assim como dedo cortado.

Puxou com cuidado imensurável, quebrando sem judiar o galinho flexível. Botou bem perto do olho direito. Meu Deus, que prazer imenso. Havia nas pétalas veiazinhas de um azul escuríssimo, que saiam meio e iam clareando para as pontas. Ramificavam-se todinhas, perdendo-se em singelas transparências. As pétalas, como eram finas, tingidas de um lavanda-céu. Cinco ao todo, e em forma de coração.

Não, perfume não tinha. Tinha mais era qualquer cheiro de verde, embora fosse uma flor azul. Não era maior que um botão de casaco. Vista de baixo era mais opaquinha, mas por cima brilhava enveludada de sol. Mas que delicadeza tinha Deus! Mãos enormes capazes de moldar tão frágil belezinha. Pois no meio havia até mesmo uma estrelinha branca, vejam só.

Qual será o nome, heim, Aninha? Na certa um nome bonito, sendo assim, tão suave...Tinha qualquer textura macia, cariciosa no contato com o rosto. A menina passou-a de leve pela bochecha rosada, enquanto sorria, de olhos fechados.

Mal podia esperar para contar a alguém. Qualquer um. Na certa chamariam os outros e ela seria conhecida por descobrir “a primeira flor azul do mundo todo inteiro de todos os tempos desde o começo”! Sorriu sozinha. Foi então que entrou em casa correndo, toda faceira, jogou-se em meus braços e, abrindo a mãozinha em concha, mostrou-me a incrível descoberta.

— Olha só o que eu achei!
— Aham.
— Não é incrível?
— O quê?
— A flor! Veja, é azul.
— Sim, estou vendo. Mas não é flor, minha filha, é só um inço.

Aninha sabia o que era inço. Deixou cair a florzinha triste no assoalho da cozinha... e foi brincar de outra coisa.

- - -

Eu já fiz isso. Já 'descobri' flores e insetos únicos e maravilhosos. Também já vi lua quebrada, quando era minguante. Já troquei avião por disco voador e gato por bruxa.
Queria saber quando que perdemos essa visão que transforma até as coisas mais simples em fatos espetaculares? Quando o mundo deixa de ser mágico e passa a ser apenas mundo? Quando os dias começam só a correr, sem qualquer graça?
Eu queria ter mais respostas. Respostas inventadas.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Só Citando

Desculpem o descaso, estou sem descanso, quase perdido nos meandros desta monografia infinita. Sem descanso ou sem vontade, porque, de repente, tudo que eu mais queria era deixar-me ser feliz.

Sua vida [a do artista] está necessariamente plena de conflitos, já que dentro dele lutam duas potências: de um lado, o homem comum e corrente, com seu direito à felicidade, satisfação e segurança vital, e de outro, a implacável paixão criadora, que em certos casos o obriga a pisotear todos os seus desejos pessoais. (JUNG apud MOISÉS, 1977, p. 47)
Só parei para compartilhar este trecho. Agora volto a investigar as perguntas sem respostas de uma mulher morta. Até quando der.

MOISÉS, Massaud. A criação poética. São Paulo: Melhoramentos, 1977.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Do que se perdeu

Só tenho saudade de um conto, dedicado a um amor de ocasião. Tal romance curto era de uma doçura insuportável, uma beleza aguda e cortante. Não, eu não lembro a natureza exata dele e, talvez, aí resida minha fascinação. Em não sabendo ao certo o desenrolar, minha mente, quem sabe, o supõe mais belo. São muito vagas as memórias que tenho dele, apesar de intensas. Sei da chuva, de um apartamento, de whisky, de coisas que não deveriam ter sido ditas, mas foram. Que coisas? Nem idéia faço.

Lembro do conto, sendo construído todo de quase toques, de movimentos suspensos, de carinhos retraídos, de uma boca que parte em direção à outra... quase chega, mas volta. A sensação que me dá este texto é a mesma da respiração sobre a pele. O misto de medo, hesitação e prazer. A dúvida do não-querer e a certeza do arrepiar. O momento em que se espera e a mão não vem. Sente-se o calor, mas não o toque.

Que fim levou o conto? Pois não sei. Tão logo o terminei, dei-lhe um nome bonito, agora imemorável, salvei e fechei. Ao tentar acessar o arquivo, poucas horas depois, tudo que encontrei nele foram quatro páginas de um branco imensurável. Apressei-me em tentar reconstruí-lo... Impossível. Nem uma linha eu sabia reescrever. Então foi assim? O conto simplesmente vazou inteiro de minhas veias impossíveis e fluiu para o papel, sem nem deixar marcas? Foi. Foi assim. Em mim não ficou nada, tudo foi para o arquivo que, por arte de qualquer prestímano, estava agora esvaído em brancos.

O amor de ocasião me durou pouco, fugiu de meus romances e caiu em um casamento, típico adereço das comédias de costumes. O que me doeu foi ter perdido o conto. Este sim deixou marcas. Era quase bonito demais.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

De que entreis em minha morada

Limpei a casa. Pintei de nova, desfiz as teias e plantei as flores da janela. Arranquei o inço, caiei o muro, consertei a cerca e matei formigas. Lavei os tapetes, poli a prata, troquei os lençóis e perfumei os cômodos. Assei carnes, preparei manjares, comprei toalhas e desempoerei toda a porcelana. Arranjei rosas, banhei os cães, bordei as fronhas e varri o porão.

Esperei.

Por todo tempo você não veio. Quando as rosas secaram, as toalhas sujaram e os manjares azedaram, você chegou. Carregado de ouro, olhou para tudo: o pó nos móveis, as manchas nos lençóis, as flores mortas, o inço alto, a prata preta...

Nem entrou. Ainda da rua jogou-me só uma palavra. É dela que tenho sobrevivido. Na primeira fome comi-lhe um "A". Ficou-me "deus". Em nova voracidade devorei-a dos dois lados. Restou-me "eu". E isso? Isso eu guardo nas gavetas. É tão pouco que nem à gula tenta.