Chove. Não, mais do que chove, cai um temporal imenso que deveria lavar toda alma dessa cidade imunda. Mas não lava. Nunca lava. A força da água é tanta que me faz tremer a terra. Eu sinto as vibrações, dedos crispados nas grades da janela. Eu sei, vejo que a qualquer momento as venezianas serão arrancadas pelo vento. As cortinas sugadas para fora, o barulho de panos rasgando, o voal varando o dia, feito fantasma louco. Meus panos voando por cima das casas, encharcando de chuva, até pesarem demais e cairem. Todos corpos mortos. Pássaros abatidos em pleno vôo, baques surdos de cadáveres mudos. Sangue misturando à água e penetrando nas frestas da rua, abrindo fendas entre paralelepípedos sujos.
Então virão as rachaduras na terra. Sulcos erosivos, bocas engolindo ruas, pessoas, casas, automóveis, tudo marrom, tudo banhado de vermelho-terra. O vento arrancando paredes... Da minha casa mesmo, não restará mais do que três partes desse quarto. À beira do mundo, às portas do caos, olhando calado a destruição, estarei eu. Pés no piso.
A tempestade chicoteando meu rosto, lambendo meus olhos míopes, penetrando pelas brechas do meu cabelo. Forças inumanas rasgando minhas roupas, roubando minhas coisas, arrastando pelos ares qualquer brinquedo de criança. O telhado alçando majestoso vôo, meus braços abertos aos céus, em entrega ou súplica, jamais desespero.
De repente tudo pára. Já nem mais chove, agora garoa manso. O som embala os sonos de quem pode dormir. Eu não posso. Há décadas que não durmo, esperando o que está por vir.
E não, ainda não foi desta vez, infelizmente.
Essa descrição me fez sentir algumas gotas de chuva no rosto, e de algumas lágrimas também. Renda-se e alce voo! Aproveite o impulsinho que o vento dá ;)
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