sábado, 19 de junho de 2010

O menino que lia livros

Minha entrada no reino das histórias aconteceu, magicamente, sem a presença mediadora do livro. Num arremedo da própria história humana, foi a tradição oral que primeiro brotou em minha casa.

A hora de dormir, por muito tempo, era precedida dos minutos de ouvir. Bem acomodado na cama de meus pais, eu, pequeno imperador, ordenava que me contassem uma história. História antes de dormir, idéia intrínseca no DNA das crianças (ao menos no das burguesas). Como ordem de imperador não é para ser questionada, mas obedecida, a história vinha.

Era uma vez uma menina que usava sempre um chapeuzinho vermelho. Um dia ela foi passear na floresta e encontrou o bicho-papão. Uns porquinhos que passavam por ali disseram a ela que tomasse cuidado...

Em ritmo caótico, a imaginação de repente fértil de meus pais se punha a emendar contos antigos e fazer deles uma colcha de retalhos que recobriria meu sono. Eu não me preocupava com a incongruência da história, nem com os rumos imprevistos que pelas tantas ela tomava. Eu ouvia, feliz.

Depois me recolhia à minha cama e sonhava com o tal bicho-papão, a carregar a pobre chapeuzinho para cima do pinheiro onde ele morava. Fim. Mais uma noite embalado por histórias, mais uma noite insone dos meus pais, cuja criatividade estendia-se ao máximo limite.

Passado o tempo, maturado o gosto pela história, aí é que surgiram os livros. Numa época em que era impossível aos pais tornarem os filhos zumbis por meio de um DVD, o que eu ganhei para me entreter nas tardes de muita chuva ou pouca disposição foi uma coleção de livros acompanhados por fitas K7. A coleção de nome comprido — As mais belas histórias infantis de todos os tempos – e vinha por partes. A cada um ou dois meses outro livro chegava. Cada livro tinha duas histórias, uma para cada lado da fita.

Antes mesmo de ler, eu ouvia narradores, princesas e bruxas me contando por um mês inteiro as mesmas duas histórias. Sim, logo que chegava o novo fascículo o anterior era parcialmente esquecido. Minha mãe olhava orgulhosa: vejam como ele sabe o momento exato de virar a página!

Em verdade, até hoje não li os livros – ainda os tenho. Mas sei de cor as músicas que embalavam os contos e as toadas que faziam parte das histórias. Meu fascínio por estes áudios permanece, embora hoje eu perceba que o mesmo dublador fazia três ou quatro personagens, alterando ligeiramente o timbre de voz.

Quando eu aprendi a ler, o encantamento pelos livros seguiu o curso natural. Da coleção “Quem tem medo?” li todos, com avidez e pavor insano. Os pingos, eu li divertido, entre sorrisos e tentativas de reproduzir os desenhos em guache. E assim fui embalado em castelos, medos e finais coloridos. Até a adolescência.

Professores, entendam, gostar de ler é falta de status entre os adolescentes. Numa turma onde o comportamento de bando impera, a regra é se opor às regras. Pais não sabem de nada! Professores não sabem de nada! Se ler é bom, então detesto ler! Se ler é obrigatório, quero ver quem vai me obrigar! Contestar é a ordem.

Eu segui o ritmo. Ler era coisa de otário e de velho.

Eis que surgiu uma professora a quem chamávamos, maldosamente, de Pingüim. Baixinha e gorducha, ela tinha mesmo um andar afetado a que o corpo compacto emprestava um ar de... bem, pingüim. Sua matéria: Literatura.

Preciso adiantar que Literatura nessa época e no meu contexto escolar consistia em duas horas semanais nas quais os alunos deveriam ficar em imperioso silêncio, dedicando-se à leitura de livros.

Os livros vinham até nós em caixas mal encapadas por ursinhos e flores. A professora Pingüim passava de classe em classe e nos fazia escolher “Depressa!” um livro daqueles, cuja qualidade máxima consistia em ser curto. Medíamos os livros e então pegávamos o menorzinho, sempre disputado.

Seguia então a tarefa árdua da pobre professorinha, já idosa, diga-se de passagem, de nos colocar em silêncio. Mais de 30 alunos explodindo em hormônios, revoltas e gargalhadas que deveriam fechar as bocas e grudar todos os olhos nos livrinhos.

“Está! Ai meu Deus! Está! Ai meu Deus! Está! Ai meu Deus!”

Tudo isso ela recitava aos berros, com cadência quase poética, enquanto imitações patéticas explodiam por todas as classes. “Está! Ai meu Deus!”. Depois de ameaças severas e de puro cansaço, calávamos um pouco. Não líamos, no entanto. Sempre havia um bilhete a trocar, um riso a abafar, um tornozelo a coçar. Ler era o menos importante.

De tempos em tempos, no entanto, era necessário prestar contas do serviço feito. Outra vez adianto que estou falando de uma época antiga, na qual a internet era ainda coisa inalcançável. Os resumos, portanto, necessários às fichas de leitura, não brotavam das telas. Cada um se comprometia, assim sendo, a ler pelo menos um livro, para que pudéssemos cambiar informações acerca dele e adaptar os resumos em nossos cadernos. Ler importava pouco, o importante era ter os 5 resumos previstos por bimestre.

Conseguíamos entre sufocos, como se trocássemos figurinhas, angariar romances não repetidos, cinco. A glória era conseguir seis ou sete, porque aí a nota máxima era garantida. Passávamos.

A profe Pingüim tratava de fazer o máximo para nos afastar dos livros. Impunha-os como fardos chatos e pesarosos. Seu comportamento era, por óticas atuais, condenável. E se eu disser que, apesar de tudo que hoje se diz, foi ela quem me transformou em leitor?

Sim. Foi pela imposição ditatorial de um pingüim que eu tratei de me apaixonar – de vez – pelos livros. De repente eu fiz uma constatação boba: aquelas duas horas passariam mais rápido se eu me dedicasse a fazer o que era preciso fazer: ler. Foi para fugir do “Está! Ai meu Deus!” que eu me debrucei sobre a classe e comecei a decodificar os tracinhos pretos no branco do papel. Mágica.

Disso para mergulhar no vórtice das letras e nas aventuras contidas nos livros foi um passo cego. De repente eu passava meus dias imerso nos livros, nas histórias, nas tramas. Tudo que eu queria era a próxima página, o próximo passo, o próximo livro. Foi por pura fuga e puro instinto que a ditadura do Pingüim se fez meu prazer.

Como lia com afinco e sempre fui “bem comportado”, ganhei a imensa dádiva de “ler lá fora”. Só aos bons era dado o poder de ir ler nos pátios da escola, debaixo de ameixeiras em fruta. Nas sombras eu devorava ameixas e livros.

No último bimestre meu caderno contava com nada menos que 72 resumos. Nenhum deles usurpado, todos meus. Eu os lia livros encarrilhados. Na biblioteca pública (que passei a freqüentar) já me conheciam bem e me permitiam levar três, quatro livros por vez, para que minhas visitas não precisassem ser diárias.

Meus pais, preocupados, começaram a escavar teorias para expor os malefícios da leitura. Não era, pois, possível que fizesse bem passar o dia mergulhado em páginas. Não. Fazia mal à vista, à mente, ao corpo, à alma, a tudo, meu bom Deus.

Eu resistia. E assim li em pouco tempo tudo que interessava, tanto da caixa na escola, quando da biblioteca na cidade. Todas aventuras da série Vaga-lume, todos os livros de Pedro Bandeira, todos cuja capa ou contracapa me inspiraram, eu havia lido.

Foi então que passei à prateleira dos outros romances. Eu cruzava, curioso, a imensa fronteira entre a literatura “infanto-juvenil” e a adulta. E me sentia maravilhado. Eu ainda lembro de ter pensado “mas o que será que tem nos livros que os adultos lêem?”. Fui ver. Lembro de ter pego um pequenino, de capa negra, na qual se lia em dourado “O Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde”. Não por estilo, não por ser clássico, não por nada. O livro me chamou e era um livro-para-adultos. Eu li, com sede e fascínio. Só muitos anos depois eu saberia o que, de fato, estava eu lendo. Dali segui para Arthur Conan Doyle, Bram Stocker, Poe, Goethe...

Eu lia com a mesma empolgação com que lia as aventuras de piratas. Entendia tudo, mas não sabia os tesouros que tinha nas mãos. Foi preciso mais algum tempo para que eu me deparasse com a literatura-para-adultos brasileira. Meu primeiro romance do tipo foi, como gosto de lembrar, Tambores Silenciosos, de Josué Guimarães.

Foi ali que eu vi, fascinado, que além das linhas as entrelinhas também compunham os livros. Ali eu dedilhei segredos e fui além do que se podia ver. Quando conheci Clarice Lispector, com A Hora da Estrela a magia se fez por completo. Ela, de repente, em escrevia. Não em Macabéa, mas nela própria, na mulher com olhos de lince que cruzava a página aqui e acolá.

Diante disso minha paixão se fez. Por caminhos de prazer, obrigação e fuga foi que comecei a entrar nos livros, primeiro para conhecer, depois para criar.

Hoje leio roubando o tempo da internet. Na minha casa, porém, sempre há quatro ou cinco livros pela metade. Há os que leio pelo prazer da linguagem, pela filosofia embutida, pela simples fruição. Assim como na vida, na literatura eu não abrigo preconceitos. Já li Paulo Coelho, Zíbia Gaspareto, Meg Cabot e best sellers de todos os tipos. Ler me fascina, de qualquer modo. Ler autores considerados “populares” é ter o prazer da fruição. Quando me dizem que só lêem os clássicos e que nada mais presta, eu já faço cara de enfado. Aí está uma pessoa que é, em tudo mais, chatíssima.

Confesso que os clássicos me dão mesmo mais deleite... Eu gosto de ver a língua dominada, o jogo de interditos, a arte da palavra, coisa que nos populares muito pouco há. Mas há história, e história, às vezes, é tudo.

O que sempre me deixa abrucanhado é que, mesmo lendo o tudo que leio, eu não vou chegar nem à milésima parte de tudo que há para ler. Há tanto escrito no mundo, tanto livro esperando com personagens palpitantes, com frases marcantes, com verdadeiras epifanias impressas... Aiai. Isso me faz suspirar com uma tristeza imensa.

Eu queria abarcar o todo. Eu queria ler tudo.

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Este texto, como se pode ver, não foi escrito para o blog. Ele é grande demais...
Apesar disso, decidi publicá-lo hoje, inspirado pelo meu caro Will.

Um comentário:

  1. Concordo em gênero, número e grau. Por isso que a tarefa de nós, escritores, é mostrar que ler é um prazer delicioso, tanto quanto cair de boca num sundae de chocolate.
    Quinta feira peguei um livro de Érico Veríssimo e fiquei abismada com tamanha pureza e inocência. Devoro as páginas com sede e deleite.

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